A Hapvida atravessa um período conturbado. Desde o início de 2022, quando sua fusão com a NotreDame Intermédica foi aprovada, o caminho da operadora de planos de saúde tem sido tortuoso. De uma mudança inesperada na gestão até balanços decepcionantes, não foram poucos os percalços seguidos por perdas substanciais em seu valor de mercado.

O capítulo mais recente aconteceu em 18 de janeiro, com a notícia de que o grupo de planos de saúde está na mira do Ministério Público (MP) de São Paulo por descumprir sistematicamente decisões judiciais favoráveis aos seus beneficiários. Naquele dia, as ações encerraram o pregão com um recuo de 6,9% e a empresa perdeu R$ 2,2 bilhões em valor de mercado.

Essa queda - a maior do ano na bolsa de valores - só fica atrás da perda de quase R$ 7 bilhões em 9 de março do ano passado, quando a Hapvida comunicou ao mercado sobre a necessidade de um aumento de capital, informa Einar Rivero, CEO da Elos Ayta Consultoria.

O caso do MP somado a todos os outros fatores colocou a empresa novamente em xeque e reforçou algumas interrogações sobre o futuro da Hapvida. Para entender para onde vai a companhia que conta com quase 16 milhões de beneficiários de seus planos de saúde e odontológico, cerca de um quinto de participação no mercado de planos de saúde, o NeoFeed ouviu analistas, gestores de fundos e especialistas a respeito das perspectivas da companhia.

O que chama a atenção são as discordâncias sobre a empresa. E elas têm início justamente no ponto de partida para essas conversas: os possíveis impactos do episódio mais recente envolvendo o MP.

“Projetar no longo prazo ainda é difícil, pois não sabemos claramente a magnitude desse caso e o que já está provisionado”, afirma Caritsa Moreira, analista da casa de análise VG Research. “Mas, a priori, há muito potencial de destruição de valor no curto e médio prazo.”

Dois gestores, que estão entre as seis maiores posições vendidas na empresa, vão na mesma linha. “Na Faria Lima, tem mais gente que acredita que vai piorar antes de melhorar, do que o contrário”, diz ao NeoFeed um desses gestores. O segundo gestor complementa: “Há dois anos a empresa vem se fragilizando”.

Na direção oposta, os analistas Joseph Giordano e Estela Strano, do J.P. Morgan, escreveram em relatório que os investidores precisam aprender a navegar no “ambiente volátil dada a potencial persistência dos ruídos em torno das investigações”.

Um gestor comprado no papel vai além. Ele afirma que a bolsa brasileira tem vivido apenas do fluxo dos investidores locais e muitos aproveitam para ganhar “com as manchetes”.

“Quem é gestor ‘long only’ é mais experiente, tem trânsito na empresa e entende os desafios da gestão, por isso pensam diferente. Mas, desde 2021, há um interesse maior no short, o que tem ‘roubado’ o valor dessa e de outras empresas ", diz essa fonte.

Essa gestor argumenta que há desafios imediatos para a Hapvida, seja pelo cenário macroeconômico, seja pelas dificuldades específicas do setor de saúde - como a judicialização que tem sido um tema-chave nessa indústria -, mas que a proposta de um plano de saúde, com preço mais adequado à realidade brasileira, é uma tese que para de pé.

“Houve uma integração complexa, mas a Hapvida perdeu a sua essência ao deixar de ser agressiva comercialmente e precificou mal as novas vidas”.

Para a XP, em relatório distribuído em 21 de janeiro, a recomendação para Hapvida continua sendo de compra, com preço-alvo para a ação de R$ 5,70. O Citi projeta R$ 6 para o papel e o J.P. Morgan, R$ 6,5. Isso significa uma valorização entre 44% e 64% sobre o preço atual de tela.

“É claro que a investigação do MP pode trazer consequências financeiras diretas e indiretas, mas ainda é muito cedo para conseguir precificar isso”, afirma Fernando Henrique Magalhães, analista da casa Levante. “E o mercado tende a agir como se já soubesse as respostas.”

Um passo atrás

O cenário (a princípio) desfavorável para a Hapvida não se resume às eventuais implicações da investigação. Os riscos à frente para o papel são embalados por outros componentes, que, por sua vez, estão sendo amplificados pela crise no setor de saúde.

“Estamos falando de uma ação mais arriscada e de uma empresa com problemas operacionais e setoriais. Há uma série de fatores que, somados, só agravam a crise de confiança sobre a operação”, diz Moreira, da VG Research.

Um dos elementos que pesam nessa equação – e que não é exclusivo da empresa – é a sinistralidade caixa da operação, o principal indicador no setor e que vem desafiando todos os players. Ele mostra a diferença entre o custo para acionar o plano e o valor que a operadora recebe.

No terceiro trimestre de 2023, a Hapvida reportou um índice de 71,9% nessa linha. Apesar de um avanço de dois pontos percentuais sobre o segundo trimestre de 2023 e de 1,1 ponto percentual sobre igual período em 2022, o número ainda é elevado e segue como um dos sinais de alerta no balanço do grupo.

A sinistralidade média das operadoras médico-hospitalares, segundo a Agência Nacional de Saúde, é de 88,2%. A Hapvida está melhor que o mercado, mas a principal dúvida à mesa é se os episódios mais recentes envolvendo o MP mexeriam com esse indicador e mostrariam um equilíbrio menor da empresa entre o prêmio e o sinistro.

Para reduzir esses índices, um dos principais passos dados veio em abril do ano passado, em um follow on que rendeu uma captação de R$ 1 bilhão. A oferta contou, porém, com um pacote de “resgate” da família Pinheiro, fundadora e controladora da Hapvida, que injetou R$ 360 milhões na operação.

Com o foco totalmente direcionado em recuperar suas margens e rentabilidade, a companhia também passou a investir em outras medidas, como os reajustes dos planos. Entre julho e setembro do ano passado, por exemplo, o tíquete médio mensal cresceu 11,8% em base anual, para R$ 251,80.

A Hapvida vem pagando, no entanto, um preço por essa abordagem. Embora tenha mostrado uma desaceleração, a base de beneficiários dos planos da empresa seguiu em queda no terceiro trimestre de 2023, com um recuo de 0,4% na mesma base de comparação, para 15,8 milhões de beneficiários.

Além da já esperada complexidade, ainda mais em uma operação dessa dimensão, a integração com a NotreDame Intermédica tem sido alvo de outros questionamentos por parte do mercado, em particular, sobre a velocidade e as sinergias capturadas nesse processo.

Essas cobranças ganham ainda mais força a partir do potencial destacado já no anúncio da fusão, em fevereiro de 2021. Na época, a operação trazia, entre outros números, um valor de mercado combinado de mais de R$ 110 bilhões. Hoje, a companhia está avaliada em R$ 29,7 bilhões.

Uma das questões que colocaram essa união sob os holofotes veio à tona no fim de 2022, quando a Hapvida anunciou que Irlau Machado Filho estava deixando o conselho de administração e o posto de co-CEO, função que dividia com Jorge Pinheiro e que passou a exercer justamente na integração.

“Mesmo com esse movimento, a empresa sempre teve um dono claro, que é um acionista de longo prazo e continua comprometido com o futuro e a eficiência do negócio”, afirma um dos gestores comprados na ação.

Mas o movimento inesperado não foi bem recebido e se traduziu em uma queda significativa nas ações. Duas semanas depois, na tentativa de acalmar os ânimos, a Hapvida recuou e informou que o executivo seguiria no board até 2024 e passaria a integrar outros comitês da companhia.

Os resultados do quarto trimestre de 2023 estão previstos para serem divulgados no próximo dia 27 de março. Os dados da Elos Ayta Consultoria mostram que de janeiro a setembro do ano passado a Hapvida registrava tanto uma margem líquida negativa de -3,81% como um ROE de -2,09%. A companhia encerrou 2022 com esses mesmos indicadores em -3,27% e -2,62%, respectivamente.

Nos nove primeiros meses de 2023, a Hapvida registrou um prejuízo de R$ 709 milhões, um valor próximo do prejuízo de R$ 779 milhões de todo o ano de 2022. A dívida líquida no último balanço era de R$ 5,48 bilhões.

“Talvez o mercado tenha criado uma expectativa muito grande em relação a essa operação”, afirma Moreira, da VG Research. “O fato é que a empresa não tem entregado o que era esperado e, até aqui, o saldo é muito mais negativo do que positivo.”

Até quarta-feira, 24 de janeiro, a ação da Hapvida estava em queda de 11% no ano na bolsa de valores. Em 12 meses, o papel acumula baixa de 11,6%.

Procurada, a Hapvida não se manifestou até o fechamento desta reportagem.