Na quinta-feira, 21 de março, o governador Eduardo Leite (PSDB) mudou a sede do governo do Rio Grande do Sul do Palácio Piratini para o Cais Mauá, às margens do Rio Guaíba, em Porto Alegre.

Desde cedo, depois de uma noite com chuvas e ventos fortes, o governador passou o dia no South Summit Brazil, um dos principais eventos de inovação do Brasil, no qual o Estado do Rio Grande do Sul (RS) é um dos correalizadores e cuja terceira edição acaba na sexta-feira, 22 de março.

Leite não estava lá apenas para acompanhar o evento como espectador. Ele também foi um dos palestrantes, falando das iniciativas digitais de seu governo. E, ao longo do dia, usou o RS Innovation Stage como “gabinete” para despachar e fazer reuniões.

Foi ali que Leite recebeu o NeoFeed para uma entrevista, em que explicou as estratégias de inovação do Rio Grande do Sul e falou sobre os seus planos de atrair investimentos de empresas de semicondutores para o Estado, algo que está por trás da nova Guerra Fria entre Estados Unidos e China.

“Dentro dessa geopolítica, entendemos que um olhar para a fabricação de chips para a América Latina já começa a acontecer. E queremos que o Rio Grande do Sul seja foco disso”, afirmou Leite, ao NeoFeed.

Não se trata de algo que vai gerar frutos da noite para o dia - mas é preciso dar o pontapé inicial. A base da estratégia de Leite não é só negociar com empresas que queiram se instalar no Estado, como também criar as condições para o desenvolvimento de capital humano especializado nessa área.

“Disponibilizamos R$ 70 milhões (até 2026) do nosso orçamento para fazer através de editais formação de professores e de capital humano”, diz Leite. “Mas já temos algumas empresas de médio porte na área de semicondutores. Uma delas é a HT Micron, uma sul-coreana que já fabrica chips no Estado.”

Semicondutores são uma área que se tornou essencial, ganhou relevância geopolítica e se transformou na sensação do setor de tecnologia. A americana Nvidia, por exemplo, hoje vale US$ 2,3 trilhões e atrás apenas de Microsoft e Apple nas bolsas americanas por conta da inteligência artificial.

E, nesta semana, a Intel, famosa parceira da Microsoft por sua dobradinha com o Windows, anunciou um investimento de US$ 100 bilhões nos Estados Unidos para construir e expandir suas fábricas de chips, em um sinal de que o Ocidente quer reduzir a dependência desse insumo da China.

Nesta entrevista, que você lê a seguir, Leite fala sobre as iniciativas de inovação do Rio Grande do Sul e aborda o que vem fazendo para incentivar investidores, empreendedores e empresas. Ele também faz uma avaliação sobre a economia brasileira.

“Se olhar os indicadores, eles sugerem melhorias nesses últimos períodos. Mas o que gera receio é sobre a estratégia de desenvolvimento econômico do governo, que aposta em fórmulas que, no passado, não se revelaram sustentáveis", afirmou o governador do RS.

Confira os principais trechos da entrevista:

Por que o governo do Rio Grande do Sul é um dos correalizadores do South Summit?
No meu mandato passado, observávamos já essa vocação para inovação e tecnologia. O Estado tem a melhor universidade federal do Brasil e a melhor universidade privada do País, de acordo com rankings nacionais, como do MEC e da Folha de S. Paulo. Temos os dois melhores parques tecnológicos do País: o TecnoPUC e o TecnoSinos. Temos também formação de pós-doutores e números de patentes. Enfim, temos uma série de indicadores que mostram o Estado vocacionado para formação em tecnologia. O Zé Renato [José Renato Hopf, idealizador do South Summit Brazil em Porto Alegre] foi responsável pelo primeiro unicórnio brasileiro: a Getnet. Temos também o laboratório de inovação da SAP em São Leopoldo. E a Dell, entre outras tantas empresas de tecnologia, está aqui. Esse é um vetor melhor a ser trabalhado pelo Estado para o desenvolvimento. O Estado não vai ser inovador por causa de um evento. Mas isso está presente na cultura do Estado.

O que o Estado do Rio Grande do Sul tem feito nessa área de inovação?
No ano passado, tivemos o maior orçamento dedicado a inovação a partir de diversos editais e programas que criamos nos oito ecossistemas que temos mapeados. São vários programas, como o Inova RS.

Quanto foi investido?
Foram R$ 140 milhões do orçamento do Estado para inovação. Foram diversos editais, onde o Estado ajuda a custear parte do risco da inovação, porque nem todas as empresas têm tamanho e fôlego para suportar o risco de inovar.

"Você não cria empregos por decreto, nem amarra alguém para investir. Precisa criar ambiente que seja interessante para isso"

Que iniciativas você tem tomado para atrair mais investidores ao Rio Grande do Sul?
Sempre digo: trazer empreendedores não é pegar pela mão e obrigar a investir aqui. Digo isso porque desde que fui prefeito sou cobrado sobre isso: “tem de trazer empresas, tem de trazer empreendedores, tem de trazer investimentos”. Você não cria empregos por decreto, nem amarra alguém para investir. Precisa criar ambiente que seja interessante para isso. E quando pensamos em tecnologia e inovação, ele vai ser interessante à medida que tiver capital humano de excelência que atenda às necessidades que as empresas de inovação demandam. O principal ponto é ter gente. E como temos gente? Formação, por um lado, de pessoas. E tem de trabalhar desde a educação de base para reter as pessoas aqui. O que retém as pessoas aqui é qualidade de vida. Aí entra uma série de ações que o Estado tem empreendido de melhorar a qualidade de vida e a segurança pública. São investimentos fortes para que o Estado tenha os melhores indicadores de segurança.

O que mais?
Estamos trabalhando muito para qualificar a cidade. Em Porto Alegre, por exemplo, esse cais aqui [o Cais Mauá, onde é realizado o South Summit] acaba de ser concedido para a iniciativa privada. A ideia é transformar todos esses armazéns em uma espécie de Puerto Madero, como em Buenos Aires. Um lugar de inovação, lazer, gastronomia e entretenimento.

Os investimentos de venture capital estão bastante concentrados em São Paulo. E, no South Summit, boa parte dos investidores vêm até Porto Alegre. Como fazer esses investidores olharem para os empreendedores daqui?
Se a gente tiver o melhor capital humano e conseguir reter essas pessoas aqui, você alimenta essas iniciativas. Com um adicional: custo de vida menor. E com um menor custo para os investimentos. O nível salarial que você precisará oferecer para aqueles que desenvolvem novos sistemas, softwares, em São Paulo é um. Em Porto Alegre, é outro. É claro que as pessoas seguem o dinheiro. Mas também o dinheiro vai ter de seguir as pessoas que tenham talento. E se conseguir ter as pessoas aqui, uma coisa puxa a outra.

Não está nos planos dar incentivos para atrair essas empresas e esses talentos?
Sim, mas temos uma limitação. Até gostaria de fazer mais. Inclusive para atrair vizinhos insatisfeitos com as condições em seus países ou em zonas de conflito no mundo em que pessoas com talento estão tendo de deixar os seus países. O Brasil deveria ter políticas de atração desses talentos com boa formação, que poderiam ajudar a nossa economia a ser mais desenvolvida.

"O Brasil deveria ter políticas de atração desses talentos com boa formação, que poderiam ajudar a nossa economia a ser mais desenvolvida"

Quais incentivos são oferecidos?
Temos, por exemplo, o programa Doutor Empreendedor. Ele é para doutores formados que tenham trabalhos que sejam capazes de gerar PIB. O Estado tem políticas de bolsas para esses doutores.

E incentivos fiscais?
Existe em alguma medida. Mas equalizando o que outros Estados fazem também. No setor de tecnologia, a maior parte dos custos tributários são de impostos sobre serviços, que é municipal. A prefeitura de Porto Alegre tem tido ações nessa direção e boa parte das cidades gaúchas também tem. O imposto que o Estado pode oferecer, que é o ICMS, é menos relevante, mas temos ações nessa direção, como o programa de incentivo a investimentos que alivia o imposto por todo ICMS que vai ser incrementado.

Qual a vocação do Rio Grande do Sul na área de tecnologia?
Temos oito ecossistemas. Cada um deles olha sua vocação. Mas algumas áreas são especialmente relevantes. Uma delas é healthtechs. Temos hospitais que estão entre os melhores do Brasil. O Moinhos de Vento, de Porto Alegre, está em um nível de excelência semelhante a Einstein e Sírio Libanês. A Santa Casa de Porto Alegre é referência em transplante de órgãos. E, claro, agro e tech também. Por conta de toda agricultura de precisão, essa é uma grande oportunidade.

Algo mais?
Sim. Tem uma terceira frente. Criamos um programa de semicondutores, onde estamos alinhando incentivos e recursos do orçamento para formação de mão de obra para criar um ambiente favorável para a instalação de grandes empresas para produção de semicondutores.

Por quê?
Estamos observando dentro da geopolítica mundial a necessidade de grandes empresas ocidentais de deixarem de depender da produção de semicondutores a partir da Ásia. Dentro dessa geopolítica, entendemos que um olhar para a fabricação de chips para a América Latina já começa a acontecer. E queremos que o Rio Grande do Sul seja foco disso.

"Entendemos que um olhar para a fabricação de chips para a América Latina já começa a acontecer. E queremos que o Rio Grande do Sul seja foco disso"

Hoje, muitos analistas dizem que a nova guerra fria é na área de chips. O que está sendo feito especificamente nessa área?
Disponibilizamos R$ 70 milhões (até 2026) do nosso orçamento para fazer através de editais formação de professores e de capital humano. Mas já temos algumas empresas de médio porte na área de semicondutores. Uma delas é a HT Micron, uma sul-coreana que já fabrica chips no Estado. E isso vem também de investimentos públicos feitos pelo governo federal, como a Ceitec. Pode ser questionável a aplicação de recursos públicos para uma empresa produtora de microchips, mas ela deixou um legado de formação de capital humano para essa área. E criou um ambiente favorável de empresas aqui. O que o Estado está tentando fazer? Incentivar e alavancar com bolsas, incentivando pesquisas e desenvolvimento de capital humano.

A produção de chips e a inteligência artificial devem ter um impacto enorme na sociedade, inclusive na questão dos empregos?
Já está tendo e vai ser cada vez maior o impacto. É muito difícil sustentar o desenvolvimento econômico com o nível de protecionismo que o Brasil tem. O Brasil ganharia a possibilidade de ter uma atração de desenvolvimento econômico mais consistente, mais forte e mais permanente se nos abríssemos economicamente. Mesmo que isso produza dificuldades em determinados setores, mas que modernize a nossa economia e nos coloque em uma escala global em condições de interagir com as economias que estarão anos-luz à frente por conta dessa associação à inteligência artificial e a essas novas ferramentas tecnológicas. Se quisermos só proteger a produção nacional, vamos ficar atrasados em relação a outras economias e consequentemente menos interessantes para os investimentos mais arrojados que essa nova economia vai exigir. Especialmente se observamos que o próprio Ocidente, que apostou muito na Ásia, começa a olhar a necessidade de realocar esses investimentos. E aí o México sai na frente porque consegue ter mais abertura para esses investimentos do que o Brasil.

A pandemia mostrou que é um risco centralizar tudo na China. A lógica hoje não é trazer as cadeias de suprimentos mais próximas dos locais de consumo?
É o que estamos observando como tendência. E se o Brasil não se posicionar como um lugar que acolha esses investimentos, com a possiblidade justamente de estar mais integrado a uma cadeia global, ele vai perder espaço. O que estou vendo nesse momento é o México ser o destino de investimentos que poderiam estar vindo para o Brasil.

"Se quisermos só proteger a produção nacional, vamos ficar atrasados em relação a outras economias e consequentemente menos interessantes para os investimentos mais arrojados que essa nova economia vai exigir"

Como você está avaliando a economia brasileira?
Se olhar os indicadores, eles sugerem melhorias nesses últimos períodos. Mas o que gera receio é sobre a estratégia de desenvolvimento econômico do governo, que aposta em fórmulas que no passado não se revelaram sustentáveis.

Por exemplo?
Essas políticas de industrialização altamente dependente de crédito subsidiado pelo governo. E com incentivos tributários e gasto público que não foram sustentáveis em outro período e geraram, em 2015 e 2016, a mais profunda recessão que o País já viu. No curto prazo, isso promete dar uma sensação de bem-estar. Mas é difícil apostar que isso é sustentável no médio e longo prazo. Não sendo sustentável, gera eventualmente um grau de dependência que, aí na frente, o País quebra tentando manter ou frustra as expectativas quando tiver de cortar os incentivos por não ter mais capacidade de sustentar. Mas é um modelo econômico que preponderou no debate político recente.

E qual é a sua avaliação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad?
Vejo o ministro da Fazenda com muita boa vontade de buscar o equilíbrio fiscal.

Mas a estratégia é aumentar a arrecadação e não cortar custos.
Pois é. Esse aumento da arrecadação, na forma que é buscada, acaba gerando também dificuldades de desenvolvimento. O Brasil precisava assistir a uma reforma administrativa que gerasse menores custos da máquina pública para ter uma melhor conciliação entre o custo ao contribuinte e o custo que a máquina pública tem. O modelo econômico que prepondera sob a visão do Partido dos Trabalhadores acaba sendo um modelo antigo de incentivos para uma economia defasada, para setores menos modernos da economia e ainda é questionável sobre os resultados que se poderá produzir.