Um mundo em que robôs e humanos dividem a convivência está há décadas no imaginário popular e o advento da inteligência artificial só aumentou a expectativa de que essa realidade esteja cada vez mais perto.
Um dos maiores entusiastas da ideia de dar vida à máquina, Marc Raibert avalia que a tecnologia tem impulsionado principalmente a parte cognitiva dos robôs. Faltam, porém, ainda avanços significativos em mecânica e segurança antes que os robôs humanoides passem a ter uma interação maior com humanos.
“Seria otimismo demais esperar que eles sejam muito funcionais em dois ou três anos. Mas, em 10 anos, acho que haverá uma grande revolução. Esses robôs serão muito capazes”, afirma Raibert, em entrevista ao NeoFeed.
“Acreditamos que, em algo como 10 anos, o robô poderá observar um humano fazendo um trabalho e depois realizá-lo. porque ele vai decompor as habilidades e também entender a sequência necessária”, complementa ele, que esteve no Brasil para participar do Safra Artificial Intelligence Investment Day.
Pioneiro da robótica moderna, Raibert construiu sua carreira investigando como animais se movem e como essa dinâmica poderia ser traduzida para máquinas. PhD pelo MIT e ex-professor de Carnegie Mellon e do próprio MIT, ele fundou a Boston Dynamics em 1992 e liderou a empresa por três décadas.
Atualmente, a Boston Dynamics é controlada pela coreana Hyundai, que detém 80% da empresa, enquanto o Softbank detém os 20% restantes. Raibert foi o CEO até o início de 2020, antes de ser substituído por Robert Playter, mas segue acompanhando os desenvolvimentos da companhia como presidente do Conselho de Administração.
Enquanto CEO, Raibert desenvolveu robôs que redefiniram a locomoção robótica - de máquinas capazes de correr, saltar e manter equilíbrio a quadrúpedes projetados para operar em ambientes hostis.
Essa obsessão pela locomoção deu origem ao Spot, o “cachorro robô” criado pela Boston Dynamics, capaz de subir escadas, atravessar terrenos irregulares e operar onde humanos não deveriam estar. Principal produto da empresa, o Spot já foi usado para monitorar níveis de radiação em Chernobyl e começa a ser adotado por forças de segurança e por exércitos em tarefas como desarmar minas terrestres.
Embora o Spot execute uma série de funções adaptáveis, Raibert admite que robôs, de modo geral, ainda apresentam muitas falhas e é preciso aprimorar a segurança antes de se tornarem confiáveis para a interação com humanos.
“Vai exigir bastante cuidado para descobrir como fazer isso. De modo geral, esses robôs são usados separados das pessoas. Acho que vai continuar sendo assim, na maior parte do tempo, por um bom período”, afirma ele.
Até por esse risco, diz o pesquisador, ainda deve demorar até que se tornem uma realidade os robôs domésticos, como os presentes no desenho dos Jetsons ou na distopia Cassandra.

“A casa é o lugar mais difícil para ter um robô porque a segurança é complicada e é difícil chegar ao custo ideal [do produto]”, diz. “E ele também precisa fazer muitas funções úteis para compensar.”
O Spot, robô quadrúpede desenvolvido pela Boston Dynamics, custa em torno de US$ 75 mil e geralmente é vendido em pacotes com múltiplas unidades.
A empresa fundada por Raibert também desenvolve outros dois modelos: o Atlas, robô humanoide voltado à pesquisa e a testes de movimentos complexos; e o Stretch, projetado especificamente para o carregamento e descarregamento de caixas em armazéns logísticos.
Com mais de 50 anos dedicados à robótica, Raibert se diz animado com o futuro da área, especialmente com o uso de modelos de linguagem - os Large Language Models (LLMs) - para ampliar as capacidades cognitivas das máquinas.
Mas, segundo ele, essa nova geração de IA ainda tem ajudado muito pouco no que considera o grande gargalo do setor: o hardware. A parte física dos robôs, diz, continua sendo um dos principais desafios para o avanço dos humanoides.
“Ser recepcionista é uma tarefa bem fácil [para um robô]. Basicamente basta falar e entender. As tarefas mais difíceis são as físicas, como fazer reparos em um carro, moto ou bicicleta”, diz Raibert. Essas, segundo ele, são as tarefas em que os roboticistas estão mais empenhados.
Nessa corrida pelo robô humanoide, há grandes empresas disputando espaço com a Boston Dynamics, como as americanas Tesla, com seu robô Optimus, a Generalist e a Dexterity. Mas ele cita também avanços feitos na China, que tem ao menos 27 empresas de robótica em atividade.
“O lugar mais ambicioso de todos é a China. Não vou dizer que são os humanoides mais sofisticados ainda, mas, se você olhar para o nível de foco, investimento e comprometimento com robótica, é impossível não ficar impressionado com o que está acontecendo na China hoje em dia”, disse Raibert.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista com Raibert:
Como a IA está ajudando a desenvolver a robótica? Ela oferece mais usabilidade para os humanoides ou outros tipos de robôs?
A atual geração de Large Language Models (LLMs) torna mais fácil a comunicação com o robô, porque você pode falar e isso é traduzido para uma linguagem que os robôs conseguem entender. Isso é no nível cognitivo. Eu não acho que os LLMs, até agora, tenham ajudado com os aspectos físicos de um robô.
Como está sendo o treinamento com IA?
Há um conjunto de pesquisas acontecendo, que são os modelos de fundação - por exemplo, modelos de linguagem visual - onde treinam um robô fazendo-o assistir a várias tarefas sendo executadas, tanto por teleoperação quanto por simulação. E, então, o robô constrói um modelo para coordenar as mãos ou a locomoção com o mundo ao redor. Não acho que nada disso já esteja no nível de performance para ser colocado em fábricas, ou pelo menos a maior parte não está. Mas há muito otimismo de que isso vai funcionar.
"Se você olhar para a função cognitiva do ChatGPT, do Gemini e de todos os outros, o desempenho é muito alto. Mas a interação do robô com o mundo, é outra coisa"
A limitação no desenvolvimento dos robôs, hoje, é mais no hardware do que no software?
Acho que, se você olhar para a função cognitiva do ChatGPT, do Gemini e de todos os outros, o desempenho é muito alto. Não é perfeito, mas eu uso todos os dias no meu celular. Então, esse lado cognitivo está avançando bem. Mas a parte física, a interação do robô com o mundo, é outra coisa. E há muita gente trabalhando em IA física para isso, fazendo progresso. O RAI Institute é um deles, a Boston Dynamics, mas também empresas como a Generalist, a Dexterity, há inúmeras.
Como você vê a usabilidade dos robôs daqui a 10 anos?
Dez anos é muito tempo nessa área. Acho que você vai ver muita coisa. Quando se olha para os robôs humanoides que existem por aí, seria otimismo demais esperar que eles sejam muito funcionais em dois ou três anos. Mas, em 10 anos, acho que haverá uma grande revolução. Esses robôs serão muito capazes. O hardware vai continuar evoluindo e o custo vai cair - em parte pelo esforço de todos os desenvolvedores. E as capacidades, por causa dos modelos de fundação que as empresas de IA estão fazendo, vão melhorar cada vez mais.
Que tipo de interação entre humanos e robôs você imagina em 10 anos? Seria possível ter um robô recepcionista, por exemplo?
Recepcionista é uma tarefa bem fácil, eu acho. Basicamente basta falar e entender. As tarefas mais difíceis são as físicas, como fazer reparos em um carro, moto ou bicicleta. Por exemplo, quando você desmonta sua bicicleta, você entende o que cada parte faz e como se encaixam. Essa compreensão ajuda a guiar as etapas físicas necessárias. Essas são tarefas difíceis, e é isso que mais interessa aos roboticistas: ações no mundo físico.
É por causa da precisão dos movimentos das mãos? Isso é difícil de fazer em robôs?
Nós pensamos em termos de uma sequência de habilidades. Se você está consertando sua bicicleta, você usa uma habilidade, como desparafusar algo. Depois uma sequência: tirar o parafuso, tirar o câmbio, tirar a corrente. Você vai alternando entre entender a sequência e executar as habilidades.
"Se você entra em uma fábrica, te ensinam observando outra pessoa. Acreditamos que, em algo como 10 anos, o robô poderá observar um humano fazendo um trabalho e depois realizá-lo"
Como estão os avanços nessa frente?
Um dos projetos chama-se "ver, entender e fazer". Se você entra em uma fábrica, te ensinam observando outra pessoa. Você vê, entende, pergunta. Hoje, robôs precisam ser programados. Acreditamos que, em algo como 10 anos, o robô poderá observar um humano fazendo um trabalho e depois realizá-lo porque ele vai decompor as habilidades e também entender a sequência necessária.
E é aí que os LLMs ajudam?
Sim, é uma parte fundamental. Essa compreensão é o que a IA está fornecendo. A IA também fornece conhecimento do mundo. Você pode pegar seu celular e perguntar: “como troco a corrente de uma bicicleta?” E ele te dá os passos - talvez não como usar os dedos, mas a sequência. Isso já ajuda muito o robô. Caso contrário, um programador teria que descobrir todos os passos e programar tudo.
Você vê algum tipo de trabalho mais vulnerável a ser substituído por robôs?
A grande questão é que as populações na América do Norte, Ásia e Europa estão diminuindo. Então existe a oportunidade de manter a produtividade com robôs. Não estou dizendo que eles não vão substituir empregos, mas há uma oportunidade real de preencher lacunas. É nisso que eu penso.
As pessoas têm mais medo de robôs do que deveriam?
Quando postamos um vídeo mostrando um robô fazendo algo, muitos comentários são de pessoas dizendo que estão com medo. Mas a proporção de likes para dislikes é altíssima. As pessoas adoram ver vídeos de robôs - e depois gostam de dizer que têm medo. Não sei o que acontece. É como ir a um filme de terror: você quer sentir medo ou você realmente está com medo e acha que eles vão dominar tudo? Acredito que existam os dois tipos.
"As pessoas adoram ver vídeos de robôs - e depois gostam de dizer que têm medo. Não sei o que acontece"
Na sua apresentação, você mostrou falhas de segurança. Quanto tempo vai levar para ser resolvido e os robôs poderem interagir diretamente com pessoas?
Vai exigir bastante cuidado para descobrir como fazer isso. De modo geral, esses robôs são usados separados das pessoas, e eu acho que vai continuar sendo assim, na maior parte do tempo, por um bom período. Por isso, a casa é o lugar mais difícil para ter um robô: porque a segurança é complicada e é difícil chegar ao custo ideal. E ele também precisa fazer muitas funções úteis para compensar.
Tem até filmes recentes [como Alice e Cassandra] que abordam o risco de os robôs domésticos enlouquecerem.
Sim. Infelizmente, Hollywood parece ter apenas uma história, e é que os robôs são maus. Isso é nos Estados Unidos. Em outros países, como no Japão, as pessoas são muito mais otimistas sobre os robôs. Há o Astro [Bot, jogo da japonesa Team Asobi], robôs que são personagens amigáveis. E eu acho que essa é mais a atitude.
E você vê alguns robôs sendo usados em guerra, substituindo a infantaria, por exemplo, ou tendo algum uso semelhante ao de drones?
A Boston Dynamics não permite que nenhum de seus robôs seja armado. Você não tem permissão para colocar uma arma em um robô da Boston Dynamics. E isso é motivado, em parte, pela sensação de que eles não são feitos para isso. Se você conversar com pessoas militares, eles vão estar tão preocupados com fogo amigo.
Mas esse uso militar já existe, certo?
Alguns desses robôs já estão sendo usados por forças policiais. Não armando eles, mas fazendo-os atuar como intermediários, para que você possa manter a polícia e o suspeito afastados um do outro, mas ainda se comunicando. E há cerca de uma dúzia de forças policiais nos EUA e em outros lugares usando o Spot nesse tipo de situação. E tem sido um grande sucesso.
"Fomos estudar cães que são treinados pelo exército e pela polícia e eles conseguem fazer muita coisa. O Spot não pode fazer a maioria das coisas que eles conseguem fazer"
O Spot parece um cachorro e você disse que policiais já o usam. Ele pode substituir cachorros policiais, para, por exemplo, farejar drogas?
Os cães são muito bons no que fazem. Nós fomos estudar cães que são treinados pelo exército e pela polícia e eles conseguem fazer muita coisa. O Spot não pode fazer a maioria das coisas que eles conseguem fazer. Mas isso não significa que ele não possa fazer algo útil.
É possível fazer o Spot sentir cheiro por meio de sensores?
Eu realmente não sei. Mas estão começando a usar o Spot para desarmar minas terrestres. O exército da Holanda comprou algumas unidades para fazer isso.
E o que te deixa mais empolgado sobre o futuro dos robôs?
Para mim, isso tem sido um trabalho de vida toda, e nós avançamos muito. Agora tanta coisa está acontecendo e eu estou muito empolgado para ver que coisas novas podemos fazer. A quantidade de investimento que está indo para algumas dessas empresas é incrível. Então é um momento empolgante para trabalhar com esse tipo de coisa.
Qual é o próximo passo?
Nós temos cerca de cinco grupos trabalhando em coisas diferentes: mobilidade, destreza, percepção e como combinar isso com raciocínio e senso comum. Precisamos juntar todas essas coisas.
Você vê o futuro com mais robôs humanoides ou apenas robôs como os que trabalham em armazéns, apartados do convívio humano?
Os dois. Há muita coisa acontecendo com humanoides e isso vai continuar. Há muitas empresas e algumas delas estão fazendo um trabalho muito, muito bom. A Boston Dynamics está fazendo um grande trabalho, o Elon [Musk], algumas empresas chinesas. Mas eu sou de uma empresa que tem robôs em armazéns e eu acho que você vai continuar vendo isso se espalhar.
Essa tecnologia está sendo liderada pelos EUA ou a China tem alguma chance de liderar essa corrida?
A China tem capacidade de fabricar coisas. Shenzhen é Shenzhen. Eu espero que os EUA recuperem sua capacidade de fazer coisas físicas, trazer isso de volta para os EUA. Eu acho que os EUA ainda estão na frente em IA e computação em geral. Mas há muita coisa acontecendo e muitas empresas ambiciosas e investidores. Então qualquer coisa pode acontecer.