O presidente chinês Xi Jinping preparou uma cerimônia ufanista nesta quarta-feira, 18 de outubro, para marcar os dez anos de seu maior projeto no cenário global, a Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI, na sigla em inglês).
Trata-se de uma estratégia de abrir rotas comerciais bilaterais por terra e mar, conectando Ásia, África e Europa, também conhecida como Rota da Seda, numa referência à expansão comercial chinesa iniciada há seis milênios.
Inaugurado em 2013, no começo do seu primeiro mandato, o programa movimentou US$ 19,1 trilhões em bens comercializados entre a China e os 150 países que fecharam acordos com Pequim na última década, além de US$ 1 trilhão em obras de infraestrutura em vários países, em especial da Ásia e África, com financiamento de bancos públicos e privados chineses.
De quebra, com a estratégia, Xi deu mais relevância geopolítica aos Brics, o grupo de países formado por cinco grandes economias emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que recentemente ganhou seis novos membros.
Se os resultados da BRI foram um sucesso para Xi, a cerimônia na capital chinesa expôs o isolamento no Ocidente vivido pelo presidente chinês. Pouco mais de duas dezenas de países mandaram representantes, contra 37 do último evento semelhante, em 2019, antes da pandemia.
O presidente chinês, no entanto, não perdeu a oportunidade para mandar um recado ao Ocidente. Segundo ele, a BRI trouxe uma nova configuração ao comércio global.
“Não estimulamos confronto ideológico, não promovemos rivalidade geopolítica e não fazemos política de bloco”, disse Xi, apontando para as sanções unilaterais, a dissociação econômica e outras ferramentas das quais acusa os Estados Unidos de explorarem para conter o avanço chinês. “O que foi alcançado nos últimos 10 anos demonstra que a cooperação da BRI está do lado certo da História.”
Por outro lado, o presidente chinês fez um afago ao Ocidente ao anunciar que a China estava “aberta ao investimento estrangeiro”, prometendo reverter, sem fornecer detalhes, todas as restrições ao investimento de fora no setor industrial – há muito um ponto sensível para as empresas estrangeiras que procuram fabricar produtos no país.
A cerimônia foi realizada no mesmo dia em que órgão oficial de estatísticas da China anunciou que o Produto Interno Bruto (PIB) do país cresceu 4,9% no terceiro trimestre em relação ao ano anterior - resultado maior que a expectativa do mercado (4,4%) e próximo da meta anual do país, de 5%.
Estratégia vitoriosa
Para Paulo Gala, economista-chefe do Banco Master e professor da Fundação Getúlio Vargas, o líder chinês tem motivos para comemorar os bons números obtidos por seu grande projeto. Segundo ele, quando Xi assumiu, a China precisava diversificar o investimento nos anos anteriores em títulos do Tesouro dos EUA, que somavam US$ 4 trilhões.
“Com a Iniciativa do Cinturão e da Rota, ele conseguiu, por um lado, criar um fluxo de importação de commodities que o país precisava para acelerar sua indústria e, por outro, uma rota de exportação dos produtos chineses, usando parte das reservas em dólares para isso”, diz Gala. “Ou seja, matou três coelhos numa cajadada.”
A estratégia de ampliar as trocas comerciais das quais o país era dependente para importar matéria-prima e exportar produtos foi avançando em meio ao acirramento da tensão com os EUA, principalmente durante o mandato do presidente americano Donald Trump (2017-2021), com a guerra de tarifas entre os dois países.
Com isso, Xi driblou a queda exportações e importações com os EUA – que atrapalhou o escoamento do excesso de capacidade das empresas chinesas –, investindo em infraestrutura no Terceiro Mundo e apostando em novos parceiros.
Os gasodutos da Ásia Central e da Rússia - e as importações de petróleo da Rússia, Iraque e Omã - reduziram a dependência chinesa do Japão, da Coreia do Sul e dos EUA, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS).
O Brasil foi um dos beneficiados por essa disputa entre as duas superpotências econômicas. A China, que importava grãos dos EUA, passou a comprar mais soja e outras commodities agrícolas do Brasil.
“Hoje, a China já responde por um terço da pauta de exportações brasileiras, sendo que o nosso agro compete pouco com os EUA”, diz Gala. “Por outro lado, a China foi entrando silenciosamente aqui, investindo no setor financeiro, de energia e, mais recentemente, nos carros elétricos.”
Países endividados
Mas nem tudo deu certo na estratégia chinesa. A internacionalização do yuan, por exemplo, ainda não se consolidou. Outro problema foi o endividamento de países do Terceiro Mundo com os projetos de infraestrutura da BRI, que saíram do papel a toque de caixa.
Diferentemente do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), os empréstimos bancados pelo Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB, na sigla em inglês) – a instituição financeira multilateral criada por Pequim para fazer frente aos bancos de fomento ocidentais – e por bancos privados chineses cobram juros próximos ao de mercado.
Hoje, a China é o maior credor internacional do planeta. Países como Sri Lanka, Ilhas Maldivas, Laos e Quênia enfrentam dificuldades em pagar o que devem. A China reestruturou os empréstimos da BRI, prolongou os prazos e desembolsou cerca de US$ 240 bilhões para aliviar os pagamentos antecipadamente. Mas recusou-se a cancelar a dívida.
Além disso, muitos projetos da BRI de infraestrutura foram acusados de criar “elefantes brancos” inúteis, de alimentar a corrupção local, de exacerbar os problemas ambientais e de não cumprir as promessas de trazer empregos e prosperidade às comunidades locais.
Um estudo recente realizado pelo laboratório de pesquisa Aid Data descobriu que mais de um terço dos projetos enfrentam esses problemas. Uma reação crescente levou alguns países como a Malásia e a Tanzânia a cancelar acordos da BRI.
Para Victor Shih, professor da Universidade da California em San Diego e especialista em economia chinesa, as dívidas elevadas desses países colocam em xeque a validade do investimento em infraestrutura.
“Embora boa parte dessas obras possam contribuir para o crescimento econômico desses países nos próximos anos, o fluxo de receitas fraco aliado à necessidade de desviar o dinheiro para pagamento do serviço da dívida tende a diminuir os ganhos decorrentes com a melhoria em infraestrutura”, diz Shih, em entrevista ao NeoFeed.
O ciclo de investimentos em infraestrutura da BRI está próximo do fim, até mesmo pelo esgotamento do modelo. Recentemente, ficou claro que o governo chinês aposta em duas vertentes do seu programa. Uma delas é por meio de projetos de baixo investimento e alto rendimento.
Os exemplos dados pelos meios de comunicação estatais incluem programas de tecelagem de bambu na Libéria, projetos de tecnologia de biogás em Tonga e Samoa e promoção da tecnologia de cultivo de cogumelos em Fiji, Papua Nova Guiné e Ruanda.
Outra aposta é uma nova “rota da seda digital” focada nas telecomunicações e na infraestrutura digital. Aparentemente, este seria um fluxo de lucros mais sustentável para as empresas chinesas, ao mesmo tempo que diminuiria o impacto das proibições ocidentais aos equipamentos 5G chineses.
“O governo chinês parece estar muito mais cauteloso em relação aos grandes projetos atualmente, devido às elevadas taxas de juro do dólar e à diminuição das reservas cambiais na China”, diz Shih. "No curto prazo, os projetos da BRI serão limitados, mas se as reservas cambiais começarem a crescer substancialmente, o fluxo de investimento da BRI poderá se recuperar novamente."