Em meio às dúvidas dos economistas e do mercado em relação à proposta do governo de zerar o déficit fiscal em 2024, a ideia de “jogar a toalha” e apresentar uma meta mais flexível, como vem sendo sinalizado no noticiário político, pode acabar tendo uma consequência ainda pior do que descumpri-la.

Essa é a visão de Cassiana Fernandez, chefe de pesquisa econômica para a América Latina e economista-chefe do J.P. Morgan no Brasil. Para ela, se o governo e o Congresso seguirem com a proposta, ela resultará numa perda de confiança dos agentes de mercado, que foi fragilmente conquistada pela equipe econômica capitaneada pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

“Com menos de três meses de aprovação do arcabouço, mudar é uma sinalização muito ruim para credibilidade, vai ter impacto nos mercados e na confiança dos agentes”, diz Fernandez, ao NeoFeed.

Segundo ela, a aprovação do arcabouço fiscal, com sinalizações de que o governo não sairia gastando de forma descontrolada, foi um dos fatores que fizeram com que o cenário macroeconômico melhorasse desde que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse, não ofuscando o forte desempenho do agronegócio e o processo de desinflação.

A forte produção de grãos, combinado com preços favoráveis no mercado internacional, foi uma das principais razões para que o J.P. Morgan elevasse a expectativa para o desempenho da economia em 2023 de 0,5% para quase 3%.

“Já tínhamos alguma sinalização de que a safra agrícola seria de novo destaque dentro da composição do PIB, mas  esperávamos um crescimento em torno de 5%. E o que vimos é que este crescimento está mais para 16%”, diz Fernandez.

Para 2024, as projeções do banco indicam um avanço de 1,2% da economia, diante da expectativa de que o agronegócio não repetirá o desempenho de 2023. Mas a economista-chefe do J.P. Morgan para o Brasil destaca que isso é resultado da desaceleração da economia brasileira na segunda metade deste ano, ainda prejudicado pelas condições monetária.

Em relação à trajetória da Selic, Fernandez espera que o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) mantenha o ritmo de cortes em 0,50 ponto percentual até meados de 2024, com a taxa básica de juros chegando em 10% ao ano.

Ainda que o agronegócio tenha um peso relevante na composição do PIB e ainda é preciso avançar na agenda de reformas, especialmente com a Reforma Administrativa, Fernandez afirma que muitas melhorias foram feitas no País e isso provavelmente está tendo efeitos estruturais na economia brasileira, que pode ter chegado a um novo patamar

“Por mais que eu fale que a revisão de crescimento que fizemos este ano está muito ligada à questão agrícola, temos que reconhecer que a gente vem revisando para cima as projeções de crescimento no Brasil ao longo dos últimos 15 trimestres”, afirma.

Acompanhe os principais trechos da entrevista:

O que explica o quadro macroeconômico, depois de um início de ano conturbado?
O País foi beneficiado por um grande choque positivo de oferta, que foi o aumento da produção agrícola. Se pegar lá no fim do ano passado, já tinha alguma sinalização de que a safra agrícola seria destaque dentro da composição do PIB, mas esperávamos um crescimento em torno de 5%. E o que vimos é que este crescimento está mais para 16%. Se considerarmos que esse é um setor que pesa entre 7% e 8% no PIB, só esse impacto representaria quase uma revisão de 0,8 ponto percentual em relação à projeção inicial. E tem ainda os impactos indiretos do crescimento da produção agrícola.

De que maneira?
Na parte de transportes, na indústria manufatureira, o beneficiamento feito dos produtos da colheita para exportar. E enquanto o Brasil aproveitou condições climáticas extremamente favoráveis, boa parte dos nossos competidores acabou vivenciando condições muito mais adversas, o que fez com que preços de commodities se comportassem melhor do que o esperado. Na nossa conta inicial, estimávamos que 2 pontos percentuais das revisões que a gente fez na projeção de PIB veio da surpresa agrícola, de seus efeitos diretos e indiretos.

Você utilizou a palavra "surpresa" para se referir ao desempenho do setor agrícola. Não devemos mais esperar isso olhando para 2024?
A alta do setor passar de 5% para 16% foi uma surpresa, mas eu não considero que isso vai se repetir no ano que vem, com base nos números do IBGE, de consultorias especializadas e dos próprios empresários. Tudo que a gente vê até agora aponta para um novo crescimento no ano que vem, mas um pouco mais modesto, da ordem de 3% a 5%. Existe o risco da incerteza climática para a safra agrícola e os outros países, como a Argentina, devem voltar ao mercado, depois da quebra da safra anterior. Não esperamos uma queda de produção dos outros países. Devemos ver preços menores no mercado internacional.

Não será possível, então, o País manter o ritmo de crescimento em 2024?
Acho muito difícil o País manter o ritmo de 3%, porque vai ser difícil encontrar alguma outra coisa que leve a esse ritmo de crescimento. Nossa projeção para 2024 é uma desaceleração para 1,2%. Fica parecendo que, quando compara 2023, com 3%, e 2024, com 1,2%, é uma desaceleração muito grande, mas, na verdade, não é. A desaceleração que a gente vê na atividade está muito mais concentrada dentro de 2023. A segunda metade deste ano deve mostrar uma desaceleração grande. Ao longo de 2024, você tem uma trajetória diferente. Se estivermos certos e a safra continuar positiva, teremos algum crescimento no primeiro trimestre, que fica mais forte na segunda metade do ano.

Quer dizer então que sempre vamos ficar dependendo muito do agro para termos números robustos?
Colocaria um certo otimismo em relação à economia brasileira do ponto de vista estrutural. Por mais que a revisão de crescimento esteja muito ligada à questão agrícola, temos revisado para cima as projeções de crescimento ao longo dos últimos 15 trimestres. Se olharmos desde 2016, todas as reformas que foram feitas, se poderia até discutir que talvez o PIB potencial seja mais alto. Existe essa dúvida, não tenho isso hoje nas minhas contas, mas temos que reconhecer que uma série de reformas foram feitas e que, de repente, essas revisões não são só porque a cada ano você tem uma explicação específica.

"Por mais que não considere nas minhas projeções que o Brasil consegue entregar a meta de zero por cento, mudar a meta hoje sinaliza que provavelmente o desvio vai ser muito maior"

No caso da inflação, a trajetória tem surpreendido? O que esperar para 2024?
A trajetória da inflação para 2023 surpreendeu na intensidade, principalmente a desinflação de alimentos e de bens, de uma forma geral. É uma desinflação importante, ainda que não tão grande quando se compara em relação ao que foi o número cheio no final do ano passado, influenciado pelos cortes de impostos. Quando olho do lado de serviços, ele acaba sendo influenciado por salários, que no Brasil ainda são muito indexados à inflação passada. A queda da inflação vai acabar gerando uma desinflação mais rápida na parte de serviços. Saímos de uma inflação medida pelo IPCA de 5,8% no ano passado para 4,8% neste ano e 3,6% no ano que vem.

Considerando este cenário, qual a perspectiva do J.P. Morgan para a Selic em 2023 e 2024?
O nosso cenário básico é que o BC vai continuar com esse ritmo de 0,50 ponto porcentual, com um último corte, de 0,25 ponto percentual, em meados do ano que vem, com a Selic terminando em 10% ao ano. Do lado doméstico, a gente não vê uma grande recessão, mas uma desaceleração. Em relação ao cenário externo, entendemos o Fed parou, ainda que mantenha dentro do horizonte dele a possibilidade de voltar a subir. Isso significa que os juros americanos vão continuar acima de 5% na maior parte de 2024 e isso acaba sendo uma restrição para as taxas de juros nominais muito mais baixas no Brasil.

Como assim?
Na última vez que a gente teve taxas de juros de um dígito, era um ambiente em que os países desenvolvidos estavam muito próximos de zero. Tinha um compromisso de política fiscal apertada no País e que ia continuar apertada com o teto de gastos. Tinha política parafiscal sendo revertida, não tinha o desemprego perto das mínimas históricas e tinha inflação expectativa de inflação ancoradas no centro da meta. Hoje, não temos essas condições. Por isso, a nossa projeção de Selic terminal nesse ciclo está em 10%.

Em relação ao dólar, você enxerga possibilidades de ele permanecer nesse patamar?
Depende muito do cenário externo. Até pela resiliência da economia americana, a taxa de juros permanece em patamares elevados por mais tempo e isso tende a favorecer o dólar. No Brasil, por mais que a gente ainda tenha um diferencial de juros muito grande, a economia já não mostra o mesmo sinal de robustez que tinha no começo deste ano. Acho difícil ter uma nova onda de apreciação do real. Provavelmente até o fim do ano vai ter volatilidade, com a negociação do Orçamento, em saber se dados mais fracos de atividade pressionam o BC a acelerar os cortes, se o Fed vai subir ou não os juros. No nosso cenário base, ele deve ficar perto dos níveis atuais, talvez fechando o ano mais perto de R$ 5.

"Acho muito difícil o País manter o ritmo de 3%, porque vai ser difícil encontrar alguma outra coisa que leve a esse ritmo de crescimento"

O governo foi muito criticado no começo do ano, com muitas suspeitas pairando a respeito da condução da economia. Como vê o governo agora, considerando as revisões positivas do PIB?
Num cenário em que você tem surpresas positivas, com revisão para cima do crescimento e para baixo da inflação, isso alivia muito as pressões políticas. Se a gente pensar que o governo começou o mandato com um consenso que a economia brasileira corria risco de entrar em uma recessão, isso gera muita pressão no ambiente político, polarizado desde as eleições. A melhora da economia aliviou as pressões e até fortaleceu o ministro da Fazenda, que consegue avançar com uma agenda mais favorável do ponto de vista do mercado e reduz muito a preocupação com os riscos de ter uma desancoragem muito grande da política fiscal, riscos aumentados com a PEC da Transição.

O arcabouço fiscal tem sido visto como uma medida positiva para estabilização do cenário econômico, mas existem dúvidas sobre se ele será capaz de levar o governo a cumprir as metas para o resultado fiscal. A situação fiscal é o principal risco para o Brasil?
Na nossa leitura, a atual configuração do arcabouço fiscal não é suficiente para garantir a estabilização da trajetória da dívida/PIB e não acreditamos que o governo consegue entregar de uma forma sustentável as metas que foram mencionadas. O arcabouço deixa claro que o ajuste fiscal será muito dependente do ajuste do lado das receitas. Isso num país que já tem uma carga tributária de 33%, 34% do PIB, que é alto quando se compara com países emergentes. Isso cria uma incerteza de como é que você vai conseguir fechar essa conta. Há dúvidas se, na aprovação do Orçamento, vai acabar tendo uma pressão para rever essa meta.

Seria muito ruim o governo mudar a meta?
Seria uma sinalização muito ruim. Por mais que eu não considere nas minhas projeções que o Brasil consegue entregar a meta de zero porcento, mudar a meta hoje sinaliza que provavelmente o desvio vai ser muito maior. Com menos de três meses desde a aprovação do arcabouço, mudar a meta fiscal é uma sinalização muito ruim para credibilidade, tendo impacto nos mercados e na confiança dos agentes.

Você vê espaço ou alguma sinalização do governo de eventualmente tratar da questão dos gastos? O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), sinalizou que pretende avançar com a questão da reforma administrativa, já o Haddad não parece de acordo com a PEC que está no Congresso. Você vê algum espaço para corte de gastos ou racionalização?
Acho que para a racionalização de gastos, sim. Tenho certo otimismo em relação ao trabalho que vem sendo feito dentro do Ministério do Planejamento, de reavaliação de gastos. Acho que pode ter um impacto positivo a médio longo prazo, mas sou cética em relação ao curto prazo. Quando a gente fala da Reforma Administrativa, ela é superimportante, provavelmente uma das mais importantes que ainda faltam ao Brasil equacionar, mas hoje claramente a prioridade do governo e do Congresso fica em relação à Reforma Tributária. Não vejo o governo adotando a Reforma Administrativa antes de concluir os passos necessários da Reforma Tributária.