A partir dos anos 1940, quando começou a trabalhar em murais, o pintor Cândido Portinari realizou o seu objetivo como artista: levar arte para o maior número de pessoas fora do espaço sacralizado dos museus, bienais e galerias.
Nascido cinco anos após a morte do pintor, Marcello Dantas, curador da exposição Portinari Para Todos, que abre neste sábado, 5 de março, no MIS Experience, em São Paulo, também é movido pelo mesmo interesse.
"Acredito que a gente tem que dessacralizar o conhecimento e abrir portas para as pessoas, seja na arte moderna, contemporânea, na ciência", afirma Dantas, que está à frente do projeto imersivo considerado a maior exposição já feita sobre a vida e a obra de Cândido Portinari.
Ainda que não traga a presença física de nenhuma tela, a mostra explora imagens de 150 trabalhos projetados em vídeo mapping - técnica de projeção de vídeo em objetos ou superfícies irregulares.
Quem visitar o MIS Experience poderá ver a obra do pintor em uma escala nunca antes vista e em detalhes, além de interagir com as pinturas. Portinari é o primeiro artista brasileiro a expor no espaço dedicado a experiências imersivas, localizado na Água Branca, zona oeste de São Paulo.
Dantas é conhecido por organizar exposições que são sucesso de público. ComCiencia, individual da artista australiana Patricia Piccinini, no Centro Cultural Banco do Brasil, em 2016, recebeu mais de 1 milhão de visitantes.
A mostra do artista chinês Ai Weiwei, em 2019, que fez itinerância por São Paulo, Curitiba, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, na capital carioca, levou mais 9 mil pessoas por dia ao CCBB.
Outra característica que aproxima o curador e Portinari é a produtividade. Embora o pintor tenha tido uma vida relativamente curta – morreu aos 59 anos –, é considerado um dos artistas brasileiros que mais produziu, com cerca de 5 mil obras.
Dantas, aos 55 anos, soma em seu currículo mais de 250 projetos artísticos que envolvem desde exposições à criação de instituições culturais - entre elas, o Museu da Língua Portuguesa e a Japan House.
E sua atuação não se limita ao território nacional. Em 2014, fez parte do corpo curatorial da Bienal de Vancouver; em 2019, organizou a individual do artista indiano Anish Kapoor, no Chile e na Argentina; e agora, em março, inaugura o museu de arte contemporânea Sferik, no México.
Em entrevista ao NeoFeed, Dantas conta um pouco de sua trajetória como empreendedor na área cultural, sua luta para desfazer o "nó da ignorância" no Brasil.
Você já declarou que seu pai, o empresário e produtor teatral Adaury Dantas, foi a pessoa responsável pelo seu interesse por cultura. O que você aprendeu com ele sobre empreender nessa área?
Meu pai me colocou dentro do universo da criatividade e de um certo empreendedorismo. Eu acho que aprendi muito vendo ele se arriscar, acreditar numa ideia e desenvolvê-la – conseguindo direitos para montar uma peça, agregando talentos. Eu nunca me vi como uma pessoa empregada de alguém. Eu montei minha primeira empresa aos 13 anos. Fazia o som e tocava como DJ nas festas da garotada. Eu conseguia captar as necessidades das pessoas ao meu redor e criar algo que resolvesse. O mundo está dividido em dois grupos de pessoas: as que estão dispostas a tomar risco e as que não estão. Eu faço parte do primeiro grupo.
O seu jeito de fazer curadoria é bem abrangente. Você participa de todo o processo: captação, conversa com o artista, negociação com a instituição. A sua formação na diplomacia ajuda na hora de negociar em tantas instâncias ?
Absolutamente, sim. Quando decidi estudar diplomacia, tinha certeza de que eu era uma pessoa com esse perfil de atuar no meio de campo, negociar e fazer as coisas acontecerem. Mas eu detectei muito cedo que não conseguiria ter essa atuação no governo. Fui estudar história da arte na Itália e entendi que ali eu também não poderia fazer diferença.
Então, me mudei para Nova York para estudar arte contemporânea e estar em contato com os produtores do meu tempo. No campo cultural, eu atuo como um intermediário, transformando vontades em realidades. Isso vem da diplomacia. A arte é um território muito desregulamentado no mundo. Tudo está para ser construído, tudo é dinâmico. Você consegue fazer projetos mais originais como criador. O que é muito motivador.
Você já fez mais de 250 exposições. Essa média é muito maior do que qualquer curador de uma instituição. Qual o segredo dessa produtividade?
Nos primeiros anos eram menos. Antes da pandemia, tínhamos abertura de exposição a cada 15 dias. Somos uma equipe grande com cerca de 50 pessoas, trabalhando em um sistema de trabalho muito inteligente. Todo projeto a gente começa com uma reunião presencial de no mínimo oito horas. Eu sempre acreditei nesse processo de criação procurando o estágio de exaustão. Uma planta dá seu melhor fruto depois de um período de estresse muito grande.
Quando você chega nessa exaustão, para um minuto para respirar e ter um alívio é quando surge a ideia que vinga. Cabe a mim desenhar estratégias de desenvolvimento, a curadoria e o roteiro de experiência - o que geralmente faço com algum especialista no assunto em que estamos trabalhando. As pessoas com quem trabalho também são muito bem treinadas e estão comigo há mais de 10 anos. Então, temos uma certa agilidade.
Você diz que o grande nó do Brasil é o tamanho da ignorância. Ao mesmo tempo, atrai centenas de milhares de pessoas para exposições de arte contemporânea. Seus projetos são tentativas de desfazer esse nó?
O Brasil é um terreno fértil. Existe uma uma enorme quantidade de pessoas sedentas por conhecimento e cultura. Esse público merece que a gente faça um lindo trabalho aqui. Eu acho que o maior erro de um curador é não agir de forma generosa com essas pessoas. Você pode falar algo extremamente sofisticado de uma forma que as pessoas entendam.
Eu acredito que a gente tem que dessacralizar o conhecimento e abrir portas para as pessoas, seja na arte moderna, contemporânea, na ciência. Se uma exposição não puder ser visitada pelo seu avô com seu neto e depois conversarem sobre o que viram, tem alguma coisa errada. Eu estou preocupado, sim, em atingir o maior número de pessoas possíveis. E fazer com que as pessoas gostem para que amanhã elas queiram ver outra exposição.
No sábado, 5 de março, abre a exposição "Portinari Para Todos". Como foi a escolha do artista?
A pergunta foi: como a gente faz um conteúdo que seja imersivo com um artista brasileiro? A resposta Portinari foi automática. É dele esse lugar. Ele foi o grande muralista do Brasil e o arquivo e o catálogo de suas obras estão totalmente organizados. A própria estética do Portinari permitiu que se trabalhasse com tecnologia.
Por exemplo, alinhamos pelo horizonte os trabalhos dele sobre a infância e foi construída uma nova pintura somando as obras. Tem uma beleza entender que cada uma dessas telas eram fragmentos de uma história maior. Eu tenho certeza que o Portinari ficaria felicíssimo de ver esse projeto. Ele era um cara que pensava grande. Ele queria atingir as massas.
Este projeto conta com uma série de patrocínios e leis de incentivos estatal e federal. Vivemos um momento de desmonte da Lei Rouanet. Qual a sua opinião sobre esses programas de incentivo fiscais em projetos culturais?
A Lei Rouanet foi um dos programas mais geniais que já foram criados. O Brasil é um exemplo para o mundo com o sistema de leis de incentivos. Na incapacidade de criar uma lei que cancelasse esses programas, o atual governo causou uma anemia neles que quase os inviabiliza. O que a cultura faz de tão mal às pessoas para que o governo deseje que ela não aconteça? Eu sou super a favor das leis de incentivo, acho que elas funcionam e são um mecanismo que faz com que todo mundo tenha de pensar a cultura. Empresários, corporações, instituições têm de refletir como querem usar este recurso que está disponível.
Foi difícil captar recursos para a exposição "Portinari para Todos"?
Difícil foi tratar com a Secretaria Especial da Cultura. O dinheiro está sobrando nas empresas. Porque as empresas não estão indo mal e a quantidade de projetos ofertados é bem baixa. O problema para captar recursos hoje está na burocracia do governo. A gente viveu isso em todos os projetos que estamos fazendo no MIS, na Bienal do Mercosul. Nossa preocupação era como conseguir as autorizações de captação para conseguir a verba a tempo de realizar os projetos.