O Brasil precisa mais que dobrar o ritmo médio anual de investimento em saneamento para atingir a universalização prevista pelo marco legal do setor, de 99% em abastecimento de água e 90% em esgotamento sanitário. O total de investimento necessário até 2033 é de R$ 537,6 bilhões.
Além disso, o País precisa reduzir os cerca de 2.100 lixões ou aterros controlados existentes no País, criar medidas para evitar as perdas de água na distribuição, que chegam a 40%, e apostar na capacitação dos gestores locais para melhorar os indicadores, como o de mapeamento de áreas de risco, inexistentes em dois terços dos municípios brasileiros.
Os dados fazem parte do estudo inédito preparado pela Imagine Brasil, uma iniciativa coordenada pela Fundação Dom Cabral (FDC). O relatório “Despoluição das águas interiores e costeiras: uma agenda essencial para a prosperidade do Brasil” apresenta dados e experiências nacionais e internacionais, sinalizando os caminhos necessários para o cumprimento do objetivo de universalização dos serviços de saneamento em 2033.
O relatório usou como base os dados do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), referentes ao ano 2021 e publicados em 2022 (SNIS, 2022) – os mais atualizados que existem. O estudo agregou outros levantamentos de organizações não-governamentais do setor, como do Instituto Trata Brasil.
Para Virgílio Viana, professor da Fundação Dom Cabral (FDC), superintendente-geral da Fundação Amazônia Sustentável (FAS) e um dos coordenadores do estudo, a universalização do saneamento no País até 2033 é possível, mas vai depender de um duplo desafio.
“Precisamos triplicar o esforço do ponto de vista financeiro e acelerar o processo de melhoria de gestão na mesma proporção”, afirma Viana, referindo-se à média anual necessária de investimento em saneamento, de R$ 44,8 bilhões – em 2021, foi de apenas R$ 17,7 bilhões.
De acordo com o SNIS, 16% da população brasileira ainda não possui acesso ao sistema de abastecimento de água, cerca de 40% não têm acesso à coleta de esgoto e somente 51% do esgoto gerado é tratado. Em números absolutos, isso representa mais de 34 milhões de brasileiros sem acesso à água potável e quase 93 milhões de pessoas sem coleta.
Apesar dos números do estudo, Viana lembra que o País não necessita sair da estaca zero na área de saneamento, citando alguns fatores, como o marco regulatório do setor, aprovado em 2020, que despertou o apetite de investimentos privados, e a ação positiva do BNDES, ajudando na modelação de projetos das empresas estatais de saneamento com gestão deficiente.
“Trata-se de um setor atraente para receber investimentos, temos tecnologia e não nos falta muita coisa, mas precisamos de uma estratégia agressiva para obter financiamento”, diz Viana, sugerindo a criação de um grande consórcio de bancos de fomento para levantar o meio trilhão de reais necessário para universalizar as metas de saneamento em dez anos.
O especialista da FDC cita o fato de dois bancos de fomento de importância global estarem sob direção de brasileiros: o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com Ilan Goldfajn, e o banco dos Brics, com a ex-presidente Dilma Rousseff. E o BNDES que, sob a nova gestão, tem se mostrado ativo na modelação de contratos e na oferta de financiamentos. “Existe grande liquidez no mundo, o que falta são bons projetos”, assegura.
Gestão ineficiente
O estudo chama a atenção por apontar prejuízos econômicos e sociais provocados pela gestão precária de saneamento, como contaminação da cadeia alimentar e de lençóis freáticos.
O fato de 48% do esgoto gerado ser devolvido à natureza in natura, por exemplo, além da manutenção de lixões, polui rios e córregos, causando doenças infectocontagiosas e gastrointestinais e impactando na evasão escolar e absenteísmo no trabalho.
Um estudo de 2023 do Instituto Trata Brasil, citado pelo relatório, com um ranking dos melhores e piores municípios com investimentos em saneamento, dá uma dimensão desse prejuízo.
No período de 2017 a 2021, os 20 melhores municípios apresentaram um investimento médio anual per capita de aproximadamente R$ 166,52 por habitante – cerca de 18% abaixo da média nacional exigida pela universalização. Já os 20 piores investiram um terço dos melhores e têm uma diferença de 73% em relação à média necessária para a universalização.
Os dados apontam ainda que as despesas com internação por doenças de veiculação hídrica dos seis melhores municípios são, em média, de R$ 61 mil. Dos seis piores municípios a média é de R$ 233 mil. Ou seja, além de não oferecer saneamento adequado, os piores municípios gastam quase quatro vezes mais com internações.
Para Viana, esse é um dos exemplos de como o País precisa avançar. “Precisamos convencer os gestores públicos que investir em saneamento é, antes de tudo, um bom negócio do ponto de vista financeiro”, diz.
O primeiro passo, segundo ele, é enfrentar o que chama de “desafio estrutural e cultural”: conscientizar os gestores públicos da necessidade de fazer um planejamento de longo prazo. “É um problema não só do Brasil como da América Latina, pensar além dos quatro anos de um mandato político”, observa.
Faz parte desse processo de conscientização, segundo ele, incutir um olhar sistêmico sobre a questão do saneamento, incluindo tratamento de resíduos, monitoramento de área de riscos e de eventos climáticos extremos. “Esse 2023 mostra a necessidade de olhar os eventos extremos não para 2049, mas desde já, como a seca na Amazônia, as inundações no Sul do País e o derretimento de gelo da Antártida”, observa.
Bons resultados
Viana diz que o marco regulatório do saneamento é um fator importante para manter o otimismo em relação à universalização, pois mostrou que o desafio vai além do debate ideológico - pró e contra a privatização de empresas estatais -, indicando onde faz ou não sentido privatizar.
“A Cedae era um caos, teve um grande salto de qualidade com a privatização, a Sabesp talvez nem precise desestatizar”, diz, acrescentando que os bons resultados obtidos com o marco ajudam a alimentar o otimismo.
“A Aegea desenvolveu no Rio de Janeiro uma grande tecnologia social, ao entrar na favela e criar uma cadeia de fornecedores da comunidade, tudo isso em meio ao contexto da milícia”, disse. “Estão trabalhando na despoluição da Baía da Guanabara; na mesma linha, a Sabesp está despoluindo o Rio Pinheiros.”
Outro efeito do marco regulatório citado por Viana foi criar uma resistência a mudanças no Congresso Nacional. “O governo Lula tentou desfazer o que tinha sido positivo, o Congresso reagiu e forçou o governo a voltar para a planilha: não é só a dimensão financeira, o marco chamou a atenção para a questão da gestão.”