À primeira vista, a certeza do executivo americano Peter Majeranowski pode soar como delírio de um otimista: “Já temos todas as roupas de que precisamos para fazer todas as roupas de que precisaremos”.
Ele, no entanto, não fala a esmo. E, sim, com a experiência de quase 14 anos como CEO da Circ, a empresa cujo objetivo é levar a indústria da moda a uma economia verdadeiramente circular.
Fundada em 2016, em Danville, na Virgínia, a fashiontech é a criadora do Circ Lyocell, um fio composto metade por polpa celulósica de resíduos têxteis reciclados e metade por polpa celulósica certificada pelo FSC – sigla em inglês para Conselho de Manejo Florestal, selo verde dos mais respeitados do mundo.
Única no ecossistema de inovação da moda, a tecnologia da startup está perto de resolver um dos maiores desafios do setor têxtil rumo à sustentabilidade. Quando confeccionadas com o Circ Lyocell, as roupas podem ser reaproveitadas uma vez, mais outra, de novo... e assim repetidamente. Em teoria, a empresa de Danville inventou o tecido que pode ser reaproveitado ad aeternum.
Cerca de 50% de toda a fibra utilizada pela indústria é o polialgodão, feito à base da mistura de poliéster e algodão. Sempre foi muito difícil separar os dois materiais. Globalmente, esse entrave condena, todos os anos, 46 milhões de toneladas de resíduos aos aterros sanitários.
Uma prova inconteste do sucesso da invenção da fashiontech é a chegada recente do têxtil ao universo da alta costura. Reconhecida por seu compromisso com o planeta, a estilista Mara Hoffman, de Nova York, usou o tecido para criar um vestido cor de laranja, com corpete franzido e decote enfeitado com uma roseta do mesmo material. O nome? “The Dress That Changes Everything”. Ou, “O Vestido Que Muda Tudo”.
Objeto de desejo
A peça tem tudo para se transformar em objeto de desejo dos fashionistas. Pela primeira vez, uma grife de alta costura usa o Circ Lyocell – e isso significa muita coisa. As marcas tradicionais de luxo sempre se mostraram reticentes às inovações tecnológicas.
Mas, um grupo de designers, liderado pela inglesa Stella McCartney, nos últimos anos, vem mostrando que a moda do futuro é a moda circular, ética e transparente. E o “The Dress” é o modelo mais recente a desfilar pela passarela da sustentabilidade.
Para aumentar ainda mais a cobiça, foram cortados apenas 35 exemplares do vestido cor de laranja. E as peças só são vendidas no ateliê de Mara, no Soho, a US$ 1.195, cada um.
Na etiqueta, um código QR informa: “Esperamos que esse vestido seja apreciado por muitos anos. No final de sua vida útil, porém, nós encorajamos seu dono a devolvê-los para que a peça possa ser reciclada de novo”. A ideia é enviar o “The Dress” para a Circ, de modo a que seja novamente transformado em tecido.
É a circularidade elevada a um patamar jamais visto na história da moda. Um setor onde o modelo “make-use-return” (faça, use e retorne, em uma tradução livre) se faz urgente, em contraponto ao “take-make-waste” (pegue, use e desperdice, em uma tradução livre). Atualmente, não só compramos 60% mais roupa do que há 20 anos, como nos livramos delas mais rapidamente. De cada dez peças, seis são descartadas com menos de um ano de uso. E apenas 1% é reutilizada.
No início do ano, a Circ já havia estabelecido uma parceria com a marca de fast fashion Zara. A colaboração marcou a chegada do novo têxtil ao mercado. Para a ocasião, foram confeccionados um short, uma blusa e uma calça femininos.
Na época, o grupo Inditex, dono da marca espanhola, participou de uma rodada de financiamento série B de US$ 30 milhões, ao lado da Breakthrough Energy Ventures, de Bill Gates, e da fabricante têxtil Milliken & Co. No total, a empresa de Danville já levantou quase US$ 80 milhões, conforme relatório da plataforma Crunchbase.
O entusiasmo dos estilistas e capitalistas não é à toa. A Circ tornou ainda mais sustentável o mais sustentável dos têxteis. Criado nos anos 1980, pela companhia inglesa Courtaulds, depois de 16 anos de pesquisa e quase meio bilhão de dólares em investimentos, o liocel é produzido a partir da polpa de madeira.
O desafio do alto custo de produção
Com uma textura suave ao toque, o fio é tenaz e flexível, ao mesmo tempo, e 100% biodegradável e compostável. Outros nomes para as fibras liocel são Tencel, da austríaca Lenzing, e Excel, da indiana Birla.
Apesar de sua qualidade e versatilidade, o liocel ainda não é usado em larga escala porque sua produção ainda é cara. Um metro custa quase R$ 400, enquanto a mesma quantidade de algodão sai por R$ 30 e a de poliéster, por R$ 11, em média.
A boa notícia: os inovadores do ecossistema fashion estão empenhados em tirar a indústria da moda do posto de segunda mais poluente do planeta, atrás apenas da petrolífera. O trabalho conjunto entre a Circ e a Zara e, agora, a Mara Hoffman acena com a promessa de um futuro mais limpo.
Aliás, como se lê em comunicado assinado por Majeranowski e pela estilista nova-iorquina, essa é apenas a primeira colaboração entre a startup e a grife de Nova York.