Ex-diretor de Política Econômica do Banco Central (2019-2021), o engenheiro e economista Fabio Kanczuk, head de macroeconomia da Asa Investments, não hesita ao dar sua opinião sobre o ciclo de corte de juros de 0,50 ponto percentual (pp), iniciado pelo BC em agosto, após manter a taxa Selic em 13,75% por um ano. “Não teria cortado nem 0,25 pp nem 0,50 pp, zero de cortes”, diz Kanczuk, nesta entrevista exclusiva ao NeoFeed.

Seu raciocínio é simples: a meta de inflação a ser perseguida pelo BC é de 3%, com banda de 1,5% para cima e para baixo. Ao perguntar a colegas o que é mais provável, uma inflação abaixo de 1,5% ou acima de 4,5%, segundo ele, todos optam pelo índice mais alto. “Então, por que tem de cortar juros?”, questiona.

Kanczuk atribui a política monetária do BC e do Fed (Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos) ao “comportamento estranho” da economia global no pós-pandemia, marcado por uma contradição na teoria econômica: mesmo com juros elevados, a atividade econômica continuou resiliente, com o Produto Interno Bruto (PIB) crescendo, mercado de trabalho aquecido e inflação caindo muito mais do que o previsto.

Agora, porém, o quadro mudou. Recorrendo a uma alegoria atribuída ao investidor Warren Buffett (“Você só descobre quem está nadando pelado quando a maré está baixa”), Kanczuk diz que a decisão do Fed de segurar as taxas de juros num nível mais elevado, o que levou a uma valorização dos títulos de dez anos do Tesouro dos EUA, deve afetar a política monetária do BC.

“Os juros de dez anos nos EUA subindo equivale à maré baixando, está mudando tudo e o BC não poderá cortar a Selic”, adverte, citando a desvalorização do real e o provável aumento da inflação como consequências dessa mudança nos EUA.

Já a crise internacional causada pelo conflito entre Israel e o grupo radical islâmico palestino Hamas, na visão do economista, terá um efeito maior na cotação do preço do petróleo e, por tabela, na inflação brasileira, se o Irã entrar na guerra.

Kanczuk diz que o governo não tem margem de manobra para conter o aumento da inflação. “Na parte fiscal, o governo precisa gerar o superávit que ele diz que vai conseguir, mas ninguém acredita”, afirma.

Outra arma, na visão de Kanczuk, é o BC não reduzir juros. "Já que a parte fiscal não está sendo feita, eu não reduzo os juros para tentar manter a inflação na meta. Mas não vemos nem uma coisa nem outra acontecendo.”

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

O Banco Central começou a cortar os juros em 0,50 pp em agosto e deve manter esse índice de corte, mesmo com a inflação subindo e piora do cenário fiscal. A estratégia do BC está sendo correta?
Correta ou não, só depois vamos descobrir quem está certo e quem está errado. O que dá para afirmar é que o Banco Central não está cometendo nenhum erro óbvio. Não sou o dono da verdade, mas, desde o começo (agosto), eu não teria cortado os juros. Sempre vejo a inflação com assimetria mais para cima da meta do que para baixo. Portanto, não teria seguido a estratégia de cortar juros, nem 0,25 pp nem 0,50 pp.

Corte zero?
Zero de cortes. Pela falsa previsão de inflação, teria mais a tendência de elevar do que cortar os juros. Porque mesmo com a Selic a 13,75%, o BC estava obtendo inflação acima da meta.

Isso é suficiente para não cortar juros?
O mandato do Banco Central é de meta de inflação de 3%. A banda é de 1,5 ponto, para cima e para baixo. O que é mais provável: a inflação ficar abaixo de 1,5% ou acima de 4,5%? Quando faço essa pergunta, todos respondem “acima de 4,5%”. Ora, então, por que tem de cortar juros? Daí a resposta começa a ficar confusa, que não segue o mandato do BC. É para isso que os diretores estão lá.

Pela primeira vez, temos um BC independente. Você acha que o Copom acabou medindo o aspecto político ao determinar a estratégia de corte de juros?
Não acredito. Eu sempre vejo quem está no Copom. Parte dos membros é funcionário público, que teria tido sua vida muito dificultada se discordasse de algo que o presidente da República está fazendo. Para os membros da diretoria que não são funcionários públicos, diria que não têm custo algum submeter-se à pressão política. São pessoas que vão voltar para o mercado privado e terão sua reputação manchada se fizerem algo não correto. Nenhum deles seria sujeito à pressão política. A decisão  foi baseada em visão econômica, que a inflação vai cair e tudo vai dar certo.

O que influenciou mais essa estratégia do BC? O crescimento do PIB acima do esperado ou o recuo da inflação?
A economia tanto do Brasil como dos Estados Unidos tem tido esse comportamento estranho, ninguém entende o que está acontecendo: todos subiram muito os juros – o Brasil foi de 2% para 13,75%; nos EUA foi de zero para 5,5%. E a atividade econômica continuou resiliente, com PIB andando bem, trabalho aquecido, desemprego baixo. Ao mesmo tempo, a inflação está caindo muito mais do que o previsto. Ou seja, a atividade forte não atrapalhou a convergência da inflação.

O que explica isso?
Daria para entrar na teoria econômica, mas o que os modelos têm falado para os economistas é que os dois países estão crescendo mais, sem ter problema de inflação. Tanto o BC daqui como o Fed (Federal Reserve, o BC dos Estados Unidos) entraram nessa e concluíram que não é necessário ser agressivo com os juros.

Os economistas ainda não conseguiram fazer uma leitura acurada causada pelo impacto da pandemia na economia global?
Acredito que não. A primeira questão é que ninguém entende como a economia está crescendo tão bem mesmo com essa elevação de juros formidável. A segunda questão: dado que a economia está crescendo, por que a inflação está cedendo? Pode ser que eu invente uma história para a primeira questão, que as pessoas pouparam tanto por causa do estímulo nos EUA e o Auxílio Brasil aqui que, por esse motivo, estou subindo os juros. É isso? Se todo mundo tem dinheiro, então precisa ter inflação. Ninguém consegue contar uma história simples.

"Ninguém entende como a economia está crescendo e a inflação, cedendo com essa elevação de juros formidável"

O fator externo, com a decisão do Fed de segurar a queda de juros no EUA, pode levar o BC a reavaliar a intensidade corte de juros?
Com certeza. Tem o fato de o Fed vir com um comunicado muito duro, no sentido de não cortar juros ou até subir mais a taxa. Mais importante que isso foi o comportamento do mercado dos EUA para a parte longa da curva de juros, por causa dos títulos do Tesouro de dez anos. Isso não tem uma ligação tão clara com o que Fed faz ou deixa de fazer.

Qual o impacto dessa curva de juros de dez anos nos EUA?
Essa taxa de juros dos Treasures de dez anos começou a subir loucamente, saindo de 3% e chegando a 5%. De novo, ninguém entende por que está subindo tanto. Como ela tem dinâmica independente, subindo tanto, muda a alocação de recursos do mundo. Por que colocar dinheiro em outro investimento se posso ganhar 5%, em dólar, nos juros de dez anos dos EUA?

Qual o efeito para nossa economia?
O efeito é que não faz sentido investir no Brasil, pois o real começa a depreciar. A frase típica de economista, ao se referir à avacalhação da política fiscal, é aquela de que o ‘Brasil fica nadando pelado e se divertindo, mas se baixa a maré, vemos quem está pelado e aí fica desagradável’. Os juros de dez anos  subindo nos EUA equivale à maré baixando. É o que o pessoal do Banco Central está vendo. Está mudando tudo e não vão poder cortar juros.

Então, o BC deveria interromper o corte de juros?
Com esses juros de dez anos dos EUA subindo, eu falaria para cortar só 0,25 pp da Selic. Eles não estão reagindo assim, estão em passo de 0,50 pp. Uau, vão reduzir 0,50 pp com a maré baixando? A conversa de que os cortes chegariam até a Selic atingir 8% agora ficou de lado. Achamos que o BC vai cortar a Selic até 9,5% ou 10%. O problema é que a inflação vai subir. O melhor, na minha opinião, é não cortar juros para a inflação não subir.

O conflito no Oriente Médio também pode interferir?
O efeito da guerra nos mercados financeiros é via petróleo. Da mesma forma que os juros dos títulos americanos de dez anos podem afetar a moeda e a inflação, os preços administrados dos combustíveis podem puxar para cima a nossa inflação. A grande questão é a probabilidade de o Irã se envolver na guerra, o que implicaria em preços do petróleo muito mais altos e, por tabela, com impacto na inflação brasileira.

Quais são as armas do governo para impedir uma nova retomada da inflação? Está reduzindo a margem de manobra?
Não temos margem nenhuma, a inflação vai subir. Para não subir, dá para atuar na parte fiscal e na parte monetária. Na fiscal, o governo precisa gerar o superávit que ele diz que vai conseguir, mas ninguém acredita. E o superávit que o governo se propõe a gerar, que ajudaria combater a inflação, nem é grande o suficiente, mas não será atingido. Outra arma é o BC não reduzir juros: já que a parte fiscal não está sendo feita, eu não reduzo os juros para tentar manter a inflação na meta. Mas não vemos nem uma coisa nem outra acontecendo.

O mercado recebeu bem o arcabouço fiscal e agora mostra pessimismo quanto à promessa de déficit zero em 2024. O arcabouço tinha problemas desde a concepção ou a coisa desandou ao longo do ano?
O que teve problema foi antes do arcabouço, na PEC da Transição, no fim do ano passado, com o aumento do Auxílio Brasil. No fim aprovaram uma PEC para gastar tanto dinheiro que ficou o temor, já em dezembro, de que o fiscal estava comprometido. Aí vem o arcabouço e todos os economistas falaram que não mudou nada. Embora eu estivesse do lado pessimista, isso era consensual. A previsão de déficit de 2024 era de 0,8%, mas depois que o arcabouço foi aprovado, a previsão do governo passou a ser de déficit zero. Só que a previsão dos economistas continuou em 0,8% e agora está em 0,9%. Passou o ano inteiro e ninguém acha que o governo vai entregar coisa alguma e o arcabouço não fez mudança nenhuma.

"Só agora, com os juros de dez anos dos EUA subindo, o mercado percebeu que está nadando pelado. Nós, os economistas, fizemos papel de bobo"

E o mercado, como reagiu a essas previsões?
Diferentemente dos economistas, reagiu bem. E, só agora, com os juros de dez anos dos EUA subindo, o mercado percebeu que está nadando pelado. Nós, os economistas, fizemos papel de bobo. Acertamos o fiscal, mas a maré alta cobriu tudo e ninguém deu bola para nós. Isso descreve como foi este ano: os economistas pessimistas, o mercado andando bem – exceto os fundos locais, que apostaram contra o Brasil e se deram mal – e, agora, mudando tudo.

Por causa desse novo cenário, você acredita que o governo terá de cair na real e começar a cortar despesas para ao menos se aproximar do déficit zero que prometeu para 2024?
Duvido que o presidente Lula tope seguir o caminho de corte de gastos. Deve insistir no aumento de impostos, mas não deve conseguir aumentar muito. Vai ganhar R$ 10 bilhões aqui, R$ 15 bilhões ali e não vai chegar aos R$ 150 bilhões que precisa. Ou seja, não vai entregar o déficit zero e a dívida vai subir. Não tem saída. Uma mudança só vai ocorrer se o mercado ficar muito atacado, com o dólar a R$ 6. Mas ainda estamos muito longe disso.

Após tudo o que aconteceu este ano com o arcabouço, o teto de gastos era mais eficiente como arma para conter a inflação e manter equilíbrio fiscal?
Minha opinião é enviesada porque eu estava no Ministério da Fazenda, no governo Temer, quando foi criado o teto de gastos. Diria que o teto de gastos era mais simples, ambicioso e teoricamente mais correto. Sob o ponto de vista econômico, era muito melhor que o arcabouço, isso na cabeça de economista. Mas, politicamente, não foi aceitável. Portanto, não teve jeito - como se diz, “perdeu, playboy”.