A culinária amazônica ainda é desconhecida de grande parte dos brasileiros, mas foi fator preponderante para que o jornal The New York Times inserisse a capital amazonense na lista dos melhores destinos turísticos do mundo para se visitar em 2023. A cozinha típica da região, pautada em ingredientes locais, técnicas únicas e conhecimentos ancestrais dos povos originários chamaram tanta ou mais atenção do que as belezas naturais e os potenciais bioeconômicos da floresta Amazônica.
Há uma justificativa para esse comportamento: o questionamento sobre os excessos das inovações e experiências da alta gastronomia, que teve como símbolo a onda tecno-emocional do chef espanhol Ferran Adrià. A busca tem sido pela culinária baseada na cultura de um grupo étnico, onde se encontra a riqueza dos sabores. Na Amazônia, a história da arte de cozinhar indígenas se apresenta como um sopro de vitalidade extra a um destino já em alta.
“Entrar num guia tão importante quanto esse certamente é uma grande conquista para o trabalho de formiguinha que temos feito há muito tempo para mostrar ao mundo nossa cultura”, diz o chef Felipe Schaedler, do premiado restaurante manauara Banzeiro. “Mais do que gerar um impacto positivo para a culinária amazônica, acaba sendo um grande puxão de orelha para os próprios brasileiros e para o governo que não valorizam o que temos.”
Viajar para a região é se deparar com a barraca da Dona Rosa, “que vende uma variedade incrível de frutas típicas” e o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, que desde 2020 abriga o restaurante Biatüwi, o primeiro de comida indígena do país, comandado pela chef Clarinda Ramos, da etnia Sateré-mawé, do Baixo Amazonas, e o antropólogo João Paulo Lima Barreto, da etnia Tukano, do Alto Rio Negro.
Ali, o moquém, grelha feita de madeira para assamentos por meio de defumação, divide espaço com o fogão industrial. E o menu típico inclui pratos que não deveriam nos ser desconhecidos ou considerados exóticos (mas ainda são) como a quinhapira (ensopado de peixe feito com caldo de tucupi preto apimentado), a mujeca (caldo de peixe engrossado com goma ou farinha de mandioca) ou a puqueca (cozido enrolado em folha de bananeira). Para beber, aluá (fermentado de abacaxi), sapo (guaraná ralado na língua do pirarucu) e tarubá (fermentado de mandioca).
Interessado na riqueza da culinária amazônica desde que se mudou para Manaus com a família, aos 15 anos, Schaedler – nascido em Santa Catarina – se tornou uma espécie de embaixador da culinária local.
Combinando técnicas clássicas francesas com outras ancestrais, ele já apresentou a grandes chefs internacionais alguns dos sabores típicos da região, como o dos cogumelos yanomamis, dos peixes de água doce como tambaqui e pirarucu, da farinha Uarini (também conhecida como farinha de bolinha), do cupuaçu, do tucumã (fruta de polpa carnuda) e do puxuri (semente aromática).
Ao lado de Alex Atala e Bela Gil, Schaedler excursionou por diferentes aldeias indígenas. Subiu e desceu rios para criar uma rede de fornecedores. E, com o suporte de um empresário manauara, abriu em 2019 uma filial do Banzeiro em São Paulo, no bairro do Itaim Bibi.
“A curva de clientela subiu muito nesses três anos, mesmo com a pandemia. As pessoas estão curiosas e abertas a experimentar. A roda está girando positivamente”, afirma o chef, que sonha um dia poder levar o Banzeiro para Nova York. “Se for atrás, sei que existe dinheiro para fazer isso. Mas a cadeia logística para o fornecimento regular dos insumos ainda é muito incerta”, responde com um tom de lamentação.
Difícil lá, difícil cá
A dificuldade de garantir o acesso regular e padronizado aos principais ingredientes amazônicos não se limita ao exterior. Mesmo em território nacional o cenário ainda é complexo, precário e oneroso.
“A maior parte dos fornecedores ainda não está pronta para atuar de forma profissional, indo desde a informalização até a padronização e a dificuldade de cumprimento dos prazos”, afirma Joanna Martins, sócia-fundadora da indústria de alimentos Manioca, voltada à comercialização e beneficiamento de ingredientes da Amazônia como tucupi (caldo fermentado extraído da raiz de mandioca brava), tapioca e pimentas.
Para mitigar o problema, a empresa criou um programa para ajudar os pequenos produtores (famílias ribeirinhas, associações e cooperativas) a se desenvolverem, cuidando para que o avanço não apague as características locais ou destrua a floresta. “Na Amazônia o tempo é outro, assim como as dificuldades de transporte”, lembra ela.
Não bastassem as grandes distâncias na floresta, o custo aéreo para trazer os insumos para São Paulo muitas vezes inviabiliza o negócio. “Já cheguei a pagar R$ 80/kg da carga em uma companhia aérea para trazer um peixe cujo quilo foi R$ 20”, exemplifica Schaedler, que hoje conta com rotas terrestres para manter a casa abastecida no Sudeste.
Criada em 2014, com foco no fornecimento de jambu, tucupi e castanha-do-Pará para restaurantes, a Manioca tem hoje no food service apenas 20% de seu faturamento. Casas como D.O.M, de Alex Atala, Maní, de Helena Rizzo, e Mocotó, de Rodrigo Oliveira, então entre seus clientes mais fiéis. Mas é no varejo que a empresa mais tem crescido nos últimos anos.
Com 24 produtos disponíveis no portfólio – indo da farofa de mandioca fermentada e do molho de pimenta cumari com tucupi preto até snacks de mandioca com jambu e granolas com tapioca –, a ideia da Manioca é focar no desenvolvimento e aprimoramento de produtos a partir da mandioca.
Desde 2021, todo tucupi comercializado pela empresa é produzido em estrutura própria, voltada também à pesquisa e desenvolvimento. O que garante um produto final 100% orgânico, padronizado e com menor impacto ambiental.
“Investimos R$ 150 mil nesse projeto, mas o cenário para a bioeconomia na Amazônia tende a ser facilitado agora com políticas públicas e desenvolvimento de um ecossistema na região”, afirma Paulo Reis, cofundador da empresa. “Precisamos ter mais negócios da Amazônia espalhados para que não seja uma coisa exótica”, acrescenta a sócia Joanna Martins.
Presente em 20 estados – com maior força em São Paulo e Rio de Janeiro, onde grandes redes varejistas como Pão de Açúcar, St. Marché e Zona Sul garantem visibilidade em mais de 250 lojas –, a empresa fechou 2022 com faturamento próximo a R$ 2 milhões. Crescimento de 53,8% em relação a 2021. Para 2023, a expectativa é dobrar a receita.
Apesar de representar cerca de 10% do faturamento, com recorrência de envios para chefs (principalmente brasileiros) nos Estados Unidos e na Europa desde 2020, o desenvolvimento do mercado externo ainda não é o objetivo da marca no momento. “Ainda falta muito para o Brasil descobrir o Brasil”, pontua Joanna.
Esse é um fato que não se restringe apenas à culinária Amazônica, especialmente se pensarmos na imensa diversidade de ingredientes a serem explorados. Mas o trabalho de formiguinha dos chefs e empresas focadas no segmento já começa a dar resultados junto aos varejistas e ao público final.
Peixe de rio
No fim de 2021 o Bio Pescados da Amazônia, frigorífico instalado às margens do Rio Solimões responsável por processar diariamente cerca de 70 toneladas de peixes distribuídos para todo Brasil – além de Estados Unidos e Colômbia – inaugurou loja própria no bairro paulistano do Jardins com foco no desenvolvimento da marca.
Ali, mais de 30 tipos de peixes da amazônicos (como tambaqui, pirarucu, filhote, tucunaré, surubim, aruanã e matrinxã) são comercializados congelados em diferentes porções e cortes, totalizando mais de 50 SKUs (número único de referência). Entre os mais vendidos estão a banda de tambaqui sem espinha (R$ 65/kg) e o filé de pirarucu de manejo (R$ 63/kg).
De acordo com o diretor de marketing, Gustavo Pedrosa, desde a inauguração o faturamento do espaço de 80 m² – que também conta com um pequeno restaurante e comercializa outros produtos da região como cachaças de jambu, farinhas, geleias de frutas típicas, açaí, pimentas – dobrou, passando de R$ 45 mil em dezembro de 2021 para R$ 90 mil no mesmo período de 2022. “Houve a quebra da resistência do consumidor paulistano aos peixes de rio”, diz ele
Prova disso é a taxa de recompra que já passa dos 50% e o incremento do tíquete médio no restaurante em 60%. “Principalmente nos finais de semana, os clientes provam os peixes aqui e levam para fazer em casa”, conta o executivo.
No último ano, as vendas para o varejo se igualaram às do food service. A tendência é de crescimento com a entrada da marca nas redes supermercadistas Zona Sul (RJ) e Carrefour. “A promessa é começar a vender antes da Semana Santa. Vamos fazer uma comunicação diferenciada, que valorize a origem amazônica dos peixes”, diz Pedrosa. A marca também fornece pescados para restaurantes como o D.O.M, Mocotó, Tordesilhas, Baru Marisqueria, Balaio e Cuia Café.
Em parceria com a Gosto da Amazônia – marca criada em 2019 pelo Coletivo do Pirarucu, uma rede de pescadores indígenas e ribeirinhos manejadores de pirarucu das bacias dos rios Negro, Solimões, Juruá e Purus – o Grupo Pão de Açúcar também começa a expandir sua oferta de peixes nativos.
Atualmente, 15 lojas do grupo comercializam filés de pirarucu processado. “Assim, conseguimos encurtar caminhos e fazer com que mais pessoas possam experimentar o produto e ajudar na conservação da Amazônia”, diz Sérgio Abdon, responsável pela área de marketing do Gosto da Amazônia.
Segundo dados do anuário 2022 da Peixe BR, das 486,2 mil toneladas de peixes produzidas por ano no País, as espécies nativas representam apenas 31,2%, sendo o tambaqui a mais expressiva, com consumo concentrado principalmente no Norte e no Centro-Oeste. Em compensação, a tilápia, originária do rio Nilo, representa hoje 63,5%, com tendência de chegar a 80%.