O Brasil é, de fato, um país a ser estudado. Ainda mais quando se analisa o comportamento do Poder Legislativo e sua inabalável capacidade de criar jabutis e insegurança jurídica para empresas.
A nova grande "ideia" dos deputados que formam o grupo de trabalho da reforma tributária foi incluir o carro elétrico na lista do Imposto Seletivo, o chamado imposto do pecado - que prevê sobretaxa a produtos que fazem mal à saúde e ao meio ambiente.
Na prática, estão dizendo, contra todos os estudos, que o carro elétrico faz mal ao meio ambiente. Detalhe: os caminhões, aqueles mesmos movidos a combustíveis fósseis, que disparam fuligem Brasil afora, foram retirados da lista.
Pior ainda: o mesmo carro elétrico havia sido incluído na proposta original da Emenda Constitucional 132, aprovada em dezembro do ano passado. A produção do veículo elétrico seria incentivada com crédito presumido.
Isso quer dizer que, para os carros elétricos, os deputados estão criando uma estrada cheia de buracos e fértil para contestações jurídicas. A sugestão de excluir caminhões partiu do governo federal, “porque o Brasil é um país rodoviário”, na justificativa do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG).
Com pressões que refletem o lobby de vários setores da atividade produtiva, o grupo de trabalho da reforma apresentou nesta quinta-feira, 4 de julho, um texto substitutivo - o Projeto de Lei Complementar 68/2024 - prevendo alterações sensíveis na regulamentação do novo arcabouço tributário.
O novo texto foi ajustado tendo como base a Emenda Constitucional 132 e as sugestões enviadas pelo governo em abril.
Três tributaristas ouvidos pelo NeoFeed, porém, apontaram erros conceituais no enquadramento de produtos e serviços na lista do imposto seletivo, entre eles o dos carros elétricos, e advertiram que o texto, se for aprovado como está, deverá gerar judicialização.
O texto apresentado servirá de base para instituir o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS) - ou seja, o modelo de tributação dos produtos sob o novo imposto unificado, chamado de IVA (Imposto sobre Valor Agregado).
A expectativa é de que o texto seja submetido ao plenário da Câmara na próxima semana, daí a expectativa com a classificação dos produtos.
Dupla pressão
A maior polêmica ficou centralizada na lista do imposto seletivo, cuja pressão para ser ampliada refletiu tanto o interesse de setores enquadrados em outras categorias para obter redução tributária – uma vez que a redução de alíquota de um produto exige o aumento da alíquota de outro para não elevar a carga tributária - como do governo federal, para aumentar a arrecadação.
Aristóteles de Queiroz Camara, sócio do escritório Serur Advogados, aponta duas contradições dessa lista do IS. A primeira é que ela fere a lógica na criação desse tipo de imposto – desestimular o consumo de um bem prejudicial à saúde e ao meio ambiente, o que não é o caso do veículo elétrico (VE).
“A segunda contradição está no próprio texto do PLP 68 apresentado, que manteve a versão anterior, prevendo que o regime automotivo vai dar crédito presumido (CBS) para incentivar a produção de veículos elétricos, mas em outro trecho incluiu essa categoria na lista do imposto seletivo, com sobretaxa”, diz Camara.
“De um lado, afirma que deve-se estimular a produção de VE e reduzir sua tributação, e de outro entende que esse veiculo é prejudicial e deve ser desestimulado, ou seja, acelera numa direção e desacelera em outra”, acrescenta.
Outro tributarista, Ranieri Genari, especialista em Direito Tributário pelo IBET, observa que a subjetividade do fato gerador para incluir produtos na lista de IS já vinha sendo contestada desde a elaboração da PEC.
“Em direito tributário, subjetividade gera conflito e, potencialmente, judicialização”, adverte, apontando que a lei vai contra as diretrizes de todos os países do mundo de incentivar os veículos elétricos. Genari prevê que os setores insatisfeitos tendem a repetir mais para frente uma velha estratégia usada para escapar de taxações elevadas de IPI, reclassificando produtos para atingir outra classificação fiscal.
Para Raphael Okano, sócio do CTM Advogados, as contradições da proposta apresentada espelham a forma com que esse substitutivo foi discutido, a portas fechadas e com pressão de lobbies. “O imposto seletivo foi completamente desfigurado, já nasceu inconstitucional e seguramente vai gerar judicialização”, adverte.
"Cerveja não é pecado"
A lista final do IS incluiu veículos automotores, aeronaves e embarcações, cigarro, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas, bens minerais (como petróleo e minério de ferro) e jogos de azar (físicos e digitais).
No caso das bebidas alcóolicas, a versão final manteve a expectativa de estabelecer alíquotas diferentes de acordo com o teor alcoólico – assim, imposto cobrado da cerveja tende a ser menor do que o cobrado de destilados, como vodka e cachaça.
O setor ainda pleiteia a isenção aos fabricantes enquadrados no Simples Nacional, o que beneficiaria os pequenos produtores de todas as bebidas alcoólicas. Para pressionar os deputados, a Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva) lançou uma petição contra o IS. A iniciativa usa o slogan “Cerveja não é pecado” para recolher assinaturas de internautas.
Outro lobby, o das proteínas animais, não conseguiu a inclusão de carnes na lista de isenção de impostos da cesta básica. O presidente da Câmara, Arthur Lira, já havia avisado que barraria a proposta, mantendo a versão original, que enquadrou as proteínas animais na alíquota reduzida, com desconto de 60% do novo IVA.
Já os itens considerados de luxo, como salmão e foie gras, pagarão a alíquota cheia, projetada em 26,5%. O grupo de trabalho da Câmara também anunciou a retirada do Viagra e a inclusão de absorventes da lista de produtos médicos com imposto zero.
A proposta apresentada também prevê a devolução de parte do imposto pago, o chamado cashback. A medida irá beneficiar, em especial, famílias com renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo. Além de 50% de cashback para a conta de luz e de água no imposto federal, haverá 100% de cashback para o gás de cozinha no mesmo tributo. Mas a proposta ainda vai passar por ajustes.