Foi como se, aos 45 minutos do segundo tempo, ao perceber que um dos times poderia ganhar o jogo com a atuação de um goleador, o juiz expulsasse o atleta por ele estar usando uma chuteira verde. E, para justificar a decisão, até a regra do jogo seria mudada repentinamente.
Pode parecer exagero, mas foi exatamente isso o que o Banco Central fez com o WhatsApp ao mudar a circular de número 3.682, de 4 de novembro de 2013. “Nunca na minha vida vi o BC fazer isso”, diz um profissional do setor de meios de pagamentos ao NeoFeed.
Na prática, o BC determinou que Visa e Mastercard suspendessem o uso do WhatsApp para pagamentos e transferências. Sem as duas bandeiras, o aplicativo do Facebook não pode funcionar no País.
O BC alegou que “é necessário preservar um adequado ambiente competitivo, que assegure o funcionamento de um sistema de pagamentos interoperável, rápido, seguro, transparente, aberto e barato.”
Os mais puristas enxergam que o BC se preocupou porque o WhatApp poderia ameaçar a competição, dado o seu tamanho e alcance. E mais: os reguladores estariam preocupados com a questão da segurança de dados.
Os mais céticos enxergam além. O BC agiria para proteger seu produto que será lançado em novembro o PIX, uma plataforma de transferência instantânea. Ou seja, para garantir a reserva de mercado.
“O que fizeram foi barrar a inovação”, diz um executivo do mercado financeiro. Não é exagero. Tanto Visa como Mastercard vinham desenvolvendo soluções tecnológicas para a ferramenta há mais de um ano e meio.
Ambas as bandeiras estavam implementando a solução de cloud token na qual as informações de segurança ficariam na nuvem. O WhatsApp seria apenas o canal e o arranjo de pagamento seria feito pelas bandeiras.
Como o token ficaria na nuvem, isso possibilitaria com que transferências fossem feitas por qualquer dispositivo que tivesse WhatsApp. Até mesmo do carro. A cada transação, um novo token seria gerado pela Cielo, a empresa contratada pelo Facebook.
No mercado, há também a visão de que o projeto foi barrado por pressão dos grandes bancos. Mas um executivo que conhece o negócio diz que, neste caso específico, não foi isso o que aconteceu.
Que todos têm medo da entrada de uma big tech no mercado financeiro, não é novidade. Mas, como diz um tarimbado executivo com mais de 30 anos de mercado, “é melhor se unir a elas do que brigar com elas.”
Não se trata de um mero clichê. Na China, a Tencent, com o WeChat, e a Alibaba, com o Alipay, criaram ecossistemas próprios, com muita tecnologia, e atropelaram os grandes do setor financeiro. Hoje, ninguém consegue parar as duas gigantes.
Aqui, o Facebook estava se unindo a players do mercado. Foi barrado, é verdade, logo depois de entrar em campo. Mas a história mostra que, em algum momento, ele pode jogar em outra liga, sem perguntar para ninguém, e ganhar de goleada. É melhor não duvidar disso.
Em notas, Visa e Mastercard informaram que vão cumprir a solicitação do BC. A Mastercard acrescentou que está "focada no desenvolvimento de um ambiente de pagamentos mais inovador, inclusivo, seguro e competitivo para consumidores e empresas brasileiras”
A Visa, por sua vez, informou que está em seu DNA criar opções de pagamento interoperáveis, abertas e seguras e que está entusiasmada "com o potencial de meios de pagamento inovadores e abertos. Manteremos nosso trabalho para criar soluções inovadoras que aceleram a adoção de pagamentos digitais, beneficiando indivíduos, empresas e economias em geral."
Leia abaixo a circular do BC
CIRCULAR N° 4.031, DE 23 DE JUNHO DE 2020
Altera a Circular nº 3.682, de 4 de novembro de 2013, para dispor sobre condições para que arranjos de pagamento passem a integrar o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) em razão do risco ao normal funcionamento das transações de pagamentos de varejo.
A Diretoria Colegiada do Banco Central do Brasil, em sessão realizada em 23 de junho de 2020, com base no disposto nos arts. 9º, inciso I, e 15 da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, e tendo em vista o disposto na Resolução nº 4.282, de 4 de novembro de 2013,
R E S O L V E :
Art. 1º A Circular nº 3.682, de 4 de novembro de 2013, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 3º Caso o Banco Central do Brasil considere que determinado arranjo oferece risco ao normal funcionamento das transações de pagamentos de varejo com base no parâmetro definido no art. 6º, parágrafo único, inciso VI, da Resolução nº 4.282, de 4 de novembro de 2013, decidirá por sua integração ao SPB e oficiará seu instituidor sobre a decisão.
Parágrafo único. As normas aplicáveis aos arranjos que integram o SPB, inclusive quanto à eventual necessidade de autorização para funcionamento, passarão a se aplicar ao arranjo e a seu instituidor após 30 (trinta) dias, contados da data do recebimento da comunicação referida no caput, salvo se o Banco Central do Brasil especificar prazo diverso em sua decisão ou condicionar o início ou a continuidade das atividades do arranjo à obtenção de autorização.”
Art. 2º Esta Circular entra em vigor na data de sua publicação.
João Manoel Pinho de Mello
Diretor de Organização do Sistema Financeiro e de Resolução