Durante a campanha eleitoral – e mesmo depois de já ter tomado posse – o presidente Luiz Inácio Lula da Silva repetiu diversas vezes de que era “preciso colocar o pobre no orçamento.” O mantra é quase que um plano de governo neste terceiro mandato do líder do Partido dos Trabalhadores.
Mas, para Paulo Hartung, que já governou o estado do Espírito Santo em três mandatos, foi deputado estadual, federal e senador, hoje à frente do Indústria Brasileira de Árvores (Ibá), que representa os fabricantes de papel e celulose, só há uma forma de colocar os pobres no orçamento.
“Quer botar o pobre no orçamento? É preciso ter as contas organizadas. É preciso, inclusive, fazer um esforço para tirar dos orçamentos públicos os privilégios e os privilegiados”, disse Hartung, que é economista de formação, em entrevista ao NeoFeed.
Uma voz crítica em relação a um governo que não controla a área fiscal, Hartung faz uma análise desses primeiros dois meses de Lula no Palácio do Planalto. Ele diz ver coisas boas em diversas áreas, como saúde e educação, mas acredita que o governo está flertando com o fracasso ao repetir erros do passado.
Entre os erros, Hartung cita a falta de profissionalismo nas estatais, o ataque à autonomia do Banco Central e a tentativa de rediscutir a autonomia das agências reguladoras. E, claro, a questão dos gastos sem uma regra fiscal. “Isso já foi testado e deu errado no Brasil”, diz.
Nesta entrevista que você lê a seguir, Hartung defende o teto de gastos, fala sobre as reformas que considera prioritárias e discute como o Brasil pode ser protagonista em um mundo que sofre as consequências das mudanças climáticas.
Confira os principais trechos da entrevista:
Antes de Lula tomar posse, você fez várias críticas a postura do presidente eleito. Em uma delas dizia que ele “deveria descer do palanque”. Você acredita que o presidente já desceu do palanque nesses primeiros 60 dias de governo?
Ainda não. Evidente que a minha percepção é que ele esteve mais no palanque do que está hoje. Mas, na verdade, eleição é eleição, governo é governo. Governo não é uma corrida de 100 metros. Em uma corrida de 100 metros, quem larga na frente, tem chance de chegar na frente. Governo é uma maratona. Quem ganha, não é quem larga na frente. Precisa ter cadência para manter um ritmo do começo ao fim. Ainda faltam elementos de assumir plenamente o ato de governar.
Em quais áreas o presidente Lula já saiu do palanque?
Me faz bem ver a chegada da experiência cearense na educação básica do Brasil. Me faz bem ver a valorização do Sistema Único de Saúde. Nós passamos a pandemia, ele foi tão importante, mas as suas debilidades afloraram, inclusive as gerenciais. É bom ter gente hoje que tem capacidade de tocar esse barco. Acho interessante presenciar que começamos a ter de novo protagonismo na esfera internacional. A nossa participação na COP, no Egito, mesmo antes da posse, foi diferenciada. Tem coisas boas, convivendo com coisas que já testamos no passado, já deu errado e estamos flertando com elas de novo.
Quais são esses erros do passado?
O governo pode muito, mas não pode tudo. Ao assumir que o governo pode tudo, você flerta com a irresponsabilidade. Lula recebeu um governo em que o fiscal já estava desancorado por conta das medidas eleitoreiras que foram tomadas, como a PEC Kamikaze. O teto já tinha sido furado, a regra fiscal já tinha sido desmoralizada. Não dá para achar que sendo governo temos a força para revogar a lei da gravidade e testar um caminho que já foi testado no governo Dilma e deu errado.
Que caminho?
É o caminho de você achar que o governo pode gastar o que vem na cabeça. Não pode. Já somos um País muito endividado e você começa o governo fazendo a PEC de transição. Ali, você precisava, segundo cálculos feitos por vários economistas, de R$ 50 bilhões a R$ 70 bilhões para cumprir as promessas e não frustrar um conjunto de brasileiros e brasileiras que estão à margem do desenvolvimento e que precisam de um programa de transferência de renda. Mas o governo fez uma PEC de R$ 207 bilhões. Não me parece uma coisa no rumo certo.
"O governo fez uma PEC de R$ 207 bilhões. Não me parece uma coisa no rumo certo"
Isso te preocupa?
Sim. Quando vejo uma tentativa de, de novo, conduzir as estatais sem um respeito ao profissionalismo. Quando vejo um ataque à autonomia do Banco Central e uma tentativa de rediscutir a autonomia das agências reguladoras do País. Precisamos que essas agências funcionem bem e com segurança jurídica. É isso que vai trazer o capital privado e internacional para suprir as nossas deficiências em infraestrutura. Quando vejo tudo isso, eu digo: isso não é um bom caminho, isso não vai dar certo. Isso já foi testado e deu errado no Brasil. Vamos contratar alguma coisa que não é boa para frente. Se a gente perseverar em equívocos que já cometemos, vamos de novo flertar com o fracasso.
Tem uma frase que você diz com frequência que é "só cuida das pessoas quem cuidas contas". Como ter responsabilidade social com responsabilidade fiscal?
O Ceará, com governos distintos e partidos distintos, mantém uma organização fiscal desde Tasso Jereissati. Foi bom ou foi ruim? É claro que foi bom. É só ver a evolução na educação, por exemplo, e que agora pauta o ministério da Educação brasileiro. Quando o Espírito Santo viveu na desorganização fiscal, ele abriu a guarda para que as instituições de Estado fossem tomadas pelo crime organizado. Quando cheguei ao governo pela primeira vez foi para limpar as instituições públicas do meu Estado junto com a sociedade. Quanto se organiza, ele começa a melhorar. Foi assim que virou a menor mortalidade infantil do Brasil, foi para o primeiro lugar do Ideb na prova de português e matemática e foi a segunda expectativa de vida.
O que as contas do desorganizadas do País podem gerar?
As contas desorganizadas vão gerar desemprego, inflação e recessão econômica. Quem mais sofre? São os pobres. Quer botar o pobre no orçamento? É preciso ter as contas organizadas. É preciso, inclusive, fazer um esforço para tirar dos orçamentos públicos os privilégios e os privilegiados. Por isso que eu repito isso: só põe os pobres no orçamento quem cuida das contas e tem as contas organizadas. Quem não cuida, produz inflação, desemprego e recessão. Esse filme já vimos muitas vezes e precisamos que não seja repetido. Até para fortalecer a democracia. O que fortalece a democracia é o bom governo e que chega à sociedade de carne e osso.
"As contas desorganizadas vão gerar desemprego, inflação e recessão econômica. Quem mais sofre? São os pobres"
Depois do descontrole das contas públicas do governo Dilma, se colocou uma regra, que é o teto de gastos, para se equacionar a questão da dívida. Agora, se fala em um novo arcabouço fiscal. O que seria importante, na sua visão, na construção dessa nova regra fiscal?
Primeiro, preciso voltar para trás e dizer que a minha avaliação do teto é positiva. E não é torcida de futebol. É com base em evidências. O teto de gastos produziu o controle da inflação. E isso é fundamental para um País vergonhosamente desigual. Ele produziu uma coisa que não convivemos ao longo da nossa história econômica: juros baixos. As pessoas podem discutir se a Selic deveria ou não ter chegado a 2%. Mas se não era 2%, era o que: 2,5% ou 3%? Sendo mais do que 3%, é juro que nunca convivemos. O que permitiu isso? A ancoragem das expectativas econômicas. E foi o teto que produziu isso. Ele (o teto) obriga a um raciocínio de que dentro do governo você é obrigado a discutir prioridades.
Mas o governo vai propor um novo arcabouço fiscal. Você acredita que não seria necessário?
Sim, a minha visão é de que deveríamos continuar convivendo com essa experiência, com o teto. Tem alguma questão que deveria ser adicionada com o teto em função de receitas que não trazem nenhum prejuízo para o País? Ok, vamos discutir. Mas isso é página virada. E agora, vamos ter de construir uma nova regra fiscal.
"O teto de gastos produziu o controle da inflação. E isso é fundamental para um País vergonhosamente desigual"
O que, então, ela precisa ter, na sua visão?
Ela não pode ter um olhar só na evolução da dívida. Ela precisa ter um olhar na evolução da despesa também. É um olho no gato e outro no peixe. Até porque tem questões que são cíclicas. Não precisa ser um controle que se faça da noite para o dia. É preciso que todos os agentes econômicos olhem para ele e confie na sua evolução no médio e no longo prazos. E que redunde em uma não explosão do nosso endividamento como proporção do PIB. É isso que gera confiança. Essa é a questão central de uma boa regra fiscal. Se temos uma boa regra fiscal, nós facilitamos o manejo da política monetária do País.
Isso entra na questão dos juros...
É só olhar quando os juros estavam em 2% o que aconteceu com o mercado imobiliário brasileiro. Ele voou. Queremos juros baixos? Sim. Mas se queremos juros baixos, queremos que todas as expectativas econômicas sejam bem ancoradas. Isso facilita a diminuição da taxa Selic e, consequentemente, a taxa de juros praticada pelos agentes financeiros. Isso que está sendo falado, já foi testado no Brasil. E deu em desemprego, inflação e recessão. A última recessão, de 2015 e 2016, foi a mais grave da nossa história desde 1929.
"Queremos juros baixos? Sim. Mas se queremos juros baixos, queremos que todas as expectativas econômicas sejam bem ancoradas"
O NeoFeed publicou recentemente uma entrevista com Rubens Menin, fundador da MRV, na qual ele disse que o Brasil precisava declarar guerra contra os juros altos. Você concorda?
O juro que o governo paga é a avaliação do mercado pelo risco de emprestar dinheiro para o governo. Quanto mais solvente o governo, quanto mais tiver organizado, mais ele tem condições de tomar dinheiro no mercado a um custo menor. Se quer baixar a taxa de juro, cuida das contas e do fiscal. E tem de ter clareza. Não tem dinheiro para tudo. Se você se sentar em uma mesa com todos os ministros, todos têm boa argumentação do porquê a área dele é prioritária para levar o Brasil para outro estágio. Mas não tem dinheiro para todos. A vida é assim. É preciso ter senso de prioridade. O que fazer para ajudar a destravar o crescimento, desenvolvimento e geração de emprego? Essa é a questão. Quando se vende a ideia para sociedade de que tem dinheiro para tudo, vende-se uma ideia errada.
Faz sentido pensar em criar um “Plano Cruzado” para enfrentar os juros altos?
Para baixar os juros, você tem de fazer uma campanha que patrocine a organização e não a gastança. O bom laboratório que tivemos, por incrível que pareça, foi o teto dos gastos. E agora estão tentando destruir isso.
Você disse recentemente que a reforma tributária deveria ser a primeira a ser feita. Quais pontos são essenciais?
Quando falei que a reforma tributária deveria ser a prioritária já foi com base no grupo que assumiu o poder. Se olharmos com clareza, tem duas reformas importantes para serem feitas. Talvez uma, esse governo, não coloque para andar. É a reforma do Estado brasileiro. É preciso modernizar o RH do setor público. Esse é um desafio. O setor público consome um terço de tudo o que nós produzimos. E as regras de funcionamento – progressão funcional, promoção de funcionários – são feitas para um tempo que não existe mais. Acho essa reforma muito importante. Mas não a coloquei como prioritária porque acredito que o governo atual, pela relação que tem com as corporações do serviço público, não coloque para andar.
E no caso da reforma tributária?
Começaria basicamente pelos tributos que tratam do consumo. E a coisa mais complexa que temos hoje é a legislação do ICMS. Isso virou uma colcha de retalhos no Brasil. Você tem 27 documentos enormes que regulam o ICMS. Precisamos migrar. Vamos pegar uma roda que já está rodando mundo afora, que é o Imposto sobre Valor Adicionado (IVA), e implementar no Brasil, fazendo uma transição.
Como fazer essa transição?
Tem de ser a transição possível de se negociar. Tem boas conversas neste sentido. E agora é acelerar e fazer uma transição. Os gargalos estão nos entes subnacionais, que sempre olham a reforma tributária como se fosse botar mais dinheiro no orçamento dele. Não vai. Se ela puder ser neutra, seria ótima. Esse é um desafio.
Quais outros desafios?
Um segundo desafio é o setor de serviços vis a vis outras atividades da economia. O setor de serviços paga menos. Trazer todo mundo para uma mesma alíquota tem uma resistência. Precisa negociar e precisa ajustar. A consciência de que precisa fazer está posta. Os bons gestores já entenderam que o ICMS fracassou. Se fizer uma radiografia da arrecadação dos Estados brasileiros, você verá que ela está pendurada em combustíveis e lubrificantes, energia elétrica e telecomunicações. São poucos itens que seguram a arrecadação. Por isso que mexeu tanto no humor dos governadores quando colocou teto para combustíveis e lubrificantes. A arrecadação de ICMS foi degradando a um ponto que ela está dependurada em três ou quatro atividades econômicas no Brasil. Isso precisa consertar.
"O maior desafio do planeta hoje é a questão climática. O Brasil pode ganhar o protagonismo nessa transição"
Como o Brasil pode se transformar em um hub de inovação verde em escala global?
O maior desafio do planeta hoje é a questão climática. Você precisa descarbonizar a economia e fazer a transição energética. O Brasil pode ganhar o protagonismo nessa transição. Primeiro porque já temos uma matriz energética limpa. O que somos hoje é a aspiração de grande parte dos países desenvolvidos do mundo. É uma vantagem. A outra vantagem: temos a maior floresta tropical dentro do nosso território. E dentro dela, a maior biodiversidade do planeta. E temos 12% da água doce do mundo. São vantagens que se a gente fizer o nosso dever de casa, teremos protagonismo. Além disso, temos vento constantes (energia eólica), sol e uma experiência vitoriosa com biomassa.
O Brasil tem outras vantagens competitivas?
Outra coisa que o mundo precisa paralelamente a questão do clima é de alimentos. Quais são as regiões do planeta que têm espaço para crescer a agricultura? São poucas. Uma é essa que está em guerra (Ucrânia e Rússia). O Brasil tem hoje, segundo a Universidade de Goiás, mais de 80 milhões de hectares de terra com algum nível de degradação. É terra já antropizada, não precisa derrubar floresta, que pode converter para produção de grãos e fibras. A tecnologia está mostrando que é possível fazer isso com muita rapidez. O Brasil hoje alimenta 10% da população do mundo. Dá para passar para 20%? Todos os técnicos que eu conheço e que estudam o assunto dizem que sim. E sem derrubar a floresta.
Você enumerou uma série de vantagens competitivas do Brasil. Como transformar isso em negócios?
A primeira coisa é fazer o dever de casa. Agora, precisa valorizar a floresta em pé. Temos 25 milhões de pessoas que moram na região Amazônica. Essa floresta em pé não é só imagem. São serviços ambientais notáveis. O nosso regime de chuva, que produz duas safras para o agro brasileiro, tem a ver com a floresta em pé. Então, precisamos combater desmatamento, queimadas, garimpo ilegal, grilagem de terra e o crime organizado nessa região. E um dever de casa que tem sentido de prioridade.
"O velho Roberto Campos, o avô do presidente do Banco Central, cunhou a frase de que 'o Brasil não perde uma oportunidade de perder uma oportunidade'"
O que mais?
A segunda coisa é transformar esse potencial em oportunidade. O Brasil evoluiu nos últimos anos, em governos diferentes, em energia renovável. Temos experiência de muitos anos em biomassa. É seguir em frente. Usando uma expressão de futebol. Tem uma bola, na cara do gol e sem goleiro. Nós precisamos tentar dessa vez não chutar fora. Outro dia eu ouvi o Pedro Passos (fundador da Natura) falando: ‘o Brasil tem a marca de perder os bondes da história.’ E é verdade. Você estuda a história do Brasil e vê que o Brasil perdeu várias janelas de oportunidades. O velho Roberto Campos, o avô do presidente do Banco Central, cunhou a frase de que “o Brasil não perde uma oportunidade de perder uma oportunidade”. Essa é uma oportunidade que poucas vezes o Brasil teve.
Uma dessas oportunidades poderia ser o mercado de crédito de carbono. Afinal, como você mesmo já disse, o Brasil tem a maior floresta tropical do planeta. O Brasil tem potencial de ser a Arábia Saudita do carbono?
O Brasil tem potencial de avançar no fornecimento de alimento no mundo e de prover energia limpa para o mundo. Mas o mercado mundial de carbono é uma coisa que não está de pé ainda. E você vê informações desencontradas sobre o mercado de crédito de carbono em termos de tamanho e dimensão. Por isso, não quero vender ilusão. Ainda tem muita coisa a ser definida. O que nós precisamos é dizer é que estamos dispostos a preservar as nossas florestas tropicais de pé e precisamos de participação do mundo nesse esforço.
De que forma fazer isso?
Colocando dinheiro, como no fundo Amazônia e em outros fundos que venham a ser criados. Precisamos que os poderosos também participem desse trabalho. Por quê? Temos 25 milhões de pessoas que vivem na região. Os moradores da região, em um ambiente tão rico e tão valorizado pelo mundo hoje, não pode podem viver com um déficit de infraestrutura e com um IDH ridículo. Eles precisam ser parte dos benefícios dessa floresta em pé, que está produzindo água, está conservando o solo e está influenciando o nosso regime de chuva. Esse é um dever de casa que o Brasil precisa endereçar.