Por bastante tempo, uma das figuras mais importantes e controversas da história americana, Malcolm X foi visto apenas como um líder extremista e radical que pregava reações violentas contra a opressão ao povo negro americano. Nas últimas décadas, porém, seu nome tem sido reavaliado como um dos poucos políticos do século 20 que deixaram um legado baseado em ideias sólidas e coerentes.
No centenário de seu nascimento, o livro Custe o que custar, trazido este mês ao Brasil, pela editora Ubu, dá ainda mais clareza ao seu pensamento e amplia sua relevância histórica como pensador — uma vítima, porém, da incompreensão racista de seus críticos e adversários. Não só isso, ajuda a compreender por que suas falas públicas a seu antigo guru contribuíram para seu assassinato.
Organizada por George Breitman, a obra reúne discursos, entrevistas, cartas e declarações do último ano de sua vida, entre março de 1964 e fevereiro de 1965, período de intensa transformação, em que Malcolm se reinventou como líder político e intelectual. A virada veio ao deixar a organização político-religiosa negra Nação do Islã, encabeçada por seu antigo mentor, Elijah Muhammad, em março de 1964.
A partir daí, Malcolm inaugura um novo capítulo de sua trajetória, ao fundar a Organização da Unidade Afro-Americana (OAAU), amplia o escopo da luta antirracista e passa a defender um projeto político radical, internacionalista e solidário entre os povos oprimidos do mundo.
No auge do ativismo e de sua atuação como intelectual engajado, no dia 21 de fevereiro de 1965, ele foi assassinado na entrada do Salão Audubon, no Harlem, por um dos integrantes da Nação do Islã, quando se preparava para realizar mais um discurso.
Nesse período, explica Breitman, Malcolm se consolidou como uma figura de vanguarda na luta pela libertação da população negra.
Livre de seu líder, ele passa por uma evolução intensa, quando aprimorou e expandiu sua visão revolucionária à luz de uma experiência política cada vez maior. Ele viaja por inúmeras cidades americanas, visita a África, o Oriente Médio, a Grã-Bretanha, a França e a Suíça. Desse modo, reavaliou seu conhecimento sobre as dificuldades enfrentadas pelos negros e por outros povos oprimidos e explorados mundo afora.
Ao mesmo tempo, acrescenta o organizador, Malcolm procurou um escopo cada vez maior de combatentes e revolucionários, “a quem influenciou e por quem foi influenciado”. Sua crítica contundente ao que chamava de hipocrisia da democracia americana se tornou mais estruturada, ao mesmo tempo em que conectou o racismo interno aos mecanismos globais de dominação colonial e econômica.
“É nesse momento que ele rejeita de forma equívoca o reformismo liberal e propõe uma revolução cultural, moral e política, articulando a luta negra com os movimentos socialistas, panafricanistas e anticoloniais”, observa Breitman.
O título do livro vem da frase “‘Custe o que custar’ — ‘esse é o nosso lema’”, como explicou Malcolm, no evento de fundação da OAAU: “Queremos liberdade, custe o que custar. Queremos justiça, custe o que custar. Queremos igualdade, custe o que custar”.
Entre os textos mais importantes estão sua declaração de rompimento com Elijah Manamman, o discurso de fundação da OAAU, cartas escritas no Cairo, falas em comícios no Harlem e entrevistas concedidas durante viagens à África e à Europa.
Sobre escolas integradas, por exemplo, dava respostas que hoje parecem corretas e ponderadas: “No que diz respeito à integração nas escolas públicas, não sei de nenhum lugar nos Estados Unidos onde haja um sistema de escolas integradas, seja no Norte, seja no Sul. Se isso não existe na cidade de Nova York, certamente jamais vai existir no Mississippi. E se uma coisa não funciona, eu não sou a favor. Isso não quer dizer que eu seja a favor de um sistema escolar segregado. Sabemos muito bem o tipo de mentalidade tortuosa produzida por um sistema escolar segregado”.
O amadurecimento como pensador
Na apresentação do livro, o historiador Steve Clark escreve que, em cada uma dessas falas, nota-se o amadurecimento de um pensador que não se acomodou às estruturas existentes e soube, com coragem e coerência, falar em nome próprio.
“Custe o que custar é o testemunho vibrante dessa virada histórica e a reafirmação de Malcolm como uma das vozes revolucionárias mais lúcidas do século 20”. Nas falas, “ele denuncia o racismo estrutural e sua defesa intransigente da autodefesa como direito básico, o que fazem deste livro um marco do pensamento político”, defende Clark.
Ele faz uma contextualização importante para se compreender como o líder negro moldou seu pensamento e como conflitos éticos o fizeram se afastar de Elijah Muhammad e o levaram à morte.
Conta ele que, no começo da década de 1960, quando ainda era o mais renomado e popular porta-voz da Nação do Islã, Malcolm usou seus palanques no Harlem e em bairros negros espalhados pelos Estados Unidos, assim como dezenas de universidades, para denunciar as políticas do governo americano.
A hipocrisia do mentor
Em abril de 1963, porém, conflitos internos o forçaram a sair da organização. Muhammad lhe confessou que eram verdadeiros os boatos de que ele havia mantido relações sexuais com adolescentes da organização.
Quando várias dessas garotas engravidaram, o líder se aproveitou de sua autoridade para fazer com que fossem submetidas a humilhantes julgamentos internos para que fossem suspensas sob a acusação de “fornicação”.
Malcolm comentou sobre o impacto que essa descoberta teve para ele em uma entrevista para a revista Young Socialist, em janeiro de 1965, publicada em Custe o que custar: "Quando eu soube que a própria hierarquia não estava praticando o que pregava, ficou claro que essa parte do programa da organização estava falida”.
Em diversos discursos e entrevistas que deu no mês de sua morte, Malcolm analisou a fundo as consequências políticas reacionárias que esse comportamento "pessoal" corrupto e hipócrita provoca.
Muhammad era culpado não apenas de violência sexual contra adolescentes, mas também do abuso de poder, levando a cadeia de comando da organização a abafar o escândalo sexual que ele protagonizou.
A reação de Malcolm foi informar aos ministros de diversas outras mesquitas da Costa Leste americana sobre o que ficara sabendo. Dessa forma, transformou-se em uma ameaça ao principal líder da Nação, que contava sobretudo com seus tenentes para policiar atitudes na organização.
Em uma entrevista, Malcolm reconheceu que ele mesmo serviu de representante de Muhammad em negociações secretas com os líderes da organização racista Ku Klux Klan, em 1960, porque tinha esperanças de chegar a um acordo que resultaria na obtenção de terras para a Nação no Sul.
O líder da organização também manteve laços com o líder do Partido Nazista Americano, George Lincoln Rockwell. "Rockwell e Elijah Muhammad se correspondem regularmente", Malcolm disse a uma plateia no Harlem, uma semana antes de ser assassinado. "Vocês podem me odiar por dizer isso, mas eu vou dizer."
Por falar tanto, ficou decidido que ele tinha de ser silenciado — de qualquer jeito e para sempre. E assim aconteceu. Mas não conseguiram matar suas ideias.