Duas exposições em São Paulo e o recém-lançado livro Typus Terra Incognita comemoram a carreira e a plena atividade, aos 91 anos, da carioca Anna Bella Geiger. À definição de artista multidisciplinar, com trânsito pela escultura, pintura, desenho e mídia eletrônica, ela acrescenta workaholic.

“Sou viciada em trabalho. Mesmo agora, com esta idade, de vez em quando tenho umas tonturas, um não sei o quê, mas gosto realmente de trabalhar”, diz. “Tanto que tenho obras atuais, que não estão nesta exposição”, completa, durante a abertura de quase mapa, quase mancha, na galeria Mendes Wood, no bairro paulistano da Barra Funda. Ela circula pela mostra em uma cadeira de rodas, uma forma segura de locomoção, mas da qual, de vez em quando, se levanta.

Quem empurra a cadeira é o filho Lew, que sempre acompanha a mães nas viagens, está presente em qualquer mesa redonda da qual Anna Bella participa e supervisiona as montagens de exposições.

Quando a artista se expressa, com um tom de voz pausado, chama atenção a clareza com que se recorda de fatos dos anos 1960, 1970 e 1980. E como é capaz de discorrer com detalhes sobre o momento em que fez determinada pintura, como é o caso das que estão na Mendes Wood, que apresenta algumas telas inéditas.

Anna Bella é vista como uma das pioneiras da arte contemporânea brasileira, uma artista que rompeu padrões e experimentou linguagens. Hoje, há trabalhos seus nas coleções dos mais importantes museus do mundo: MoMA, em Nova York; Tate Modern, em Londres; Georges Pompidou, em Paris; Reina Sofia, em Madri; e Masp, em São Paulo.

quase mapa, quase mancha traz também a videoinstalação Mesa, friso e vídeos macios, originalmente apresentada na XVI Bienal Internacional de São Paulo, em 1981 —  tida como a  “Bienal da Abertura”, a exposição marcou a volta de artistas como ela, que haviam boicotado a mostra desde 1969, em protesto contra o Ato Institucional número 5, que restringiu ainda mais liberdades e agravou a censura durante a ditadura militar.

Muito diferente, a outra exposição, a do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), batizada Circumambulatio, é uma mostra feita com sons, fotografias, desenhos e manuscritos, apresentada originalmente no MAM do Rio de Janeiro, em 1972.

Do latim, “andar em torno de”, Circumambulatio é um trabalho vivo, que traz textos de Carl Jung, música de Emerson, Lake and Palmer e mistura artes visuais, literatura, filosofia, história das religiões, antropologia, arquitetura e ciências naturais. Coisas que fazem parte do universo de Anna Bella.

Até a década de 1960, a artista era considerada uma representante do abstracionismo. Mas, sempre inquieta, ela nunca coube em uma única definição. Mesmo que tenha sido orgânico, seu caminho tem uma lógica.

“Acho que fui me definindo, de certa maneira, dentro das linguagens da arte contemporânea. Eu já fui, como se diz, moderna. Quando digo 'já fui' é porque, nesses 74 anos de trabalho, seria talvez até ridículo imaginar que eu teria e seguiria só uma linguagem por todo esse tempo”, explica ela, em conversa com o NeoFeed.

"Nesses 74 anos de trabalho, seria talvez até ridículo imaginar que eu teria e seguiria, por todo esse tempo, só uma linguagem”, diz Anna Bella (Foto: Divulgação)

Foram produzidos 500 exemplares do livro "Typus Terra Incógnitar". Deles, 50 trazem gravuras e custam R$ 3.630 (Foto: Divulgação)

Nascida no Rio de Janeiro, em 4 de abril de 1933, a artista iniciou seu estudo em desenho, gravura e pintura na década de 1950, no ateliê da polonesa Fayga Ostrower (Foto: Divulgação)

Anna Bella tem trabalhos nas coleções dos mais importantes museus do mundo. Na imagem, "Equilíbrios instáveis", pintura sobre lona, da série "Macios", de 1987 (Foto: EstudioEmObra/Cortesia da artista e da galeria Mendes Wood)

A videoinstalação "Mesa, friso e vídeo macios" foi apresentada originalmente em 1981, na XVI Bienal de São Paulo, conhecida como a "Bienal da Abertura", por marcar a volta de artistas que boicotaram a mostra durante a ditadura militar (Foto: EstudioEmObra/Cortesia da artista e da galeria Mendes Wood)

“Sou viciada em trabalho. Mesmo agora, com esta idade, de vez em quando tenho umas tonturas, um não sei o quê, mas gosto realmente de trabalhar”, conta Anna Bella. Na imagem, a obra "Dilúvio", acrílica sobre tela, de 1987 (Foto: EstudioEmObra/Cortesia da artista e da galeria Mendes Wood)

Anna Bella experimentou diversas linguagens, como o foto-serigrafia usada na obra N.26, de 1985 (Foto: EstudioEmObra/Cortesia da artista e da galeria Mendes Wood)

Ao sintetizar essa trajetória, a artista afirma que seu trabalho “se desenvolve dentro de um pensamento conceitual, seja nas pinturas, objetos ou gravuras produzidos a partir dos anos 1970”.

Ao mesmo tempo, desde aquela época, ela passou a utilizar muito a geografia e cartografia em suas obras. “Essa vertente do meu trabalho tem a geopolítica como questão. E há, inclusive, um crítico espanhol que, ao comentar meu trabalho, disse que o que eu fazia era uma ‘geopoética’. Achei bonito, verdadeiro. Ele usou a palavra poética para falar de uma ‘geolinguagem”, conta.

O livro Typus Terra Incógnita é a décima obra da Familia Editions, criada pela designer Maria Correa do Lago. Especializada em livros de artista, a editora já publicou anteriormente Lenora de Barros e Rosana Paulino. Todos são obras únicas, de pequena tiragem, desenvolvidos numa conversa entre Maria Lago e os artistas.

O de Anna Bella é costurado à mão e usa mapas como uma linguagem artística. A edição tem 500 exemplares, dos quais 50 trazem gravuras impressas que acompanham a publicação (R$ 3.630). Os outros custam R$ 720.

“O trabalho da Anna Bella é atemporal e muitas das questões que ela levanta sobre o colonialismo nos mapas dos anos 1970 têm tudo a ver hoje”, diz a designer, em entrevista ao NeoFeed. “Ela redesenha os mapas com uma visão atual, levando o foco para a América Latina e Brasil e eles continuam mostrando a concentração do poder econômico e cultural. A verdade é que as questões são as mesmas e o mundo não melhorou muito desde então.”

Como sintetiza Maria: “Acho que consegui interpretar o trabalho dela, porque meus livros da escolha de imagens aos textos, buscam penetrar na alma do artista. Terra Incógnita nos fala de um mundo esvaziado e nos deixa a pergunta: O que vai acontecer com este mundo? Com esta Terra? É uma incógnita”.