O governo federal estimou no ano passado uma arrecadação de R$ 24 bilhões entre 2023 e 2026 com uma nova lei que tributa fundos fechados e busca equiparar a cobrança de impostos entre os fundos. Somente em dezembro, pela escolha do pagamento antecipado, a Receita Federal arrecadou R$ 8 bilhões.

Mas essa nova lei está sendo contestada judicialmente e pode se transformar em uma longa disputa, o que tende a frustrar os planos de aumento de arrecadação com a taxação de grandes fortunas do governo federal. O problema? A cobrança por rendimentos existentes antes da lei.

Pela primeira vez, houve uma decisão favorável a um Fundo de Investimento em Participações (FIP), um caminho que pode ser seguido por outras gestoras. O NeoFeed teve acesso à decisão liminar na 21ª Vara Cível Federal de São Paulo que suspende a cobrança do imposto de renda do fundo Kviv Participações.

O FIP da Kviv Ventures, gestora de investimentos ilíquidos, investe em empresas early stage via venture capital e em empresas maiores via search funds, tendo feito aportes em empresas como Pet Anjo, Hand Talk e Moneta. Segundo dados da CVM, o fundo tem mais de R$ 220 milhões sob gestão e apenas dois cotistas.

Na sentença, o juiz Paulo Cezar Neves Junior afirmou que a lei viola as regras de anterioridade, que prevê só ser possível cobrar imposto no ano seguinte à publicação de uma lei. Além disso, fere também a irretroatividade, ou seja, não é possível cobrar sobre o estoque.

O juiz se referiu a ação direta de inconstitucionalidade que trata da cobrança de imposto antecipado de empresas coligadas sediadas no exterior. Caso que gerou uma jurisprudência após o Supremo Tribunal Federal (STF) entender que a ação de antecipar o imposto é inconstitucional.

“A decisão abre espaço para que outros FIPs entrem com recurso com base nela, o que esperamos que deva ocorrer. Assim como a União deve recorrer. Será um processo demorado que deverá chegar ao STF”, afirma Érico Pilatti, sócio do Cepeda Advogados, escritório responsável pela ação judicial, em entrevista ao NeoFeed.

O Kviv Participações pagou apenas as primeiras das 24 parcelas, e não pagará o restante enquanto perdurar a liminar ou haver decisão judicial final favorável. O valor da causa, segundo o processo, é de cerca de R$ 7,5 milhões.

É importante frisar que o mandado de segurança em questão não discute pagamentos futuros de imposto de come-cotas semestrais. Ele apenas buscou a suspensão da exigibilidade do imposto cobrado em cima de rendimentos antes da lei. E isso abre caminho para quem já efetuou esse pagamento (seja pessoa física ou jurídica) discutir judicialmente a restituição.

Outros casos dão força à tese

Sem a possibilidade de cobrar sobre o estoque, a conta da arrecadação do governo terá de ser refeita. Segundo dados da Anbima, os FIPs somam R$ 836 bilhões e os Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) têm um total de R$ 490 bilhões sob gestão.

Se a decisão favorável à Kviv foi a primeira envolvendo um FIP, os FIDCs estão um passo à frente com casos que já chegaram até a segunda instância.

Em 4 de junho, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) decidiu a favor da Bams Participações, cotista do fundo de EXP 1 FIDC. O argumento foi o mesmo: não é possível cobrar impostos sobre fatos que ocorreram antes da vigência da regra que os instituiu.

Em maio, houve outra decisão no mesmo sentido do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) a favor da JME Participações, de Belo Horizonte, cotista do fundo de investimento no exterior Nesso Capital (que detém cerca de R$ 21,1 milhões de patrimônio líquido).

Essas decisões judiciais dão agora aos contribuintes o direito de só recolher impostos no estilo “come-cotas” (antes do resgate) sobre os rendimentos auferidos a partir de 2024, por conta do início da vigência da nova lei. Na visão da Cepeda Advogados, todos os fundos fechados serão impactados com uma decisão judicial sobre o caso.

Entidades de investimento ou não?

A nova lei prevê que apenas os fundos fechados que não forem entidades de investimento tenham de pagar imposto periodicamente. Quem for, continua com o diferimento tributário. No entanto, até mesmo o que é e o que não é uma entidade de investimento virou uma zona cinzenta – e palco de outras discussões.

Isso porque o Conselho Monetário Nacional (CMN) publicou em dezembro de 2023 uma resolução (5.111/2023), que define o conceito de entidade de investimento para os fins de aplicação das normas de tributação de fundos de investimento previstos na Lei 14.754/23. Um conceito com mesmo nome, mas conteúdo diferente do órgão regulador do setor, a Comissão de Valores Mobiliários.

Segundo o texto, uma entidade de investimentos deve possuir uma estrutura de gestão profissional para tomar as decisões de investimento de forma discricionária. Cotistas majoritários ou pessoas indicadas por eles não podem enviar ordens aos gestores sobre a composição de carteira.

A resolução ainda limita investimentos em pessoas jurídicas nas quais os cotistas majoritários detenham controle acionário ou o tenham detido nos últimos cinco anos, caso não queiram perder a classificação como entidade de investimento. No caso dos FIPs, por exemplo, não há dados públicos sobre os que são considerados entidades de investimento ou não.

Segundo advogados ouvidos pelo NeoFeed, a intenção do governo é livrar os “fundos de varejo” dessa cobrança, e taxar os fundos exclusivos de grandes famílias. E quem pode decretar como o fundo está enquadrado é o administrador do fundo. E estão ocorrendo surpresas por parte dos gestores em serem notificados de que não estão enquadrados.

O impasse parece ainda estar ocorrendo mais internamente entre gestores e administradores do que na Justiça, em que por estratégia os advogados estão decidindo focar na matéria de inconstitucionalidade da cobrança retroativa e anterior a nova lei.

Mas administradores não estão querendo ser surpreendidos pela Justiça de que não fizeram o enquadramento correto em eventual caça às bruxas.

O que a lei mudou

Antes da mudança da lei, os fundos fechados pagavam seus impostos apenas quando havia retirada de capital, seja por amortização, resgate ou liquidação do fundo. Dessa forma, havia um ganho de diferimento tributário expressamente previsto em lei, não havendo tributação sobre as operações realizadas pela carteira do fundo, mas apenas quando do resgate ou liquidação.

A Lei 14.754 previu que os rendimentos das aplicações em fundo fechados (como FIPs, ETFs e FIDCs) que não forem classificados como entidades de investimentos paguem semestralmente (por come-cotas) imposto de renda de 15% a partir de 2024, referente aos rendimentos verificados em sua carteira (ainda que não resgatados ou amortizados).

Além disso, previu a cobrança do imposto sobre estoque de rendimentos apurados até o fim de 2023, a fim de “retratar” o ganho conquistado. No caso dos detentores de cotas pessoa físicas, o governo deu a opção de pagar à vista (em quatro parcelas no começo de 2024) com desconto, na alíquota de 8%, ou deixar para recolher à alíquota de 15% até 31/05/2024, à vista ou em até 24 parcelas. Isso levou a praticamente todo esse segmento de pessoas físicas a optar pelo pagamento com desconto.

Já para os investidores pessoas jurídicas (como holdings e empresas) não foi dada a opção do desconto. De forma que quase todos optaram pelo parcelamento, e também houve mais motivos para tentar evitar a cobrança do come-cotas sobre o estoque na justiça.

“A legislação deixa claro que só se pode pagar imposto no ano seguinte a publicação da lei. O que aconteceu foi uma lei publicada em 2023 prevendo uma cobrança sobre o imposto de renda deste mesmo ano e sobre rendimentos anteriores, o que pode ser considerado inconstitucional. Já um imposto sobre os rendimentos de 2024 não há nada que impeça”, afirma Danilo Orlando, advogado do Cepeda Advogados.

Procuradas para se pronunciar sobre a discussão da constitucionalidade da Lei 14.754, o Ministério da Fazenda não respondeu até a publicação da reportagem. Já a Receita Federal informou que não se manifesta sobre decisões judiciais.