Quando um profissional do mercado financeiro fala em “rali”, imagina-se logo que esteja se referindo a uma sequência de altas no Ibovespa, o principal índice de ações da B3. Se a Bolsa experimenta um rali, como se diz, os investidores abrem o sorriso e soltam fogos.
Mas, para a Kinea Investimentos, casa de gestão de fundos ligada ao grupo Itaú, o termo também pode ser associado a turbulências, se a inspiração para o uso da expressão for uma prova de resistência para veículos off-road.
No Rali Dakar, prova mais longa do mundo, o trajeto a ser percorrido pelos carros envolve dunas, lamas, rochas e mudanças de vento. É para quem está disposto a enfrentar adversidades.
“Enxergamos o cenário para o mercado de ações no Brasil para os próximos trimestres de maneira parecida”, afirma a gestora, em uma carta a clientes, obtida com exclusividade pelo NeoFeed.
Embora as previsões do mercado para o PIB brasileiro apontem para uma expansão superior a 5% em 2021, em meio à reabertura da economia e ao avanço da vacinação, a Kinea alerta para outra combinação nada agradável: o crescimento será fraco em 2022, os juros estão subindo, o risco fiscal está aumentando e as incertezas eleitorais começam a dominar a pauta.
“O custo de oportunidade está alto para os investimentos em bolsa”, diz a gestora, que tem R$ 57,2 bilhões de ativos sob gestão.
Preocupada com um caminho cheio de obstáculos até o ano que vem, a Kinea selecionou três empresas listadas na B3, das 150 que acompanham, como opções mais seguras de investimento: a seguradora Porto Seguro, a rede de atacarejo Assaí e a operadora de saúde Hapvida.
“São empresas que dependem menos do andamento macroeconômico do país”, disse, ao NeoFeed, o gestor Marcus Zanetti, que administra um portfólio com 16 companhias, das quais cinco concentram cerca de 40% da carteira. As três escolhidas, claro, estão entre as preferidas.
Para chegar até elas, a Kinea procurou companhias que considera bem geridas, que estão em setores favoráveis e que contam com perspectivas de crescimento. “Ou porque estão ganhando participação de mercado ou porque o negócio é de consolidação (para aquisições), pois, em um cenário difícil, há outras mais pré-dispostas para serem vendidas”, afirmou Zanetti.
Porto Seguro
No caso da Porto Seguro, o aumento da taxa Selic contou a favor. Se a alta dos juros eleva a dívida das empresas em geral, a seguradora se beneficia por investir o que recebe dos segurados em renda fixa. “Juro maior representa aumento de receita”, ressalta Zanetti. A taxa de juros básica da economia subiu de 2% para 5,25% nos últimos meses e deve terminar o ano a 7,5%, segundo a mediana das projeções do boletim Focus, do Banco Central (BC).
A companhia, avaliada em R$ 17,8 bilhões, teve receita de R$ 4,9 bilhões no segundo trimestre, aumento de 17% em relação a igual período do ano passado. O lucro líquido, por sua vez, ficou praticamente estável, a R$ 658 milhões, contra R$ 656 milhões no segundo trimestre de 2020.
Zanetti argumenta também que a empresa é líder em seguro para veículos, com 28% de participação, e demonstra resiliência no segmento, uma vez que a produção de veículos foi prejudicada pela pandemia, em razão da escassez de semicondutores, e já havia sofrido com a recessão de 2015 e 2016.
“Houve uma queda brutal da produção de automóveis nos últimos sete a oito anos e a Porto Seguro é a empresa que ainda consegue se dar bem nesse mercado”, disse o gestor. A indústria automobilística atingiu o recorde de produção em 2013, quando 3,74 milhões de unidades foram produzidas. Em 2019, antes da pandemia, o volume já havia caído para 2,9 milhões. Para 2021, a previsão do setor é recuar novamente, para 2,45 milhões.
Além disso, destaca o gestor, a Porto Seguro tem apostado em outros negócios, como saúde, serviços e outros produtos financeiros, como cartão, financiamento, consórcio e fiança para locação.
"Acreditamos que o mercado ainda enxerga a Porto Seguro como uma empresa tradicional de seguro auto e ainda não incorpora seu potencial de crescimento nas demais verticais de negócios", diz a Kinea, na carta.
No ano, o papel acumula alta de 17,79%, negociada a R$ 56,28, por volta das 12h30. A gestora não revela a sua estimativa de preço-alvo para as companhias, mas vê a Porto Seguro sendo negociada a 10,6 vezes o múltiplo do preço sobre o lucro por ação, em 2022.
Assaí
Embora uma companhia de atacarejo esteja intimamente ligada às variáveis macroeconômicas, a Kinea enxerga no Assaí algumas características que servem de escudo. A primeira é que o negócio tem facilidade para repassar o avanço da inflação aos preços dos produtos. Em 12 meses, o IPCA chega a 8,99%, mais que o dobro do centro da meta do Banco Central (BC) para 2021, de 3,75%.
“E, com essa inflação, passa a ser mais importante para o consumidor final pagar um preço menor, o que faz com que ele se sinta mais disposto a comprar em um atacarejo, comprando mais e pagando menos”, diz Zanetti.
Com isso, o Assaí deve ganhar mercado em relação a supermercados e hipermercados, prevê o gestor. Hoje, a participação do Assai está em 7% do total do varejo alimentício. “O modelo de atacarejo tem como característica operar com um custo operacional baixo frente aos formatos rivais como hipermercados e supermercados”, afirma a Kinea, na carta.
O modelo conta com lojas autônomas, que não precisam de centros de distribuição para abastecer os estoques. No Assaí, cerca de 30% da operação, em especial a primeira geração de lojas, têm menos de 4 mil metros quadrados e necessitam do suporte de CDs.
A rede de atacarejo, que vale R$ 22,8 bilhões, registrou lucro líquido de R$ 305 milhões no segundo trimestre, alta de 62% em relação a igual período do ano passado. A receita líquida atingiu R$ 10 bilhões, aumento de 22,2% no mesmo tipo de comparação.
No ano, a empresa acumula valorização de 15,27%, negociada a R$ 16,46, também por volta das 12h30. A previsão da Kinea para 2022 é que o papel seja negociado a 15 vezes o múltiplo de preço sobre lucro por ação.
Hapvida
A Hapvida, a última da trinca de selecionadas da Kinea, é a representante de um setor que está entre os queridinhos do mercado financeiro. Porém, embora a companhia seja uma aposta da gestora, o negócio não vive um bom momento, em razão das pressões causadas pela pandemia.
No começo da crise do covid-19, a rede perdeu oportunidades de receita por causa das pessoas que deixaram de realizar procedimentos médicos que não estavam relacionados à pandemia, para evitar ir aos hospitais.
Depois, entre o fim do ano passado e o início deste ano, o problema se inverteu, com uma lotação causada pelos clientes que não queriam mais adiar seus procedimentos, somada à segunda onda da pandemia. “Isso gerou uma explosão do custo médico”, disse Zanetti.
Não por acaso, os papéis da Hapvida estão caindo. No ano, a ação acumula desvalorização de 3,19%, a R$ 14,55. “Esse momento é só um momento”, afirmou o gestor. A estimativa da Kinea é que a empresa seja negociada a 33 vezes o múltiplo do preço pelo lucro por ação, em 2022. Com a esperada fusão com a Notre Dame Intermédica, com aprovação pendente pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a tendência é que esse número seja revisto para baixo.
Para Zanetti, a Hapvida se beneficia por ser a mais verticalizada das operações de saúde, atuando não só como um provedor de serviços, com hospitais, laboratórios e centros clínicos, mas também como um segurador. Em razão disso, consegue evitar os custos associados a quem não tem essa vantagem.
“As empresas de plano de saúde verticalizadas conseguiram crescer acima da média do mercado com os melhores níveis de rentabilidade e menores preços do setor”, diz a gestora, no documento.
No segundo trimestre, a Hapvida teve lucro líquido de R$ 104,6 milhões, retração de 62,5% em relação a igual período do ano passado. Já a receita líquida cresceu 15,7%, para R$ 2,4 bilhões.
No Rali Dakar, o porcentual máximo de inscritos que concluíram a prova em uma edição foi de 60%.Se as três apostas da Kinea se mostrarão acertadas ou não, só o tempo dirá. A linha de chegada está no calendário: final de 2022, quando o processo eleitoral já estiver acabado e houver maior clareza sobre o plano de governo do candidato vencedor.