(Reportagem atualizada às 22h18 de 31/05/2023 com informações sobre decisão do STF)

Após dez anos de idas e vindas, o projeto de construção da Ferrogrão - ferrovia de 933 km de extensão, ligando Sinop (MT) ao porto de Miritituba (PA), com orçamento previsto de R$ 22,9 bilhões - finalmente poderá sair do papel.

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que havia suspendido o projeto da ferrovia de forma liminar há dois anos, atendendo a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) impetrada pelo PSOL, assinou um despacho na noite desta quarta-feira, 31 de maio, que abriu caminho para uma solução negociada para a viabilização da ferrovia.

No despacho, Moraes manteve a suspensão do projeto, mas atendendo a uma manifestação da Advocacia-Geral da União, autorizou a retomada da análise dos estudos e processos administrativos relacionados à Ferrogrão, em especial os referentes a questões ambientais, alvo da ADIN – que alegava que o trajeto da ferrovia, projetada para seguir em paralelo à BR-163, atravessa o Parque Nacional do Jamanxim e afeta os povos indígenas que habitam a região.

Na época, o ministro Moraes suspendeu a lei alterando os limites do Jamanxim, que possibilitaria a construção da ferrovia. Ele alegou que a mudança de uma área de preservação, por meio de Medida Provisória baixada pelo governo, deveria ter sido feita por projeto de lei aprovado no Congresso Nacional.

No despacho desta quarta-feira, 31 de maio, Moraes deferiu um pedido da AGU para que o STF encaminhe a disputa para o Centro de Soluções Alternativas de Litígios (CESAL), órgão vinculado à Presidência do STF e voltado para demandas estruturais e litígios complexos que exigem técnicas e intervenções diferenciadas, “para que, no prazo de 60 (sessenta) dias apresente sugestões para solução da controvérsia”.

A saída abre uma nova etapa de discussões sobre a viabilidade da obra, que envolve não só questões ambientais, como econômicas - a Ferrogrão vai criar um corredor alternativo de escoamento de milho e soja pelo modal ferroviário, com impacto no preço de fretes.

“A proposta da AGU é importante por dar oportunidade de abrir a discussão sobre a importância da ferrovia para sistema de logística do Centro-Oeste e do Norte e esclarecer muita coisa errada, até em termos ambientais, que se fala sobre a Ferrogrão”, afirma Edeon Vaz Ferreira, diretor-executivo do Movimento Pró-Logística de Mato Grosso. “Outro fato importante é que independentemente da decisão no CESAL, ela será homologada pelo STF.”

Divisão no governo

Polêmica, a construção da ferrovia divide não apenas ambientalistas e o agronegócio, como o próprio governo federal. Os Ministérios dos Transportes e da Agricultura defendem a obra, enquanto o Ministério dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente são contra – repetindo outros embates recentes no interior do governo, como a exploração de petróleo na Foz do Amazonas.

Procurado pelo NeoFeed, o Ministério dos Povos Indígenas não se manifestou sobre o julgamento de hoje do STF.

Do ponto de vista logístico, os ganhos econômicos são indiscutíveis. A EF-170, nome técnico da Ferrogrão, terá capacidade de transportar até 52 milhões de toneladas de commodities agrícolas ao ano quando estiver finalizada.

Estudos do setor do agronegócio estimam uma redução de R$ 60 por tonelada transportada pela Ferrogrão no Mato Grosso em comparação ao modal rodoviário, muito utilizado para escoar a produção de grãos do agronegócio da região. A médio prazo, ela trará uma redução de US$ 1 bilhão por ano no custo logístico do estado.

“No Brasil, o valor do frete é considerado o mais caro do mundo, porque boa parte é feito por rodovias, e a produção do Mato Grosso está a mais de 2 mil km dos portos”, diz  Ferreira. Segundo ele, a produção de grãos do Mato Grosso utiliza quatro corredores de escoamento. Cerca de 45% da produção sai pela Ferronorte (EF-364), de 755 km de extensão, que vai de Rondonópolis (MT) até o porto de Santos.

Os outros três grandes corredores saem pela Região Norte, por rodovias federais. Uma boa parte pela BR-163 até o porto de Miritituba (PA), no Rio Tapajós, num trajeto paralelo ao da Ferrogrão.

Outra parcela da produção é escoada pela BR-364, que vai até Porto Velho, e uma pequena parte utiliza a BR-158, que passa por Pará e Tocantins até atingir um ramal da Ferrovia Norte-Sul, concluída na semana passada, em direção ao porto de Santos.

Ferreira diz que a maior vantagem da Ferrogrão será aumentar a competitividade do custo do frete em relação ao do modal rodoviário. “Há também o ganho ambiental, pois um comboio de 160 vagões pela Ferrogrão transportaria 16 mil toneladas, substituindo 400 caminhões”, diz Ferreira.

Entre os que atacam o projeto, as principias objeções dizem respeito à provável ocupação ilegal das terras indígenas próximas à ferrovia e à implantação do terminal de transbordo, que causaria desmatamento e mais emissões de carbono no coração da Amazônia.

Modelagem

Para Marcus Quintella, diretor da FGV Transporte, da Fundação Getúlio Vargas, a Ferrogrão traria um impacto relevante por se situar numa região carente de transporte e por oferecer custo logístico baixo para escoar a produção pelo Arco Norte. “Dos portos do Pará sairia para o Canal do Panamá e de lá para Ásia”, diz.

Segundo ele, o trajeto tem poucos acidentes topográficos, se comparado ao da Serra do Mar, na chegada ao porto de Santos, por exemplo. Quintella, no entanto, tem uma avaliação crítica do projeto, que segundo ele não traz o custo real da obra, calculado em cima da execução sem levar em conta outros riscos, incluindo políticos.

“Tudo vai depender da modelagem do projeto final, que terá de ter dinheiro público para sair do papel”, adverte, citando como opções uma concessão ou uma Parceria Público-Privada (PPP), com aporte público e privado no início da obra.

Ele chama a atenção para a dependência que o projeto final terá de ter continuidade política. “O projeto não pode ser modificado e precisa de ter fundo garantidor para evitar problemas, como de cumprimento de prazo e desperdício de dinheiro público.”

O projeto da Ferrogrão foi elaborado em 2013 por uma empresa privada, EDLP (Estação da Luz Participações). Tradings, produtores de grãos e empresários do agronegócio do Mato Grosso bancaram R$ 60 milhões pelo desenvolvimento do estudo de viabilidade, que contém 4 mil páginas e 700 plantas de engenharia.

Submetido a consulta pública pelo governo federal entre outubro de 2017 e maio de 2020, o projeto da Ferrogrão acabou empacando na Justiça. Se a obra for autorizada, o governo federal deverá fazer um leilão de concessão de 69 anos.