O jornalista Lira Neto tinha entre 18 e 19 anos quando leu Pronominais, de Oswald de Andrade, e o impacto foi imediato. O poema, que celebra o português das ruas e desafia as normas rígidas da gramática, ressoou naquele jovem aspirante a poeta em Fortaleza, no fim dos anos 1970 e início de 1980.

“Fiz parte da chamada ‘geração mimeógrafo’, que escrevia poemas alternativos, à margem do mercado editorial — daí nos autointitulávamos, com orgulho, ‘poetas marginais’”, lembra ele, em entrevista ao NeoFeed. A rebeldia do verso do poeta foi mais do que uma inspiração. “Oswald era uma espécie de pai espiritual para todos nós, que também já amávamos um herdeiro assumido da Antropofagia, Caetano Veloso.”

Escritor, poeta, ensaísta e, acima de tudo, provocador, o paulistano Oswald de Andrade (1890–1954) foi um dos principais articuladores da Semana de Arte Moderna de 1922 — aquela que sacudiu literatura, artes plásticas e música no Brasil e completa 103 anos nesta semana.

Para Oswald, para criar uma cultura nacional autêntica era preciso devorar o país — e o mundo. Em 1928, publicou o Manifesto Antropófago, em que propunha engolir influências europeias e cuspir algo só nosso. “Tupi or not Tupi, that is the question”, escreveu, parodiando Shakespeare.

Sua vida foi tão polifônica quanto sua obra. Entre seus diversos casamentos, os mais conhecidos foram com a pintora Tarsila do Amaral e, depois, com a escritora e militante Pagu. Transitava com a mesma desenvoltura por salões burgueses e assembleias operárias, colecionando desafetos.

Esse homem contraditório é o centro de Oswald de Andrade – Mau Selvagem, nova biografia assinada por Lira Neto e publicada pela Companhia das Letras. O biógrafo, de 61 anos, passou quatro anos mergulhado na vida e na obra do modernista. O resultado: 528 páginas que mostram, sem retoques, o homem por trás do mito.

“O espírito oswaldiano, dionisíaco, quase satânico por vezes, seduzia-me como biógrafo”, diz Lira, autor de Getúlio Vargas, Padre Cícero, Maísa e José de Alencar. Sua maior dificuldade ao escrever sobre a vida do poeta foi “controlar minha paixão pelo biografado”. “Oswald era um homem insuportável e, mesmo assim, fascinante”, define.

Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista de Lira Neto para o NeoFeed.

Você releu as obras de Oswald em Portugal, durante seu doutorado, entre 2018 e 2022. Na época, o que estava pesquisando e o que o fez voltar à obra do escritor?
Na Universidade de Coimbra, cheguei a pensar em realizar um estudo comparativo entre o Estado Novo de Antonio Salazar, em Portugal, e o Estado Novo de Getúlio Vargas, no Brasil. Mas, em algum momento, caiu-me de novo às mãos o livro Pau-Brasil, de Oswald. No doutorado, trocávamos muitas ideias, entre professores e alunos, a respeito do pensamento decolonial — ou pós-colonial, conforme queiram. Deu-me o tal estalo. Oswald de Andrade já era, desde sempre, um crítico do colonialismo e do patriarcado, denunciando a violência do processo colonial e pregando a libertação da epistemologia eurocêntrica.

Quais materiais inéditos você teve acesso para escrever esta biografia?
Tive a sorte de poder mergulhar no acervo de Oswald, que está sob a guarda do Centro de Documentação Alexandre Eulálio (CEDAE), na Unicamp. São mais de quatro mil documentos, um universo de informações. Também recorri a jornais e revistas de época, em busca de episódios perdidos no tempo. Mas, a experiência com a escrita biográfica me ensinou, depois de tantos anos dedicados ao ofício, que muito mais importante do que o ineditismo — essa obsessão jornalística pelo furo — é lançar um olhar inaugural e criativo sobre uma documentação já conhecida e revisitada. A partir das mesmas fontes, estabelecer novas perguntas, sugerir ângulos inusitados, pontos de vista menos óbvios.

"O título foi inspirado pelo próprio Oswald, que abominava a imagem conformista e colonizada do 'bom selvagem' de Rousseau", diz Lira Neto (Foto: Companhia das Letras)

Com 528 páginas, o livro custa R$ 129,90 (Foto: Companhia das Letras)

Você poderia contar um pouco sobre a escolha do título "mau selvagem"?
O título foi inspirado pelo próprio Oswald, que abominava a imagem conformista e colonizada do “bom selvagem” de Rousseau. Em contraposição ao indigenismo ingênuo de José de Alencar e Gonçalves Dias, ele nos oferecia a ideia do mau selvagem, do devorador de gente, do antropófago como metáfora de um novo processo civilizatório. Não se tratava de exaltar o mero canibalismo, o ato de comer carne humana. Na metáfora oswaldiana, o antropófago não se alimentava do inimigo para saciar a fome ou por mera vingança. Na verdade, estabelecia-se um ritual de conexão simbólica entre o devorador e o devorado.

Hoje, vemos governos como o de Donald Trump, com o slogan “Make America Great Again”, e o crescimento de movimentos ultranacionalistas. Como Oswald poderia nos ensinar a valorizar a produção cultural brasileira sem cair em um ufanismo semelhante?
A antropofagia oswaldiana rejeitava qualquer tipo de ufanismo, de patriotismo ingênuo, de verdeamarelismo tacanho. A lógica antropofágica era exatamente o oposto ao nacionalismo oportunista e reacionário. Oswald é cada vez mais necessário hoje. Bastaria, talvez, lermos o Manifesto Antropófago. Melhor ainda lermos seus textos de combate, publicados na imprensa ao longo de toda a sua vida. E, especialmente, lermos sua tese, A crise da filosofia messiânica, que apresentou para concorrer à cadeira de filosofia na USP. Nela, denuncia os manipuladores, os aproveitadores, os “Messias” de toda espécie.

Seu livro reafirma o traço irreverente de Oswald, alguém que preferia perder o amigo a perder a piada. Mas você mostra que, na infância, ele sofreu bullying na escola. De alguma forma, você acredita que essa postura de “mau selvagem” foi uma forma de sobrevivência e de se destacar no meio?
Oswald dizia que o artista, o louco e a criança têm algo em comum, um certo desajuste diante das convenções do mundo. Quando criança, ele encarnou o estereótipo do gordinho engraçado como mecanismo de defesa para rebater o assédio moral que sofria dos demais garotos. Mas penso que jamais deixou de ser um homem que fez da ironia e do escárnio uma arma contra as incompreensões sociais — por mais que seu indomável sarcasmo também tenha produzido injustiças contra muita gente, incluindo mulheres e amigos.

Aliás, embora Oswald traísse as mulheres com quem se relacionava e se mostrasse ciumento às vezes, ele também incentivava e ajudava suas carreiras profissionais, chegando a defender o matriarcado em alguns textos.
Essa é apenas uma das muitas contradições de Oswald. Um machista ciumento que pregava a utopia do matriarcado, um agnóstico que fazia promessas para Nossa Senhora de Aparecida, um lírico que escrevia as mais deliciosas indecências.

Oswald usava os meios de comunicação e sua influência na imprensa para expor suas opiniões e provocar polêmica. Na era das redes sociais, ele seria um heavy user dessas plataformas e, consequentemente, cancelado?
Oswald foi cancelado já à época, mesmo que ainda não existisse o conceito atual de cancelamento. Por causa de suas escolhas e atitudes, foi execrado, julgado e condenado pela dita intelectualidade, perseguido e massacrado pelos pretensos arautos da virtude. Morreu esquecido, pobre, doente, no mais completo ostracismo. Com seu humor corrosivo e seu extraordinário poder de síntese, talvez viesse a escrever, hoje, posts imbatíveis. Mas, talvez, também, não escapasse da polícia de costumes, dos fiscais da imperfeição alheia, das tretas incentivadas pelas belas almas, das retaliações incitadas pelos paladinos da moral punitiva, dos ressentidos à esquerda e à direita.