O novo presidente da Argentina, Javier Milei, incutiu uma dúvida entre seus eleitores, analistas econômicos e adversários políticos no breve período de três semanas entre sua vitória no segundo turno da eleição presidencial, quando obteve 55,5% dos votos, e sua posse, marcada para domingo, 10 de dezembro.
Após uma maratona de articulações e declarações polêmicas, a dúvida é qual Milei vai despachar na Casa Rosada, a sede do Poder Executivo, a partir de segunda-feira?
O da campanha eleitoral, que xingou políticos e o papa Francisco, e prometeu usar uma motosserra para cortar os gastos do governo, além de fechar o Banco Central, dolarizar a economia e cortar relações diplomáticas com o Brasil e a China?
Ou o presidente eleito durante a transição, que deixou de lado o discurso radical, se aproximou de políticos que denunciava como integrantes de uma “casta”, como o ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), avisou que a dolarização da economia será “a médio prazo”, destituiu seu principal assessor econômico (que seria encarregado de fechar o BC), convidou Lula e o Papa para a posse e enalteceu os laços do país com a China?
A guinada levou o jornal La Nación a ironizar o apelido de “Leão” que Milei carrega desde a infância: “À medida que o dia 10 de dezembro se aproxima, o ‘Leão’ não é mais exclusivamente um carnívoro”, escreveu o jornal, em editorial.
De acordo com especialistas ouvidos pelo NeoFeed, a metamorfose de Milei dá a dimensão do enorme desafio que ele terá para governar um país afundado na crise econômica, com inflação de 147% em novembro, o peso perdendo 90% do seu valor em um ano e duas em cada cinco pessoas vivendo na pobreza.
Eleito por argentinos mais irritados com o establishment político do que simpáticos à sua visão libertária ultraliberal, Milei amenizou o discurso para, literalmente, não queimar a largada de seu governo – sincero, já deixou claro que “os próximos seis meses serão muito difíceis para os argentinos”, numa indicação que deve adotar uma terapia de choque para reorganizar a economia do país.
“A moderação adotada na montagem da equipe e adiamento de medidas polêmicas, como a dolarização e o fechamento do BC, refletem a necessidade de Milei de ampliar sua base de apoio, não só com o grupo de Macri, mas principalmente no Congresso”, afirma a economista Elisabeth Bacigalupo, da consultoria argentina ABECEB.
Novato na política (foi deputado federal por apenas dois anos, antes de se candidatar), o novo presidente argentino tem apoio de pouco mais de 15% da Câmara dos Deputados e 10% do Senado.
“Milei sabe que não tem quadros suficientes para tocar a gestão nem apoio mínimo no Congresso para aprovar as reformas econômicas”, diz a economista da ABECEB, lembrando que o grupo de Macri não assegura maioria parlamentar. “Ele vai precisar de respaldo até de setores peronistas.”
Economistas de Macri
A guinada de Milei começou a ficar clara durante o processo de montagem de seu governo. O novo presidente argentino prometeu reduzir seu ministério de 18 para oito pastas, o que eliminou a possibilidade de distribuir cargos em troca de apoio político.
Neste aspecto, é preciso reconhecer, entre os principais nomes anunciados para os ministérios, poucos têm experiência política – a maioria veio do setor privado ou ocupava cargos técnicos em órgãos do governo.
Na área econômica, porém, Milei deu preferência a nomes com alguma experiência em governos ou respeitados pelo mercado. Foi nessa área que ele cooptou economistas ligados a Macri, maior liderança política de centro-direita no país.
De cara, Milei livrou-se de dois dos principais assessores econômicos da campanha, Emilio Ocampo - que comandaria o Banco Central (para fechá-lo) - e Carlos Rodríguez, que chefiaria o conselho econômico do governo.
O novo presidente argentino decidiu entregar a chave do Ministério da Economia a Luis Caputo, que assessorava Milei há um ano, por meio de sua consultoria Anker Latinoamérica.
O novo ministro da Economia não é um defensor da promessa de campanha de Milei de dolarizar a economia argentina nem é especialista em macroeconomia, como a maioria dos economistas que ocupam o cargo.
Durante o governo Macri, como ministro das Finanças, Caputo foi responsável por abrir o acesso do país ao crédito. Em 2016, concordou em pagar mais de US$ 9 bilhões a credores resistentes para restaurar o acesso da Argentina aos mercados de capitais internacionais.
A confiança do mercado evaporou-se em 2018, levando Macri a contrair um empréstimo recorde mundial de US$ 57 bilhões do FMI - a Argentina deixou de pagar os títulos e outras dívidas em 2020.
As tensões entre Caputo e os responsáveis do fundo levaram-no a deixar a liderança do banco central depois de apenas três meses, em 2018, no meio da recusa do FMI em permitir a libertação de fundos adicionais para intervir nos mercados cambiais.
No cargo, Caputo deve enfrentar a renegociação do problemático acordo de US$ 43 bilhões da Argentina com o FMI, no qual o país não cumpriu boa parte das suas metas.
Para o Banco Central, Milei anunciou Santiago Bausili, que foi subsecretário da Fazenda entre 2016 e 2017 durante o governo Macri, tornando-se secretário da Fazenda até dezembro de 2019.
Sócio de Caputo na consultoria Anker, Bausili trabalhou no Deutsche Bank como diretor de originação de dívidas, e no J.P. Morgan, cobrindo mercados de capital e marketing de derivativos da Argentina, Chile e Peru.
Governabilidade
Para a economista Elisabeth Bacigalupo, a aproximação de Milei ao grupo de Macri é uma jogada arriscada, mas previsível do novo presidente argentino.
“Os objetivos de ambos estão alinhados mirando o médio prazo, mas, em política, os equilíbrios mudam”, diz, lembrando que os resultados da gestão e as diferenças vão definir se haverá uma aliança definitiva.
Analistas argentinos acreditam que Milei terá o prazo até as eleições legislativas de 2025 para adotar medidas para recuperar a economia argentina. Se até lá não conseguir mudar o quadro, a situação política tende a ficar instável.
O economista Carlos Honorato, professor da FIA Business School, chama a atenção para as semelhanças entre a eleição de Milei e a de Fernando Collor, que foi presidente do Brasil entre 1990 e 1992, quando foi afastado após um processo de impeachment.
“São dois populistas de direita, de fora da elite política, que foram eleitos num quadro de crise econômica grave”, afirma Honorato. Segundo ele, Milei precisa ficar atento para não repetir os erros de Collor, que era personalista e não conseguiu criar uma base de apoio no Congresso.
“Algumas medidas do Milei são radicais, mas talvez a dolarização não seja tão necessária no curto prazo, e sim soltar as amarras do câmbio, trazer os preços para um nível real e tentar um novo equilíbrio para uma economia que está distorcida”, diz.
Resta saber como o novo presidente argentino vai conciliar um tom moderado adotado recentemente ao seu conhecido temperamento explosivo.
"Os líderes políticos mudam de ideologia por conveniência, interesses ou circunstâncias, mas não modificam sua personalidade", diz o veterano cientista político Rosendo Fraga, em entrevista à agência AFP.
Segundo ele, Milei precisa tomar a frente nas decisões, para não deixar criar espaços de poder paralelos em seu governo, e mostrar paciência política, “pois os parlamentares exigem tempo e atenção para aprovar medidas duras”.
Neste sentido, muitos apostam que é uma questão de tempo para que o presidente argentino volte a insultar o presidente Lula – a quem chamou de “corrupto” na campanha – ou a desdenhar da China, segundo maior parceira comercial do país, atrás apenas do Brasil.
Humildade, pelo menos, ele está tentando demonstrar. Ao ser eleito, quando fez as pazes com o papa Francisco (a quem chamara de “comunista”), ouviu do Sumo Pontífice que liderar a Argentina exigiria coragem e sabedoria.
“Eu respondi que a coragem eu já tenho”, disse Milei. “Mas ainda estou trabalhando na sabedoria.”