Quem vê o chef Laurent Suaudeau, de 66 anos, sempre muito sério, focado e avesso a exposições desnecessárias, não o imagina com a pele bronzeada e os pés descalços, brincando livremente nas areias quentes do sudoeste da França, por meses a fio.

Do garoto extrovertido durante as férias de verão na casa de praia dos avós para o cozinheiro contido, reverenciado por todos da gastronomia brasileira, só restou algo em comum: o desejo de estar sempre perto das panelas.

“A primeira lembrança que tenho de ‘cozinhar’ é das ‘tortas’ de areia e pedrinhas, em forminhas de alumínio, que eu fazia e saía distribuindo para as nossas vizinhas em Cholet”, conta Laurent, no livro de memórias O Toque do Chef, lançado oficialmente em outubro pela editora Melhoramentos.

Cholet é sua cidade natal e onde familiares ainda lembram dele, aos cinco anos, dizendo que queria ser cozinheiro de navio.

Um dos chefs mais respeitados – se não o mais – do Brasil, Laurent encabeçou nos anos 1980, ao lado de colegas como Erick Jacquin, Claude Troisgros e Emmanuel Bassoleil, o movimento pelo uso dos ingredientes brasileiros na alta gastronomia e pela valorização da profissão.

Quando chegou ao Brasil, em 1979, para chefiar a cozinha do restaurante Le Saint-Honoré, no hotel Méridien, no Rio, por indicação do mestre Paul Bocuse, ser cozinheiro “não significava nada”. Assim como o uso de tucupi, jaboticaba, mandioquinha ou tapioca era impensável em receitas para as classes mais abastadas.

Ao trabalhar ingredientes locais com apuradas técnicas francesas abriu caminho para que nomes como Alex Atala, Rodrigo Oliveira e mais recentemente Onildo Rocha pavimentassem a estrada da valorização da cozinha brasileira.

Mesmo longe do trabalho diário em restaurantes há mais de 20 anos, Laurent não abandona a dólmã. Às 9 horas da manhã do dia seguinte à primeira sessão de autógrafos do livro, escrito durante a pandemia, já tinha dado aula na Escola de Artes Culinárias que leva seu nome, em São Paulo, e seguiria ativo na cozinha até a noite.

“Nunca cozinhei tanto”, garante ele, que hoje conta com apenas sete pessoas para ajudar nas aulas, consultorias e eventos privados.

É nesse ritmo e entendimento do trabalho que ele abomina os rankings de melhores chefs. “Eu odeio a palavra lista. Me dá arrepio. Estamos aqui para fazermos o melhor que podemos, não para sermos o melhor de alguma coisa.”

Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista de Laurent, ao NeoFeed, na qual ele fala sobre sobre a evolução do mercado de gastronomia nesses quase 50 anos de Brasil e o que ainda precisa ser mudado.

Você sempre trabalhou para colocar os ingredientes brasileiros em evidência nos restaurantes mais sofisticados. O "analfabetismo gastronômico”, como você já definiu certa vez, evoluiu nas últimas décadas?
A relação com a brasilidade mudou e está sendo bem assimilada por uma camada mais jovem da população. O que é extremamente encorajador. Mas, mesmo com todos os esforços de chefs como Onildo Rocha, Rodrigo Oliveira e Felipe Schaedler, ainda é incipiente, especialmente comparado a outros países da América Latina, como o Peru, onde uma grande parte das classes média e média-alta tem uma relação umbilical com a sua gastronomia. É uma identidade cultural muito forte que foi assimilada e é defendida. O que não acontece no Brasil.

Como mudar isso?
O fortalecimento da cozinha brasileira passa obrigatoriamente pela cozinha regional. Poucos países na América do Sul oferecem uma paleta tão diversa e rica regionalmente e isso tem de ser preservado. Um trabalho bonito tem sido feito pelo chef Paulo Machado, com a divulgação da cozinha pantaneira. Lembro que quando cheguei no Brasil falavam que cozinha brasileira era feijoada. Não posso concordar com isso. Mas essa é uma visão já está passando.

"Quando cheguei no Brasil falavam que cozinha brasileira era feijoada. Não posso concordar com isso. Mas essa é uma visão já está passando"

Você colocou o tucupi no menu pela primeira vez no início da década de 1980 e ainda hoje muita gente ainda não conhece ou ainda torce o nariz. Isso desanima?
A inserção de um hábito alimentar é lenta. Como todo processo cultural, demora para se embrenhar na sociedade. Ainda tem um grande trabalho a ser feito, mas a construção da cozinha brasileira tem de passar isso.

Depois de tantos anos de Brasil, como definiria a cozinha brasileira?
Como o país é grande e os saberes das cozinhas regionais ainda estão dispersos, é difícil ter uma definição. Seria preciso que as escolas tivessem um olhar mais profundo para a identidade regional no que diz respeito aos ingredientes e à assimilação de técnicas e gestuais locais para aplicá-los dentro dos ensinamentos de forma reflexiva. É um trabalho enorme, que começa a ser feito individualmente por alguns chefs, mas que precisa ser conduzido de forma institucional para ser transmitido aos jovens cozinheiros.

Muitos cozinheiros têm investido fortemente em pesquisas de campo para embasar o trabalho em suas cozinhas. Esse é um caminho para acelerar o desenvolvimento?
Acho ótimo isso. E tem de continuar. Mas todo mundo fala da Amazônia enquanto temos aqui do lado a Serra da Mantiqueira que é riquíssima. Não é preciso ir tão longe para buscar conhecimento. É preciso trabalhar com aquilo que está acessível à sua volta. Ainda tem muito a ser explorado no trabalho de pesquisa local.  Em São Paulo mesmo tem gente não sabe o que é cambuci.

De certa forma, guias como Michelin e premiações como 50 Best têm ajudado a divulgar para o mundo o trabalho que está se fazendo por aqui. Qual sua opinião sobre essas publicações?
São promoções individuais de chefs e restaurantes e não da gastronomia como um todo. São expressões de descarte, imediatista, que geram competição e frustração. Acho que não tem mais espaço para isso. Torço para que acabem. Nosso métier é muito mais profundo, não é artístico. Está muito mais próximo da engenharia e da ciência do que das artes. Tanto que [Auguste] Escoffier, em 1898, já falava que a cozinha é uma ciência aplicada. Estamos aqui para alimentar e fazer as pessoas felizes.

Cavaquinha, molho Iemanjá ( a base de moqueca), galette de tapioca e creme de acaça: defesa de ingredientes nacionais
Cavaquinha, molho Iemanjá ( a base de moqueca), galette de tapioca e creme de acaça: defesa de ingredientes nacionais

Mas estar nas listas entre os melhores do mundo não ajuda a atrair clientes?
Eu odeio a palavra "lista". Me dá arrepios. Estamos aqui para fazermos o melhor que podemos, não para sermos o melhor de alguma coisa. Acho que vale a análise do trabalho efetivo de uma pessoa dentro de sua cozinha, o quanto ele ajudou a multiplicar e fortificar a gastronomia numa visão mercadológica, mas não da forma que está sendo feita. Me espanta ainda termos tão poucas vozes contra esses sistemas. Mas vai crescer, pode ter certeza.

Quando você chegou ao Brasil não existiam escolas de gastronomia e a mão de obra era de baixa escolaridade. Hoje, o perfil sociocultural dos cozinheiros mudou, muitas vezes não fechando a conta entre o investimento na formação e o salário-base da categoria. Como equalizar esse descompasso?
Isso é um grande desafio. O modelo de formação que ainda temos é uma herança do pós-guerra, e precisa ser revisado. O público que atendo na escola, por exemplo, [foram mais de 23 mil alunos em 23 anos] são pessoas que muitas vezes já têm um negócio, mas não entendem do métier. Eles vêm fazer o curso, mas não trazem seus cozinheiros, que vão fazer o negócio acontecer na beira do fogão.

E qual seria o modelo ideal?
Precisamos encontrar um modelo para permitir que o cozinheiro-executor, e não só o empreendedor, se desenvolva. Não podemos deixar esse cara fora. As duas pontas, que se completam, precisam ser valorizadas.