O que teria acontecido à cultura ocidental e até mesmo às lutas pelos direitos civis se John Lennon tivesse chegado aos 80 anos em outubro de 2020 e não apenas vivido somente a metade disso? Os quatro Beatles – a maior banda de todos os tempos – teriam se reunido novamente e revivido os ideais da década anterior?

Especulações sobre a morte do astro devem ir além de velhos desejos dos beatlemaniacos. Um pouco de reflexão conduz ao fato de que poucos assassinatos tiveram tanto impacto na história da humanidade quanto o de John Lennon, cometido por Mark David Chapman, no dia 8 de dezembro de 1980 – 40 anos, a serem completados nesta terça-feira.

Com a tragédia, uma geração passou a dizer que “o sonho acabou”, em uma referência a famosa frase de Lennon, dita em 1970, quando Paul McCartney anunciou o fim dos Beatles. Os jovens da época perderam uma referência que com suas atitudes irreverentes, músicas, ideias e filosofia preconizava “faça amor, não faça guerra” e tentava mudar o mundo.

Com Lennon vivo, a esperança ainda existia. Em especial, porque ele tinha composto um dos principais hinos pacifistas da história da humanidade, a canção Imagine: “Você pode dizer que eu sou um sonhador/ Mas eu não sou o único/ Espero que um dia você junte-se a nós/ E o mundo será como um só”.

Os tiros de Chapman, antigo fã de Lennon na entrada do edifício Dakota, onde residia o ex-Beatle, em Nova York, ecoaram no tempo e no espaço e chegaram ainda intensos no século 21. Mais do que um forte impacto na sociedade ocidental, a morte de Lennon se tornou, instantaneamente, uma simbólica tragédia global.

A revista Time, por exemplo, em 22 de dezembro de 1980, descreveu o episódio como “uma morte na família” e o situou como um dos protagonistas de uma nova era na história da humanidade, uma vez que o período de reinado dos Beatles – entre 1962 e 1970 – correspondeu a uma época de profundas transformações sociais, políticas e tecnológicas em todo o mundo.

Vivia-se a contracultura, a pílula anticoncepcional, a ida do homem à Lua, a luta das mulheres e dos negros pelos direitos civis, a Guerra do Vietnã e as manifestações de Maio de 1968, na França. Os Beatles fizeram a trilha sonora de tudo isso, no momento em que a televisão se massificava.

Lennon, o Beatle mais radiante e rebelde, tomou para si o protagonismo e viveu momentos polêmicos, como quando disse a polêmica frase de que “os Beatles eram mais populares que Jesus Cristo”. Incompreendido, ele foi intensamente criticado e recebeu uma onda de ódio devotada aos radicais – não foram poucos aqueles que festejaram sua morte por causa de tamanha heresia ou blasfêmia.

Para a Time, Chapman tinha tirado a vida de alguém que era mais do que uma simples pessoa, “talvez a esperança”. A revista comparou o impacto da morte de Lennon aos atentados que mataram o presidente americano John F. Kennedy (1963) e o líder negro Martin Luther King (1968).

A revista Time comparou o impacto da morte de Lennon aos atentados que mataram o presidente americano John F. Kennedy (1963) e o líder negro Martin Luther King (1968)

Naquele 8 de dezembro de 1980, no meio da tarde, o assassino tinha conseguido um autógrafo do seu ídolo. Mas não foi para casa. À noite, quando Lennon voltava de uma sessão de gravação, o jovem de 25 anos disparou cinco vezes – quatro tiros acertaram o alvo.

Lennon foi declarado morto pelos médicos da emergência do Roosevelt Hospital por volta das 23h15. Depois dos disparos, Chapman, completamente alucinado, sentou-se na calçada em frente ao prédio Dakota e pareceu que tentava a ler O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. O livro, que já era um clássico da literatura jovem americana, voltou à lista dos mais vendidos em todo mundo.

Em um primeiro momento, o crime gerou um fenômeno marcado por homenagens em todos os cantos do mundo. Dezenas de canções foram feitas. Lennon foi reverenciado em lindas baladas, como Empty Garden, de Elton John, em que um garoto lamentava a ausência de um amigo chamado Johnny no jardim onde tanto brigavam – e que agora estava vazio.

O mineiro Beto Guedes lhe rendeu um grito de dor na Canção do novo mundo: “Quem souber dizer a exata explicação/ Me diz como pode acontecer/Um simples canalha mata um rei/Em menos de um segundo/Oh! Minha estrela amiga/Porque você não fez a bala parar?”.

Pelo menos dois filmes sobre o crime merecem ser vistos. Ambos tentam adentrar na mente doentia de Chapman e buscam encontrar algum sentido para justificar porque ele fez aquilo. O assassinato de John Lennon, do diretor britânico Andrew Piddington, mostra o assassino como um narcisista transtornado e obcecado por matar o músico.

Capítulo 27 – O Assassinato de John Lennon, escrito e dirigido por J. P. Schaefer, segue um formato mais documental ao reconstruir as 72 horas anteriores ao crime. Seu realismo é impressionante e atordoante. O filme foi lançado em 2007 e agradou bastante a crítica, mesmo como uma produção independente de baixo orçamento.

O mundo mudou bastante nessas quatro décadas. A utopia socialista da União Soviética se dissolveu, a China comunista aderiu ao capitalismo sem abrir mão de reprimir as liberdades e a onda de extremismo religioso está redefinindo o comportamento humano por meio da revolução digital da internet e das redes sociais.

Uma onda conservadora tomou conta de diversos países (será que vai durar por muito tempo?) e o romantismo humanista de Lennon ainda parece encontrar forças para provocar discussões de problemas de seu tempo que seguem na ordem do dia, como o racismo, a opressão às mulheres e a questão ambiental.

A contundência do discurso do ex-Beatle em entrevistas que são reeditadas incansavelmente ou na força de seu legado musical sozinho ou em grupo ainda servem de trilha sonora para quem ainda acredita que não sonho não acabou.

Um sinal do quanto o crime de 40 anos atrás ainda tem importância foi o lançamento, no ano passado, da comédia musical Yesterday, de Danny Boyle. Na trama, um jovem cantor fracassado sofre um acidente e acorda em um mundo que somente ele se lembra das canções dos Beatles e passa a usá-las para fazer sucesso.

O momento mágico da história é quando ele se encontra com um Lennon já envelhecido, que lhe conta qual rumo sua vida tomou. Impossível não se emocionar e se dar conta que sua morte ainda dói e ecoa no coração de muitos de nós. O mundo teria sido muito pior sem os Beatles – e ficou menos utópico sem John Lennon.

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