Enquanto o mundo passava por turbulências vindas por todos os cantos em 2022, com o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) dando início a um forte aumento dos juros, a Rússia invadindo a Ucrânia e a China adotando uma postura mais incisiva em termos geopolíticos, os investidores estrangeiros encontraram no Brasil um porto seguro para investir.
Longe de conflitos, com um ciclo de aperto monetário encaminhado e valuations baixos, a B3 viu uma chegada maciça de recursos. O fluxo de capital estrangeiro na Bolsa brasileira foi de R$ 119,8 bilhões no ano passado.
Mas esse encantamento está começando a rachar, diante das dúvidas sobre o futuro da política fiscal, o que pode fazer com que a Taxa Selic (atualmente em 13,75% ao ano) tenha de permanecer em patamares elevados por muito mais tempo.
A avaliação é de Stephen Dover, estrategista-chefe de mercado da Franklin Templeton Institute, organismo que produz insights e dialoga com as diferentes gestoras que estão sob o guarda-chuva da holding americana, que conta com US$ 1,5 trilhão em ativos sob gestão pelo mundo.
“Os estrangeiros estavam mais otimistas quando se olha para a primeira metade do ano, por causa dos valuations relativos”, diz ele em entrevista ao NeoFeed. “Mas, desde as eleições, houve uma forte mudança em direção à cautela.”
Mesmo sendo americano, trabalhando da Califórnia, Dover conhece bem o Brasil. Ele se mudou para o País em 1997 para atuar como CIO da joint venture constituída pela gestora americana com o Bradesco, a Bradesco Templeton Asset Management. Em 2006, os americanos adquiriram a participação do banco brasileiro e a gestora mudou sua denominação para Franklin Templeton Investimentos.
Durante os quase cinco anos em que esteve no País, ele adquiriu um conhecimento profundo sobre como funciona a economia e o mercado de capitais local. Segundo ele, nos últimos 25 anos, o País melhorou em muitos aspectos, mas permanece empacado em diversas questões, como é o caso da política fiscal, o que acaba prejudicando seu posicionamento no mundo.
“Olhando para o Brasil sob o ponto de vista de investidor, é diferente do que olhar para qualquer outro país, por conta dos juros elevados, tornando a renda variável menos atrativa do que a renda fixa”, afirma.
A situação, inclusive, faz com que Dover veja melhores oportunidades de investimentos em outros emergentes, especialmente na Ásia. Além do Brasil, ele também tem profundo conhecimento sobre mercados emergentes, tendo sido CIO da parte de mercados emergentes da Franklin Templeton.
Em 2016, ele assumiu as responsabilidades de administração da Templeton Emerging Markets Group no lugar de Mark Mobius, ícone do mundo de gestão de recursos que popularizou os investimentos em mercados emergentes. E desde fevereiro de 2021 ele está no cargo de estrategista-chefe de mercado da Franklin Templeton Institute
Para ele, as circunstâncias fiscais brasileiras devem manter a renda fixa como o principal destino dos recursos estrangeiros. Mas diferente do que ocorria no passado, quando só havia títulos públicos, ele vê boas oportunidades de investimentos no mercado de dívida corporativa local.
Dover falou com o NeoFeed também sobre as perspectivas das economias americana e chinesa e quais as recomendações da Franklin Templeton para 2023. Acompanhe os principais trechos da entrevista:
Como você avalia o desempenho da economia global?
A maioria dos países esqueceu o que é inflação, acreditando que o período de inflação baixa que vivemos seria algo permanente. Foi um choque no sistema, e os especialistas ficaram confusos sobre se era algo provocado pela pandemia ou se tinha algo de estrutural. Poucas pessoas no mercado tinham qualquer experiência com o tema, tendo passado por isso nos anos 1970 e 1980. Se olharmos para as previsões econômicas de um ano atrás, quase todas estavam erradas, subestimando a inflação, a necessidade de elevar os juros e o que aconteceria com as empresas growth.
E o Brasil? Muitos economistas e gestores afirmam que o País conseguiu se descolar dos problemas que os outros países enfrentavam…
Os mercados estavam bastante inseguros com o Brasil em 2022, principalmente por causa das eleições e quem ganharia, pelo impacto que teria na economia. Se formos olhar para os investidores estrangeiros neste momento, acredito que, em geral, existem muitas coisas positivas no Brasil. Os valuations estão bastante atrativos, o que seria um bom motivo para os estrangeiros estarem atraídos pelo Brasil. Por outro lado, existem muitas incertezas a respeito do Brasil, com um risco muito elevado relacionado à política e à situação fiscal. E com ambos pesando bastante, o Brasil acaba sendo o lugar menos preferido para investir. A capitalização de mercado do Brasil no mundo, nos índices de mercados emergentes, está muito baixa desde quando eu estava aqui, há 25 anos, sendo menos de 10% do MSCI. Uma coisa triste para mim é que o Brasil não é falado globalmente tanto quanto já foi, porque olhando para os últimos 25 anos, a principal história foi a da China.
Como você vê o País desde a época em que morou aqui? A mudança foi para melhor ou para pior?
Mudou em alguns pontos, mas em muitos outros não houve muitas mudanças. O período de 1996 e 1997 foi um momento de esperança no Brasil, mas infelizmente não acho que o Brasil avançou tanto quanto se esperava nos últimos 25 anos. Eu estava aqui para ajudar a expandir o mercado doméstico e uma das questões em que estive profundamente envolvido era a governança corporativa. Comparado com algumas coisas que ocorriam em 1997, em termos de como a indústria de gestão de ativos funcionava, houve melhoras drásticas em termos de transparência.
Quais?
O Novo Mercado ajudou a melhorar dramaticamente a situação. O mercado brasileiro é único, ele é mais volátil que a maioria, e quando eu estava aqui, ele subiu e desceu, tendo uma das maiores taxas de juros no mundo; e ele ainda tem isso atualmente. Olhar para o Brasil sob o ponto de vista de investidor é diferente de olhar para qualquer outro país, por conta dos juros elevados, o que torna a renda variável menos atrativa do que a renda fixa.
"existem muitas incertezas a respeito do Brasil, com um risco muito elevado relacionado à política e à situação fiscal. E com ambos pesando bastante, o Brasil acaba sendo o lugar menos preferido para investir"
No ano passado houve um fluxo positivo de investimentos estrangeiros na B3, muito atribuído à instabilidade geopolítica, enquanto investidores locais demonstravam mais receio. Por que a percepção externa mudou rapidamente?
Os estrangeiros estavam mais otimistas na primeira metade do ano, por causa dos valuations relativos, o Brasil parecia bem. Com a chegada das eleições, o mercado não tinha uma forte preferência por algum candidato. Vale lembrar que os mercados tinham uma visão positiva de Lula por conta do primeiro mandato. Mas, desde a eleição, houve uma forte mudança em direção à cautela. O prêmio de risco do Brasil, do ponto de vista do estrangeiro e também do investidor local, aumentou significativamente, com muita preocupação sobre o que vai ocorrer no lado fiscal e, particularmente, com a inflação. Então, os mercados passaram de uma visão positiva para uma mais cautelosa. Eu estou um pouco preocupado que os mercados possam começar a ficar negativos com o Brasil. Não acho que estamos neste momento, mas existe um risco.
Diante disso, qual é a expectativa para a economia brasileira e como você lê os primeiros sinais enviados pelo governo Lula a respeito da situação fiscal?
Não sou especialista em economia brasileira, mas o que percebo dos meus colegas aqui é que a inflação não está desacelerando tanto quanto poderia, permanecendo elevada, e isso é uma preocupação. O que percebo dos meus colegas é que existe muita preocupação a respeito da situação fiscal, embora permaneçam cautelosamente otimistas. É difícil fazer uma declaração forte sobre o Brasil, por conta das dúvidas. A consequência é que se sua alocação ao Brasil seria de US$ 100, o conselho é entrar com 25% desse valor e olhar para outras oportunidades, porque deve ter muita volatilidade. Existem muitos aspectos positivos, como o valuation, a perspectiva de reabertura da China, houve mudanças regulatórias positivas nos últimos anos, mas a preocupação é com o risco desconhecido que está adiante. A situação no Brasil pode mudar rapidamente, para o bem e para o mal. E essa é a história do Brasil, não é?! O País é bastante volátil. Mas, infelizmente, o que vejo é o Brasil não sendo um lugar em que os estrangeiros querem estar overweight (comprados) neste momento.
Não fossem as incertezas fiscais, você acredita que o Brasil estaria no centro das atenções dos investidores estrangeiros?
O Brasil seria uma grande oportunidade, porque está barato e tem potencial para crescimento. O País possui muita oportunidade reprimida para crescimento, de uma forma que outros países que já experimentaram crescimento não tem mais. Ao longo dos meus 25 anos de história com o Brasil, o que percebo é que o País avança de supetão. Do ponto de vista da renda variável, para ser bem sucedido no Brasil, é muito importante saber quando estar dentro ou fora do mercado. Aqui, não existe a perspectiva de que o mercado vai valorizar, enquanto em outros países, só de se estar no mercado você consegue o beta de uma forma que não se consegue no Brasil. Por isso faz muito sentido estar em renda fixa no Brasil.
"É difícil fazer uma declaração forte sobre o Brasil, por conta das dúvidas. A consequência é que se sua alocação ao Brasil seria de US$ 100, o conselho é entrar com 25% desse valor e olhar para outras oportunidades, porque deve ter muita volatilidade"
O que você espera para os Estados Unidos em 2023?
O principal tema que temos entrando em 2023 continua sendo a inflação. Vemos ela desacelerando, mas não para o nível de 2%. A primeira redução é relativamente fácil, mas chegar a 2% será difícil. Isso significa que o Federal Reserve estava atrasado, isso já não é mais discutível. O quanto ele deveria ser duro é discutível. A questão é quanto eles conseguirão reduzir a inflação e se isso vai causar uma recessão. Essa é a grande questão. A outra é se ela será moderada ou se será mais dura. Nossa visão é de que haverá uma recessão e que ela será moderada, mas economistas são conhecidos por não conseguirem prever recessões. Uma recessão moderada é provavelmente a maior possibilidade, mas é preciso olhar do ponto de vista de risco. É preciso considerar a possibilidade de uma situação mais dura, e isso acontece por algo não esperado. Nós vivemos em um mundo em que se endividar não era caro e muitas pessoas tomaram muitos recursos e alavancaram seus retornos, e isso é o que normalmente quebra todo o sistema.
E a China? O que esperar do país?
A China é a principal incógnita. Ninguém sabia que eles seriam tão duros no combate à covid-19 e, de repente, eles reabririam. Estive na China pela primeira vez em 1982, e já fui muitas vezes, tendo inaugurado nosso escritório no país. Fui bastante otimista com a China por muito tempo, mas nos últimos anos meu entusiasmo diminuiu, por causa das diversas mudanças na China. Mas o país é contracíclico em relação ao mundo e esperamos que a crise de covid-19 na China não seja muito séria, embora aparente ser. A China tem a oportunidade de ter um crescimento bastante significativo indo adiante, e isso puxará os mercados emergentes, incluindo o Brasil.
E a situação dos mercados emergentes em geral? Os investidores estrangeiros ainda estão preocupados com as turbulências geopolíticas?
Os mercados emergentes foram relativamente bem no passado, comparado com outros mercados, mas os Estados Unidos foram de longe o melhor mercado. Tem a questão do dólar, porque os investidores pensam em retorno em dólares e o dólar está muito forte. Com isso, teve menos entusiasmo com os mercados emergentes. Para mim, a grande mudança nos mercados emergentes está sendo em renda fixa.
Por quê?
Há 25 anos, não existia praticamente nenhum investimento. No Brasil, quando se investia era em títulos públicos ou em Brady Bonds [títulos de dívida externa de países emergentes]. Agora, existe muito interesse em instrumentos locais em todos os emergentes. Eu acho que essa é a grande história e nós estamos positivos com relação à dívida dos mercados emergentes, só que muito mais com dívida asiática do que brasileira neste momento. Não estamos com overweight em dívida brasileira, mas estamos no mercado de dívida asiática. No caso da renda variável, estamos relativamente positivos com os mercados emergentes, que em geral fizeram um bom trabalho de lidar com inflação e não foram fiscalmente irresponsáveis.