Um burnout durante a pandemia soou o alerta. Depois de mais de uma década trabalhando, sem descanso, para o mercado financeiro, em Nova York, era chegada a hora de dar um tempo. Assim, Eduardo Hargreaves, hoje com 51 anos, voltou para o Brasil. Enquanto refletia sobre o que fazer, apaixonado pelo kitesurf, ele foi atrás dos bons ventos do Ceará.
No momento em que colocou os olhos na pequena e remota Barra dos Remédios, Hargreaves se encantou. Na região de Barroquinha, quase na divisa com o Piauí, o vilarejo é bem diferente de outros destinos para a prática do esporte. Não há badalação, música alta ou bares na areia.
Em um cenário de praias desertas, dunas impressionantes e lagoas cristalinas, a rotina da população local, profundamente atrelada à pesca, é tocada ao sabor do vento e do mar. Nascia ali não apenas uma nova fase pessoal do ex-executivo, mas um projeto de vida.
Hargreaves então comprou uma antiga fazenda de 220 hectares, limitada pelo oceano e o rio dos Remédios, com vegetação da Mata Atlântica à Caatinga. A ideia inicial era construir uma casa para passar férias e usar o sistema de agrofloresta para recuperar as porções desmatadas da terra — o antigo proprietário andava investindo na criação de camarões.
Mas, observando de perto os ciclos da natureza e o jeito de viver das comunidades dos arredores, como Picada Nova e Praia Nova, o ex-executivo concluiu: era preciso dividir aquele sossego e beleza com mais gente.
"Percebi a carência, e também a vocação da região para atividades que não fossem apenas ligadas aos esportes de vento. Queria desacelerar e criar algo que deixasse um legado… algo com propósito", conta ao NeoFeed.
"À medida que conheci mais o território e sua fantástica diversidade ambiental e cultural, decidi que criar um hotel com foco em experiências locais seria a maneira de impactar mais pessoas”, complementa.
Influenciado por viagens a destinos como San Blas, no Panamá; Holbox, no México; e o Cristalino Lodge, na Amazônia matogrossense, Hargreaves se lançou em um projeto de turismo regenerativo que combinasse conforto, aventura, contemplação e conservação cultural e ambiental. Assim, ele acaba de abrir as portas da Casa Daia.
A duas horas do aeroporto de Jericoacoara, é o primeiro hotel de luxo da região de Barroquinha — que, apesar de pouco conhecida, está na chamada Rota das Emoções, os 500 quilômetros de litoral entre o Ceará e o Maranhão.
Pescados do dia
Discreta, a Casa Daia conta com apenas sete acomodações. Com 35 m² e 45 m² cada, as três suítes no prédio principal têm banheiros com banheira e varanda privativa aberta para o verde. As outras quatro são bangalôs modulares construídos em meio à vegetação, com 90 m² e piscina privativa. O staff, impressionantemente bem afinado, é majoritariamente oriundo das comunidades locais.
A partir de R$ 2,2 mil a diária, as reservas podem incluir apenas café da manhã. Mas, dada a natureza ainda tão remota do destino, a gerência aposta no sistema batizado de "full experience" — com todas as refeições à la carte, bebidas não alcoólicas e duas experiências/passeios por dia.
"A ideia é que todo hóspede se sinta em casa, à vontade até para abrir nossa geladeira", diz Hargreaves.
A gastronomia é um dos principais destaques da Casa Daia. Comandada pelo chef Fábio Vieira, responsável também pela cozinha do Cristalino Lodge, cada refeição reflete uma cozinha bem autoral, impecável na montagem dos pratos, mas com foco no território e nas receitas ancestrais, sempre com ingredientes regionais e sazonais — pescados e mariscos locais, vegetais nativos e produtos vindos da agrofloresta da propriedade.
A pesca que chega à praia no amanhecer é preparada por Fábio muitas vezes na brasa, bem diante do hóspede. O sururu, catado em parceria com as marisqueiras da região, vira ingrediente-estrela no fettuccine do almoço. Os vinhos servidos são todos brasileiros e até o café do desjejum é cearense — e, por sinal, excelente.
No menu de experiências oferecidas no regime "full experience", pensadas tanto para adultos quanto para famílias com crianças, há atividades com as comunidades locais, como a cata de marisco, a farinhada e a queima de castanhas. É oferecida ainda colheita na agrofloresta, piqueniques, trilhas, passeios de barco e observação da fauna e da flora.
Entre as práticas esportivas, o hóspede dispõe de caiaque no mangue, SUP, kitesurf, wing foil, mountain bike e velejo. Um espetáculo à parte é o pôr do sol no alto das dunas de Curimãs — de tão exuberantes, são também chamadas por alguns dos habitantes do lugar de “mini Lençóis”.
Mas, é claro, cada um faz seu próprio ritmo — inclusive se quiser apenas descansar, ler, curtir a piscina ou aproveitar a praia deserta. Uma bucólica "casa de praia" construída pelo novo hoteleiro na areia serve de ponto de apoio e vira um adorável bar pop-up privativo para contemplação do entardece
Interferência mínima na natureza
O projeto de construção da Casa Daia foi desenvolvido em duas fases. A primeira, com arquitetura de Greg Bousquet do Architects Office e interiores do Black Arquitetos, aproveitou a estrutura básica da antiga casa da fazenda.
A segunda, comandada por Fernanda Barbara e Fabio Valentim, do UNA BV, com interiores de Mariana Schmidt, da MNMA, deu origem aos novos bangalôs — todos modulares, feitos com madeira engenheirada CLT, um sistema inovador que visa tornar as construções mais sustentáveis. Os espaços foram erguidos em clareiras naturais, com interferência mínima no ecossistema.
Antes de iniciar as obras, Hargreaves fez um zoneamento ambiental completo, identificando os diferentes ecossistemas e biomas da área. Ele não teve pressa. Foram dois anos de trabalho intenso até a Casa Daia finalmente abrir suas portas.
"Fizemos muito nestes dois anos e vamos focar agora na regeneração e no impacto socioambiental”, diz o empresário. “Queremos colocar a Barra dos Remédios no mapa do turismo, mas com o cuidado de tornar o lugar melhor do que o encontramos."
Os desafios foram muitos — do excesso de burocracia à busca por mão de obra qualificada, dos treinamentos contínuos à batalha pela ampliação da infraestrutura regional.
"Minhas experiências de viagem ajudaram muito a definir o produto que queria oferecer aqui. E minha experiência no mercado financeiro me mostrou que temos de focar no desejo do cliente e nas oportunidades que o setor oferece", explica ele. "Sem integrar comunidade, pescadores, fornecedores, mão de obra local e respeitá-los, não há chance de sucesso.”