O impacto causado pela paralisação da economia no mundo inteiro durante a pandemia, da adaptação do setor corporativo ao trabalho remoto à ruptura das cadeias de suprimentos, entre outros efeitos, já foi amplamente estudado por acadêmicos.
A novidade que começa a se consolidar, porém, é a segunda onda de mudanças na economia global, consolidada simultaneamente e de forma interligada, que torna ainda mais complexa a construção e antecipação de cenários como não se via há 40 anos.
“A escalada da inflação e dos juros nos Estados Unidos e Europa, o agravamento rápido do déficit fiscal dos EUA, a desaceleração da economia chinesa e o processo de desglobalização da economia mundial impõem o maior desafio para uma geração inteira de economistas”, diz Roberto Padovani, economista-chefe do Banco BV, colocando-se no grupo que enfrenta essas mudanças.
Em entrevista ao NeoFeed, Padovani tentou amarrar todas as pontas soltas para explicar a sucessão de mudanças macroeconômicas do mundo pós-pandêmico, criando situações que não eram vistos desde os anos 1980.
Ele cita a rápida deterioração da questão fiscal dos EUA, com déficit público na faixa de 100% do Produto Interno Bruto (PIB), como um exemplo. “A novidade para a minha geração é que, pela primeira vez, temos um nível alto de dívida com juros reais positivos nos EUA; antes, os juros reais sempre foram negativos”, afirma.
Os juros reais são os juros nominais descontados da inflação -- quando essa equação se torna negativa, significa que a inflação subiu mais que os juros praticados no mercado. Apesar de a inflação anterior ter sido baixa nos EUA e Europa (até 2% ao ano), os juros nominais sempre foram próximos de zero.
Veja a seguir as principais mudanças listadas por Padovani no cenário global pós-pandemia, divididas por temas:
Inflação e juros no Primeiro Mundo
“A puxada da inflação e dos juros elevados nos países ricos, algo inédito nas décadas anteriores, levantou uma discussão sobre a intensidade de reação por parte da autoridade monetária. O rápido aumento de juros dos títulos de dez anos do Tesouro dos EUA é um exemplo de mudanças desse “mundo novo”. Isso faz com que os mercados fiquem mais focados no curto prazo.”
Déficit fiscal dos EUA
“É a primeira vez que vemos o déficit público elevado suscitar debate nos EUA. No pós-Segunda Guerra, a dívida pública americana caiu para 35% do PIB, depois começou a subir em 2008, durante a crise financeira global, e com a pandemia teve um impulso até atingir o atual estágio, de 100% do PIB. Isso nunca foi problema porque os juros reais sempre foram negativos. A novidade para a minha geração é que, pela primeira vez, temos um nível alto de dívida com juros reais positivos nos EUA e isso vai conduzir a um ajuste fiscal e reforçar a desaceleração da economia.”
Desaceleração da China
“A retração chinesa é um processo que veio para ficar, pois a população parou de crescer e o custo da mão-de-obra subiu, diminuindo a competitividade chinesa. A China deixou de ser um país exportador de produtos baratos como a nossa geração se acostumou a ver. Houve ainda outro efeito, interno: a desalavancagem das famílias e de governos locais na China, por causa da crise imobiliária, afetando as empresas. A tendência é de um consumo menor dos chineses para pagar dívidas, fenômeno semelhante ao vivido por Japão e Coreia do Sul nos anos 90.”
Desglobalização da economia
“O processo teve início com a guerra comercial contra a China decretada em 2017 pelo então presidente americano Donald Trump e virou política de Estado com a decisão do atual presidente Joe Biden, de atrasar o processo de crescimento tecnológico chinês, barrando exportações de supercondutores e produtos de alta tecnologia. A combinação de pandemia, guerra na Ucrânia e tensão comercial entre EUA e China aumentou a insegurança com relação aos fornecedores, acelerando o processo de desglobalização, que prejudicou muito a China.
Se por um lado o crescimento menor da economia global coloca menos pressão nos preços das matérias-primas, por outro, a desglobalização implica menor eficiência e custo mais elevado dos produtos, que foi calculado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em aumento de 7% pela supressão das tradicionais cadeias de suprimentos.
A dúvida é qual desses fatores vai prevalecer: a desaceleração global, com preços do commodities para baixo, ou a redução da eficiência produtiva com a desintermediação das cadeias globais de produção. O que deve mudar na economia global é o juro neutro, que vai ficar elevado por mais tempo no mundo.”
Efeitos no Brasil
“Não acredito que a desaceleração lenta da economia global, com juros mais altos, possa impactar na trajetória de queda da taxa Selic aqui. Os juros reais estão muito altos no Brasil (7% ao ano), o que dá espaço para o Banco Central manter a política de ajuste monetário.
Isso porque a taxa ideal de juro neutro no Brasil é de 5%. Cortando a Selic em 0,5 ponto percentual por vez, em quatro reuniões do Copom temos condições de ajustar a taxa nominal e, mesmo assim, manter uma política monetária relativamente apertada. Essa “gordura monetária” permite enfrentar o quadro global complicado.
Outros indicadores, como a inflação, não preocupam. O BV revisou para baixo a inflação de 2023, de 5,2% para 4,6%. Esperamos que o governo não mexa na meta de entregar déficit zero em 2024, por causa dos efeitos: atrapalha o trabalho do BC de atingir a meta de inflação, desancora as expectativas e afeta a percepção de risco. No fim, o que sobra é um juro mais elevado, igual ao do Primeiro Mundo, mas por razões diferentes.”