John Galliano, o “enfant terrible” da moda, agora conta a própria história. Conhecido por criar narrativas exuberantes para suas coleções, o estilista bitânico passa a vida a limpo em documentário, revivendo tanto as extravagâncias criativas quanto o caos na vida pessoal.

Ascensão e Queda — John Galliano, nos cinemas desde sexta-feira (e a seguir, na Mubi), é estruturado a partir de uma longa entrevista concedida pelo designer em sua casa. Tudo entra na pauta: a infância complicada; marcada pela agressividade do pai homofóbico; a explosão no mundo na moda com o estilo de vanguarda; a pressão nos anos áureos na Dior; e o abuso de álcool e drogas, que o levou à derrocada.

Sua vida nunca mais foi a mesma após as declarações antissemitas e racistas, dadas em 2010 e 2011, incluindo a frase “Eu amo Hitler”. Ele foi demitido da Dior, condenado pela má conduta em julgamento na França e acabou “cancelado” pelas redes sociais — ainda que o termo ainda não fosse usado naquela época.

Embora fosse endeusado na moda, sempre com produções teatrais, épicas e histéricas nas passarelas, Galliano amargou alguns anos no limbo da indústria.

Pelo menos até assumir, em outubro de 2014, o cargo de diretor criativo da Maison Margiela, onde vai completar dez anos de sucesso. Nos cinco primeiros anos, ao apostar mais em acessórios, ele conseguiu duplicar as vendas da marca.

Galliano dá a entender no documentário que não se lembra exatamente do que aconteceu naqueles episódios polêmicos.

Um dos insultos antissemitas foi feito no Café La Perle, no bairro de Marais, em Paris, onde ele, bebendo sozinho, começou a atacar pessoas da mesa ao lado.

Gravadas no celular por um dos clientes, as imagens viralizaram, fazendo o costureiro despencar do pedestal e ser obrigado a se internar em clínica de reabilitação.

Na entrevista, realizada durante cinco dias em sua luxuosa casa de campo, no norte da França, Galliano, que está sóbrio há dez anos, se mostra um homem mudado e tranquilo. Como se, depois da vergonha que passou pelo que fez, estivesse em paz consigo mesmo.

Morte aos poucos

“Eu cometia suicídio, lentamente”, conta o designer de 63 anos, ao recordar a época em que abusava da cocaína, do álcool e de medicamentos, como anfetaminas e soníferos. Apesar de não dizer isso explicitamente, Galliano dá a impressão de querer atribuir o comportamento execrável à vida de excessos que levava.

Os abusos eram cometidos para aliviar a “pressão” no trabalho – só na Dior, ele respondia por oito coleções por ano, além de mais oito para a marca própria. E todo “gênio’’, como sempre o chamaram, também acaba pagando um preço alto por sua genialidade, o que é sugerido aqui.

As aparições de Galliano, ao final dos desfiles, são um espetáculo à parte - como quando se apresentou de toureiro, no desfile outono-inverno, 2007-2008, da Dior (Crédito: Reprodução X @detikcom)

A modelo Kate Moss sempre esteve ao lado do designer britânico como mostra foto dos anos 1990 (Crédito: Reprodução X @John_Galliano_)

Naomi Campbelll desfila uma peças da coleção da Dior, da temporada outono-inverno, de 1997 (Crédito: Reprodução Instagram)

Com a Coleção Artesanal Maison Margiela 2024, Galliano proõe um passeio pelas "entranhas" de Paris (Crédito: Reprodução Instagram @maisonmargiela)

O "dramático" vestido de noiva da cantora Gwen Stefani, em 2015, foi desenhado por Galliano (Crédito: Pinterest)

Na última festa da revista Vanity Fair, depois da cerimônia do Oscar 2024, a modelo Kendall Jenner vestiu um "Galliano", para a Maison Margiela (Crédito: Reprodução Instagram @maisonmargiela)

Galliano é famoso por suas criações estravagantes, como essa para a coleção de outono de 2006, para a Dior (Crédito: Reprodução Instagram @jdiorbyjgalliano)

Dirigido por Kevin Macdonald, vencedor de um Oscar pelo documentário One Day in September (sobre o atentado terrorista durante Olimpíadas de 1972, em Munique), o novo filme favorece a imagem do estilista. Como são mais depoimentos a favor do que contra, fica a ideia de que Galliano já pagou a sua dívida, podendo ser perdoado – não só no circuito fashion, como pela sociedade no geral.

Personalidades da indústria da moda, como as modelos Kate Moss e Naomi Campbell e a editora-chefe da Vogue americana Anna Wintour, deixam claro que sempre o apoiaram na “volta por cima”.

Só o fato de a empresa por trás da Vogue, a Condé Nast, ser uma das coprodutoras do filme (por meio da divisão de entretenimento da companhia), é sinal de que Galliano segue como uma figura querida no universo fashion.

E para o documentário ajudar a limpar a sua barra de vez, nada melhor do que voltar no tempo e reforçar a sua contribuição artística. O designer sempre encarou (talvez até mais do que seus colegas) as roupas como obras de arte, por mais difícil que fosse usar suas criações.

De patinho feio a pavão

Ele mesmo admite que nasceu como patinho feio, mas se tornou um “pavão”, estilo o que sempre predominou na sua moda. Logo de cara, ele fez sucesso. Toda a coleção de seu desfile de formatura, após completar o curso na Central Saint Martins, de Londres, foi comprada pela loja de departamento Browns, por sua audaciosa inspiração na Revolução Francesa.

Nascido em Gibraltar, onde morou até os seis anos, quando a família se mudou para a Inglaterra, Galliano sempre colocou um pouco de sua essência nos seus looks.

Inspirado tanto na infância colorida, na Península Ibérica, quanto na adolescência rebelde, na cena underground de Londres, o designer impactou o setor com sua criatividade, sua experimentação e seu espírito de vanguarda.

Foi assim que ele enfrentou o estilo burguês da moda de Paris, tornando-se o primeiro designer britânico a comandar uma maison de alta costura na França. Primeiro na Givenchy (de 1995 a 1997) e, em pouco tempo, na Dior, onde permaneceu de 1997 a 2011.

Lá, ele não só revitalizou a marca como conseguiu impulsionar as vendas de roupas e acessórios – um aumento de 35%, nos seus primeiros quatro anos.

Seus desfiles nunca foram meramente desfiles. São espetáculos, que refletem uma explosão de ideias (muitas vezes inspiradas em outras culturas, como a indiana, chinesa e japonesa).

Por não aceitar fazer o jogo estabelecido pelas grifes de luxo, é como se Galliano quisesse sempre virar tudo do avesso, carregando na teatralidade, na provocação e na estética visionária.

Até as suas aparições, ao final dos desfiles, sempre fizeram barulho. Nos anos na Dior, havia sempre um quê de megalomaníaco, quando ele pisava na passarela vestido de toureiro, astronauta ou mesmo de Napoleão.

Não por acaso, o diretor do documentário usa aqui alguns clipes do filme Napoleão (1927), de Abel Gance, e ainda compara Galliano ao líder militar francês. O estilista refuta a associação na entrevista, mas, pelo seu tom, dá para perceber que ele não desgosta tanto assim da ideia.