Os atores descem num cortejo pela alameda que atravessa o teatro. Não há palco no sentido convencional. O Teatro Oficina é uma rua que aproxima público e plateia no projeto da arquiteta Lina Bo Bardi. Dois anos após a morte do diretor José Celso Martinez Corrêa, criador da companhia e uma das figuras mais revolucionárias do teatro brasileiro, sua irreverência continua viva nos dois textos de Nelson Rodrigues que estão em cartaz: Senhora dos Afogados e 7 Gatinhos.
Como num tributo a Zé Celso, as peças chamam à dança e à festa numa catarse dionisíaca. Isso, apesar dos textos trágicos de Nelson Rodrigues, o grande mestre em desvendar a hipocrisia social. Nas palavras de Zé Celso, que o compara a Shakespeare, “Nelson é um dos maiores artistas de teatro, indo além de Ésquilo e Sófocles”.
Montar Senhora dos Afogados era um grande sonho de Zé Celso. Agora, dirigida por Monique Gardenberg, é a primeira grande produção depois de sua morte. A sintonia que havia entre os dois, que trabalharam juntos diversas vezes, é visível no resultado.
“Nossa parceria era sobretudo de amizade. Nossa troca era constante e cheia de pulsão vital. Era como se a gente se animasse mais com a vida quando estávamos ao lado um do outro”, diz Monique ao NeoFeed. Eles trabalharam juntos pela primeira vez em 1994, quando levou para o Rio de Janeiro a montagem que Zé Celso havia feito de Ham-let, o clássico de Shakespeare.
Agora, Monique sente sua ausência: “Viver sem o Zé é mais sem graça. Quanto mais o homenageamos, mais sua ausência nos dói", diz a diretora. "Mas Zé não era dado à tristeza, muito pelo contrário. Então, é obrigação nossa honrar sua memória. Na alegria, na alegria de viver, no êxtase de atuar, de dirigir.”
O resultado está na aceitação do público, que tem lotado o Oficina todas as noites com espectadores de diferentes faixas etárias, acomodados por horas em bancos de madeira que estão longe de serem confortáveis.
Como faz parte da história da companhia, há sempre alguma interação entre público e atores, nem que seja algum diálogo ou um convite para dançar.
Na montagem de Monique, há vários telões espalhados pelo teatro, o que permite às pessoas que estão no andar de cima acompanhar as cenas com mais detalhe. Esse recurso também estabelece uma conversa contínua entre teatro e cinema.
“Venho da geração do videoclipe, da experimentação, do improviso, uma turma que se jogava e achava o máximo o conceito ‘glauberiano’ de uma câmera na mão, uma ideia na cabeça", lembra Monique. "O duro era conseguir levar a ideia para a tela”, completa.
Ela é conhecida também como diretora de cinema de Jenipapo, Os Sete Afluentes do Rio Ota e Benjamim: “Quem me tirou o medo e desmistificou o teatro para mim foi Zé Celso. Ele me convenceu de que eu já encenava nos meus filmes".
7 Gatinhos tem direção de Joana Medeiros, antiga integrante do Oficina, que também atua como atriz no espetáculo. Como acontece em Senhora dos Afogados, a peça é um desnudar da verdadeira face de uma família que se esconde sob a máscara do moralismo.
A diferença é que, enquanto 7 Gatinhos retrata um ambiente da zona norte carioca, Senhora dos Afogados se debruça sobre os meandros de uma família influente, de classe média alta.
"Ele está dentro da gente"
Fundada em 1958 por Zé Celso, a companhia teatral passou por inúmeras mudanças, hoje se chama Teatro Oficina Uzyna Uzona, é a mais longeva do país e foi tombada pelo IPHAN como patrimônio material e imaterial brasileiro. Viúvo de Zé Celso, com quem montou mais de 30 peças, o ator e diretor Marcelo Drummond continua à frente do grupo.
Ao falar sobre o desafio de levar adiante o legado do Oficina, ele diz não olhar como uma responsabilidade apenas sua. “É um teatro de um grupo, uma coisa que fazemos juntos e uma responsabilidade que muita gente assumiu", conta ao NeoFeed.
E ele completa: "A gente vai levando, como já levava na época do Zé, porque não dá para parar de trabalhar, mas sempre tivemos muitas dificuldades e poucos patrocínios. Senhora dos Afogados” foi a primeira peça que fizemos com o apoio do Sesc, o que nos deu outra condição financeira.”
No dia a dia, o que Marcelo mais sente falta é da convivência com o diretor com quem viveu 37 anos: “Sinto falta de sentar à mesa e comer junto. Sinto falta quando a gente sentava e ficava durante um grande tempo em silêncio. Cada um lembrando uma coisa, cada um fazendo uma coisa. Mas ele sempre foi um antropófago. É como se a gente tivesse comido ele. Então, ele está dentro da gente.”
Qual é o futuro do Oficina sem Zé Celso? Para Monique, o Oficina será sempre transgressor. “Está em seu DNA, em cada pessoa que habita aquele teatro e atua no palco ou fora dele. A abordagem de cada um torna tudo 'extra-ordinário", diz. "Sempre me impressionei e atraí muito por isso.”