Em 2018, a chef e pesquisadora Ana Luiza Trajano, mais conhecida por seu trabalho à frente do extinto restaurante Brasil a Gosto, mudou-se para a França para possibilitar aos dois filhos com dupla cidadania uma vivência no país de origem do pai, o chef de cozinha (e ex-marido de Ana) Yann Corderon.
Mas o período, que era para ser de apenas um ano e meio, acabou se tornando mais longo com a Covid e gerando um novo “filho’’ de dupla nacionalidade, o Madame Brésil. Voltado à promoção e comercialização de ingredientes brasileiros no exterior, o projeto nasceu a partir do contato de Ana com a advogada Thais dos Santos, que já fazia a importação de açaí e alguns outros insumos nacionais pela Du Brésil au Monde.
“A conheci pela internet no fim de 2020, quando buscava açaí para o meu filho, que é apaixonado. Começamos imediatamente uma forte conexão de amizade e negócios”, lembra Ana, filha da empresária Luiza Helena Trajano (presidente do Conselho de Administração do Magazine Luiza). Em seis meses, começaram a gestar o novo negócio.
Com lançamento oficial marcado para este mês, a empresa já importou neste ano ao menos três containers com cerca de 20 toneladas de alimentos cada. Tudo para garantir pronta entrega para as vendas concentradas inicialmente em Paris, Lyon, Bordeaux, e Marselha, onde ficam os centros de estocagem, porcionamento, embalagem e distribuição.
No catálogo de saída estão 20 produtos típicos dos diferentes biomas brasileiros, como tapioca, óleo de dendê, polvilhos e farinhas de mandioca, fubá, puxuri, açaí, castanhas, feijão de Santarém e chocolate amazônico, de cerca de 10 produtores de várias regiões.
Todos selecionados a partir de um mapeamento feito pelo Instituto Brasil a Gosto, fundado por Ana Luiza em 2016 com o objetivo de "expandir a cultura da culinária brasileira", e do qual ela hoje faz parte do conselho.
Para a escolha dos ingredientes, levam-se em conta a qualidade, capacidade de produção com consciência ambiental, valorização da agricultura familiar com foco nas mulheres e comércio justo. Além da facilidade para obtenção de registro de importação e baixa perecibilidade.
Cafés, cachaças e outros 60 ingredientes já estão na mira da chef-empresária. Mas a regra agora é ir com calma para “ajustar o fluxo de caixa e não estourar o orçamento”. Daí restringir, nesse primeiro momento, as vendas para os principais mercados franceses. Ainda que haja demanda reprimida em Portugal, Bélgica e Alemanha.
“Se fosse um projeto só comercial seria mais fácil. Mas queremos colocar o Brasil no mercado de luxo na França fazendo um trabalho coerente, com propósito sócio-ambiental e realmente engajado com a sustentabilidade”, diz Ana Luiza ao NeoFeed.
Atualmente, o principal público do empreendimento são franceses com algum tipo de ligação afetiva com o Brasil e esportistas em busca de alimentos saudáveis, sem glúten ou lactose.
Pontos para a farinha de mandioca, o açaí e o leite de castanha brasileira que lideram a lista de bestsellers no site, onde o tíquete médio tem ficado na casa dos 80 euros, muito puxado ainda pelo alto custo do frete.
“Não quero colocar o Brasil como produto exótico, restrito a mercadinhos ou à comunidade brasileira. Minha missão é posicionar a culinária brasileira no patamar de valorização e tratamento que ela merece. Que ela fosse a referência após a francesa”, diz, sonhando alto.
Todas embalagens foram cuidadosamente pensadas para serem biodegradáveis ou reutilizáveis e o trabalho de porcionamento e embalo é feito em parceria com associações governamentais francesas que têm como objetivo integrar profissionalmente pessoas com algum tipo de deficiência física ou mental à sociedade (Esat).
Também está prevista a compra de créditos de carbono para compensar as emissões ao longo de toda a cadeia, além do retorno de 3% do lucro das vendas para o Instituto, a fim de financiar projetos que beneficiem comunidades e pequenos produtores parceiros.
“Atuamos muito próximo aos fornecedores porque a logística, a informalidade e valorização dos ingredientes dentro do próprio Brasil ainda são questões sérias. Falta capacitação, financiamento, facilidade para o transporte dos produtos”, desabafa Ana.
“O custo de ingredientes no restaurante francês do meu ex-marido em São Paulo era muito mais baixo do que o meu, no Brasil a Gosto. E isso não mudou muito”, lembra ela.
Com foco tanto no público final quanto nos grandes players, o empreendimento atuará em três frentes: e-commerce próprio, com forte campanha online a ser iniciada este mês, empórios gourmet cujas parcerias ainda estão sendo amarradas e a venda direta a chefs de cozinha e restaurantes.
Entre eles Arnaud Donckele, dono de três estrelas no hotel Cheval Blanc Paris, e a brasileira Alessanda Montagne, que comanda os restaurantes Nosso e Dana, além da épicerie Tempero, em Paris, que já começam a receber kits para teste.
Em todos os casos, a promoção sempre virá atrelada a receitas, degustações e a consultoria de uma chef de cozinha para orientar sobre possibilidade e modo de preparo, combinações e peculiaridades.
“Temos um grande trabalho pedagógico a ser feito já que o conhecimento dos ingredientes brasileiros na Europa é praticamente zero”, afirma Ana Luiza, que, para facilitar a tradução cultural, criou receitas como o falafel de feijão manteiguinha, a tortilha de milho crioulo, o tostex de pão de queijo e o smoothie de açaí.
“Criamos mais 70 receitas adaptadas ao mercado europeu para estimular e ensinar o uso”, conta a chef, que no dia a dia da empresa não atuará nessa linha de frente. Ela não descarta, entretanto, a ideia de voltar a ter um restaurante no futuro. “Há um assédio diário, o que me deixa muito feliz, porque significa que fiz um bom trabalho.”
Nesse meio tempo, collabs da nova marca com chefs ou empresas de alimentos podem acontecer, assim como a abertura de uma épicerie do próprio Madame Brésil.