Depois de o mercado de renda fixa bater recorde de emissões no ano passado, somando R$ 457 bilhões, segundo dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), a expectativa era de continuidade desse ritmo intenso de operações.
A revelação de “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões na Americanas, porém, caiu como uma bomba no mercado de crédito corporativo, que teve papel fundamental no recorde de emissões no ano passado. O otimismo deu lugar ao receio e colocou as novas emissões em compasso de espera.
“O mercado tinha várias ofertas que estavam prontas para vir para rua, e as companhias, em conjunto com sindicato de bancos, decidiram segurar um pouco, para esperar o spread eventualmente voltar ao que seria um patamar razoável”, diz Felipe Thut, diretor-geral do Bradesco BBI e head da área de investment banking, ao NeoFeed.
No Bradesco BBI desde junho de 2013, Thut diz que o caso Americanas abalou a confiança dos investidores, entendendo que a situação pode demorar a se normalizar, ainda que não demonstre pessimismo com as perspectivas para 2023.
“O mercado de renda fixa e de emissão de dívida está em compasso de espera, para que os investidores voltem, façam uma digestão do que aconteceu, saibam separar as situações e tenham o apetite do crédito corporativo”, afirma Thut. “O mercado está sensível a novas emissões.”
O banco de investimentos do Bradesco tem uma participação relevante no mercado de renda fixa. Um ranking produzido pela Anbima mostra que a instituição ficou em segundo lugar em termos de originação de emissões de renda fixa e híbridos no acumulado de 2022 até novembro, com 127 operações, de um total de 650 no período.
Enquanto lida com os efeitos do caso Americanas na emissão de dívida, Thut olha para o mercado de renda variável com um otimismo cauteloso. Depois de um 2022 sem qualquer IPO, ele avalia que o receio local, oriundo das dúvidas a respeito da situação fiscal, pode ser parcialmente compensado pelo fim do ciclo de alta de juros nos Estados Unidos, com o fluxo estrangeiro abrindo as janelas de operações a partir do segundo semestre.
“Provavelmente não vamos ver o fluxo de renda fixa voltando para renda variável de forma muito significativa, o que faz com que passemos a depender mais do fluxo estrangeiro”, afirma. “Se eles vierem de forma mais convicta, isso poderia ajudar a antecipar essa reabertura da janela de ofertas.”
Acompanhe os principais trechos da entrevista ao NeoFeed:
Após o recorde do ano passado, o que esperar do mercado de crédito para 2023?
No ano passado, o mercado bateu novamente recorde de volume de emissões de renda fixa. Tínhamos dúvidas sobre como seria 2022, porque vinha de um recorde em 2021. Algumas companhias acabaram antecipando as captações no ano passado, pela questão eleitoral. Muitas delas anteciparam vencimentos que teriam em 2023, para não dependerem de uma eventual volatilidade. Sendo realista, acho que deveríamos esperar um volume de renda fixa em linha com o ano passado, até porque se a nuvem de incerteza que vivemos se dissipa, as companhias voltam a ficar mais confiantes para investir. O que impactou este ano, já em janeiro, e isso faz com que estejamos um pouco mais cautelosos sobre esse movimento do mercado, foi o evento do crédito corporativo da empresa de varejo (Americanas).
De que forma o caso Americanas está afetando as emissões em renda fixa?
Os investidores de renda fixa estão pedindo um prêmio maior nas novas emissões. O fluxo de renda variável para renda fixa que vimos no passado continuou acontecendo em janeiro, mas foi diferente. O fluxo foi para títulos públicos, CDBs, letras financeiras de banco, e não para crédito corporativo. Teve uma abertura de spread relevante no mercado secundário. Tanto que o mercado tinha várias ofertas que estavam prontas para vir para a rua e as companhias, em conjunto com o sindicato de bancos, decidiram segurar um pouco essas ofertas, para esperar o spread eventualmente voltar ao que seria um patamar normal.
"Os investidores de renda fixa estão pedindo um prêmio maior nas novas emissões"
Os próximos meses ainda serão difíceis?
O mercado de renda fixa e de emissão de dívida está um pouco em compasso de espera, para que os investidores voltem, façam uma digestão do que aconteceu (na Americanas), saibam separar as situações e tenham o apetite pelo crédito corporativo. Monitoramos o mercado diariamente, o apetite dos investidores, e achamos que o mercado está um pouco sensível a novas emissões.
A expectativa do Bradesco BBI era positiva para o crédito privado em 2023?
Ela continua positiva, mas houve um evento que ninguém esperava e isso teve um impacto no mercado. Estou falando mais de apetite do mercado do que do banco. E não é uma coisa de um setor específico, que os investidores não querem comprar crédito do setor em que aconteceu o evento. Os spreads abriram em todas as emissões. Foi uma questão de confiança em geral.
Já tinha visto algo parecido com o caso Americanas?
Sempre tem eventos, essa é a verdade. Na época da Lava Jato, tivemos algumas companhias que acabaram tendo estresse financeiro e aconteceu algo bem parecido. Esses eventos negativos impactam o retorno dos fundos. Fundo de renda fixa de crédito corporativo é um negócio bem reloginho e quando acontece esse evento machuca a performance do fundo. Já vimos outras situações, seja de companhias que pediram recuperação judicial, companhias que passaram por dificuldades. Isso não é frequente, mas acontece. Só que acho que nesse caso todo mundo foi pego de surpresa. É um evento pontual de uma companhia, mas que traz cautela maior em todos os setores.
"O investidor exige uma remuneração mais alta e a empresa, que não precisa do recurso imediatamente, segura e espera"
É possível ser otimista com a retomada de IPOs e follow ons em 2023?
Estamos cautelosamente otimistas. Após as eleições, acreditávamos que, independentemente de quem fosse o candidato que ganhasse, só o fato de tirar essa incerteza já daria um pouco de visibilidade sobre a retomada do mercado de equities. O que aconteceu, por fatores locais e externos, é que ainda não foi possível dissipar essa nuvem de incertezas.
Por quê?
No Brasil, ainda existe bastante incerteza sobre política fiscal, definições de mudança ou não da meta de inflação, eventualmente a ocorrência de reformas. O positivo é que, aparentemente, os Estados Unidos parecem estar mais perto do pico da taxa de juros. Isso é muito positivo para os mercados emergentes. O fato de os juros estarem perto do pico faz com que os estrangeiros passem a olhar mercados emergentes, para ver o que é possível de investir e que esteja num valuation atrativo. E o Brasil se encaixa nesta categoria.
Qual é o peso do fluxo estrangeiro para ajudar a reabrir o mercado para operações de IPO e follow on?
Os investidores institucionais de fundos de ações sofreram muitos resgates. Desde o segundo semestre de 2021, quando a taxa de juros começou a subir no Brasil, tivemos o fluxo de dinheiro saindo de renda variável para renda fixa. Muitos dos gestores brasileiros de ações estão machucados, não só na performance, mas do ponto de vista de ativos sob gestão. Para eles entrarem em novas ofertas, precisaria pelo menos estabilizar ou voltar esse fluxo da renda fixa para renda variável. Ainda não estamos vendo isso, porque a Selic, pelo comunicado do Copom, vai ficar alta por mais tempo. Provavelmente não vamos ver o fluxo de renda fixa voltando para renda variável de forma muito significativa, o que faz com que passemos a depender mais do fluxo estrangeiro. Se eles vierem de forma mais convicta, isso pode ajudar a antecipar essa reabertura da janela de ofertas.
Quando você acredita que essa janela de ofertas reabre de forma sustentável?
Trabalhamos com o segundo semestre. Porque tem algumas discussões importantes para dissipar a nuvem de incertezas. O governo fala em colocar a sugestão para discussão sobre o arcabouço fiscal em abril. Em junho, vai ter a discussão sobre a meta de inflação. Para termos a reabertura da janela, precisamos dissipar essas incertezas e ter a visibilidade qual vai ser a taxa de juros no Brasil.
No caso das incertezas, o peso vindo de Brasília é muito grande? É o que falta para destravar as operações?
É muito diferente a perspectiva do investidor estrangeiro da do investidor brasileiro. Por estarmos todo dia aqui, a gente talvez esteja negativamente contagiado com o fluxo de informações que parece mais negativo do que realmente é. Quando conversamos com os estrangeiros, eles perguntam por que estamos tão negativos. Para eles, a situação não parece tão ruim assim. Tem a incerteza, de qual a trajetória da dívida pública. Mas se olharmos, estamos numa situação muito melhor do que se imaginava lá na época da pandemia. Chegou-se a falar que a dívida pública alcançaria 90% do PIB. Mas ela chegou a 73,5%. O estrangeiro está olhando para o Brasil e diz que a situação não é ruim. É um gasto fiscal um pouco maior do que era esperado, mas não parece ser um desastre. O investidor de Bolsa não gosta de incerteza, porque traz aversão a risco. Qualquer dissipação dessa incerteza é positiva para a Bolsa. Não consigo dizer qual o peso dessa incerteza (vinda de Brasília), mas diria que qualquer sinalização positiva fará com que o investidor brasileiro mude e tenha uma visão mais otimista. E isso pode ter um impacto relevante para a Bolsa.
"Quando conversamos com os estrangeiros, eles perguntam por que estamos tão negativos. Para eles, a situação não parece tão ruim assim"
O Bradesco BBI tem sentido interesse de companhias por IPOs e follow ons?
Temos um IPO que foi arquivado na CVM, o da CTG. Mas ele acabou postergado, por decisão do sindicato de bancos, em razão das condições de hoje, que não são benéficas. Muito do que temos recebido de perguntas é quando vai reabrir a janela. No caso do follow on, o mercado está sempre aberto para as companhias listadas. Para essas operações, estamos vendo um cenário parecido com o que foi o ano passado. Uma companhia que tem um uso específico para os recursos e gostaria de levantar o capital, o investidor vai parar para olhar a oferta. Foi o que aconteceu com algumas transações que fizemos no ano passado, como a Iguatemi, quando quis comprar a participação no shopping JK.
No caso das empresas interessadas em fazer IPOs, há um perfil ou setor mais interessado?
No caso de potenciais IPOs, infraestrutura, saneamento e energia têm atraído muito interesse dos investidores. Porque são resilientes, há uma deficiência de infraestrutura no Brasil e as concessões de saneamento estão avançando. Essas companhias têm um crescimento contratado, tem uma tese de crescimento bastante relevante e tem poucos nomes listados, como é o caso em saneamento. Vemos também a parte de terminais portuários, até porque está muito ligado à questão de exportação, do agronegócio, setor que está indo bem no Brasil. E a parte de energia. Em M&As, talvez seja o setor mais quente, com maior número de transações.
Em relação a M&As, como está a demanda por esse tipo de operação, a movimentação no mercado?
No ano passado, registramos a maior receita com M&As na história do Bradesco BBI. Nesse cenário em que o mercado de ações está muito restritivo, vários dos IPOs que vinham sendo planejados acabam se transformando em M&As. Eles podem ser estratégicos, com a compra de empresas; pode ser uma fusão; ou eventualmente o que a gente chama de private placement. Ao invés de abrir capital, a empresa busca um fundo private equity. Esses fundos, durante 2020 e 2021, tinham um competidor muito forte, que era o mercado de capitais. Agora, para as empresas que precisam de dinheiro para fazer planos de investimento, o mercado de equity não está mais lá. Então, elas vão para a via do M&A. O detalhe dessa história toda é que os valuations estão mais baixos. E isso, às vezes, dificulta as transações em dinheiro. Como o setor todo em que a empresa está inserida caiu, isso está fomentando conversas de transações em ações, para não vender a preços baixos.
Acredita ser possível repetir os resultados obtidos em M&A no ano passado em 2023?
Os M&As são projetos muito longos. Então, para termos um ano superpositivo em 2023 em M&As, precisaríamos estar anunciando deals agora. Acredito que vamos ver um hiato (de anúncios), porque no período eleitoral e após as eleições, as companhias colocaram os planos de M&As on hold, esperando para ver o que vai acontecer. Ocorreu uma parada no fim do ano. E agora estamos retomando, mas provavelmente vamos ver anúncio de projetos mais para o segundo ou terceiro trimestre. Acho que vamos ter um nível de atividade semelhante ao do ano passado, mas eventualmente essa questão calendário pode deslocar um pouco os M&As mais para frente.