De turnaround em turnaround, a Marisa vive um ciclo conturbado que já dura quase uma década. Nesse vaivém de reestruturações, a rede vem colecionando fatos relevantes que alimentam ainda mais a desconfiança do mercado. Em especial, nos últimos meses, quando se tornaram mais frequentes.
O último sobressalto veio à tona na segunda-feira, 18 de março, quando a varejista de moda anunciou que estava estudando a viabilidade da realização de mais um follow on ou de um aumento de capital privado, com o plano de levantar um montante de, no mínimo, R$ 195 milhões.
Embora seja bastante provável, com a contratação de Lefosse e BR Partners para viabilizar a oferta, a busca por recursos ainda não está sacramentada. Mas já há um percurso em comum definido nessa largada: a família Goldfarb, controladora da rede, se comprometeu a subscrever o aporte mínimo estabelecido, seja qual for o caminho escolhido.
Essa seria a quarta vez, em pouco mais de dois anos, que a Marisa recorreria a uma injeção de capital ancorada pelo clã. A primeira dessa série veio no follow on em dezembro de 2021, quando a empresa levantou R$ 250 milhões, incluindo nessa conta R$ 90 milhões dos controladores.
Agora, como agravante, a perspectiva desse novo “resgate” foi acompanhada da prévia do resultado da rede no quarto trimestre e no ano de 2023, com números nada favoráveis, e da suspensão do guidance para 2024.
Desde o anúncio desse novo pacote, há uma semana, as ações da companhia acumulam uma queda de 21,2%, levando o valor de mercado da empresa ao patamar de R$ 121,9 milhões. No ano, os papéis têm desvalorização de 52,1%, e, em doze meses, de 42,5%.
“A ação vem derretendo porque o mercado não tem visibilidade sobre a Marisa. É uma empresa sem rumo e em crise de identidade”, diz uma fonte de mercado ouvida pelo NeoFeed. “O problema é que não estamos falando da crise de identidade de uma adolescente. Mas de uma senhora. E listada na B3.”
No jargão do mercado financeiro, o papel da Marisa está “largado”. O volume médio de negociação do papel é de apenas R$ 1,4 milhão (a B3 movimenta mais de R$ 20 bilhões). A varejista contratou no fim de setembro do ano passado o BTG Pactual com formador de mercado para fomentar a liquidez. Há também pouca cobertura dos analistas de varejo e os gestores deixaram de acreditar na tese de longo prazo.
A última gestora independente que teve mais de 5% do total de ações emitidas pela companhia foi a Versa. Mas essa posição começou a ser reduzida em fevereiro do ano passado. Até 2018, um ano antes do início da série de reestruturações, a Marisa chegou a ter a sul-africana Coronation (hoje com mais de US$ 34 bilhões sob gestão) e a Tarpon como acionistas relevantes.
Atualmente, a gestora com maior posição na rede varejista é a DG Gestão, que administra o single family office de Décio Goldfarb, um dos membros da família fundadora da Marisa, ao lado de Márcio Luiz Goldfarb e Denise Goldfarb Terpins.
Em conversa com o NeoFeed em condição de anonimato, um gestor que esteve comprado em Marisa por três anos, mas não chegou a ter 5% das ações da companhia, diz que a falta de clareza sobre o direcionamento da empresa, diante de tantas idas e vindas, foi justamente o motivo para desmontar sua posição no início de 2023. Na época, a rede anunciava mais uma dança das cadeiras em sua gestão.
“O que nos fez sair foi, basicamente, a mudança de 180 graus nos rumos. Fomos pegos de surpresa”, afirma ele. “Decretou-se, mais uma vez, uma nova empresa, desconhecida, que ainda estamos tentando descobrir qual é.”
Diante dos movimentos mais recentes e da falta de um respaldo para a tese da rede no mercado, a opinião corrente é a de que o aumento de capital privado será a alternativa escolhida. Mas, a partir dessa premissa, há quem discorde que a entrada de recursos possa mover os ponteiros da varejista.
“A capitalização, a princípio, é positiva”, afirma uma fonte do varejo. “Mas, esses recursos talvez não sejam suficientes, já que uma parte deve entrar para pagar uma dívida com os acionistas. Então, isso pode não representar, de fato, um dinheiro novo. Não resolve a situação.”
No fato relevante do início do dia 18 de março, a Marisa informou que a capitalização pode incluir uma cifra adicional de até R$ 90 milhões. O valor seria usado para reduzir a alavancagem da operação, ao converter, em equity, créditos detidos pelos controladores, relativos a três emissões de debêntures.
Com a perspectiva de mais um aumento de participação da família Goldfarb – hoje o clã detém uma fatia de 53,83% na operação -, e a progressiva redução do free float, tudo indica que o fechamento de capital é um dos poucos destinos viáveis na prateleira da Marisa.
“É um caminho que faz mais sentido”, observa um especialista em varejo. “A Marisa chegou a um ponto em que ser listada ficou muito caro. E as decisões são mais lentas, porque é preciso dar satisfações para o mercado. É tudo mais pesado.”
O papel dos controladores
O fato de estar longe dos holofotes do mercado de capitais não é garantia, porém, de que a rede terá pista livre para recuperar o eixo. O histórico de influência dos controladores na gestão da rede e o papel que eles podem exercer nesse novo formato é um dos pontos que levantam questionamentos.
“Hoje, há uma pulverização de capital, mas não de poder na Marisa”, diz uma pessoa próxima à empresa. “Sempre houve um poder paralelo. Nunca houve independência na gestão. No fim do dia, toda decisão vem da família, que mais atrapalhou do que ajudou. E, agora, está pagando caro por isso.”
Outra fonte do setor acrescenta: “É importante ter um acionista sempre disposto a colocar dinheiro quando é preciso”, afirma. “Mas, por outro lado, há dúvidas sobre a governança e interferência dos controladores, o que acabou jogando mais contra do que a favor do negócio.”
A alta rotatividade nas lideranças da empresa é um dos fatores que ilustram as dificuldades nesse diálogo. Desde março de 2022, quando Marcelo Pimentel deixou a empresa para assumir o comando do GPA, a Marisa já teve cinco CEOs diferentes.
“Estamos falando de executivos e conselheiros experientes que não conseguiram ajustar a companhia. Aliado ao fato de que as principais consultorias, como McKinsey e Bain & Company, passaram por lá”, ressalta um executivo do varejo. “É uma reflexão que precisa ser feita.”
A última mudança chamou ainda mais atenção. No início de março deste ano, Edson Garcia foi anunciado como novo CEO. Com um detalhe: ele substituiu Andrea Menezes, que havia sido nomeada para o cargo em fevereiro. E que, nesse rápido redesenho, foi apontada como nova presidente do board da rede. Antes deles, João Pinheiro Nogueira Batista ficou apenas 11 meses na liderança.
“A mudança até pode ter sido combinada, mas isso deveria ter sido deixado claro”, diz um especialista em varejo, ressaltando os ruídos na comunicação da rede. “Os sinais nunca são claros. O fato é que eles não prepararam sucessores e contratam executivos achando que eles farão milagres.”
Mudança de perfil
Essas trocas constantes tem origem, em grande medida, na mudança de posicionamento da varejista, que foi desenhada a partir do seu IPO, em 2007. E que começou a cobrar o seu preço em 2015, sob o impulso da crise econômica que assolou o País e, por consequência, o varejo.
Até então, a rede havia construído sua fama junto às consumidoras da classe C e em categorias como moda íntima. Mas decidiu ampliar seu mix e buscar um posicionamento de preço e de oferta mais próximos de redes como Riachuelo, Renner e C&A. O que levou à sua chamada “crise de identidade”.
“Era um sonho da família ter um negócio para as classes B, B+ e A. Só que a Marisa nunca se consolidou nesses segmentos”, diz uma fonte do setor. Ela ressalta que a rede demorou a entender que não estava ganhando um novo terreno. Ao contrário, estava perdendo espaço em seu território de origem.
“Os competidores da empresa, na verdade, são players locais e regionais, mais populares, como Besni, Lojas Torra e Caedu”, completa. “Nos últimos dez anos, essas redes abriram uma "Marisa" ao lado da Marisa e tomaram o mercado deles, enquanto eles tentavam competir, sem sucesso, com Renner e C&A.”
Outro analista do varejo ressalta que, desde então, a Marisa adotou, por diversas vezes, o discurso de volta ao seu DNA, sem conseguir se reconectar com suas clientes de origem. E, nessas tentativas, um elemento novo e agravante foi o avanço dos players chineses, em especial a Shein, em seus antigos domínios.
“O desafio deles é encontrar um posicionamento entre o varejo de moda totalmente orientado a custo, dos chineses e das redes mais populares e o varejo de diferenciação de moda, das lojas de shopping e nomes como Zara”, diz Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo.
Apesar de inesperada, a escolha de Edson Garcia como novo CEO é vista, porém, como um bom contraponto à sucessão de equívocos estratégicos nos últimos anos. Muito em função de o executivo trazer uma boa bagagem justamente no segmento em que a Marisa construiu o seu tão famoso DNA.
Com mais de 25 anos de experiência no varejo, Garcia trabalhou em empresas como Nestlé e Riachuelo. E estava desde 2008 na Caedu, rival da Marisa, onde passou por várias áreas até chegar à posição de primeiro CEO que não fazia parte da família Palma, fundadora da rede.
“Ele conhece o varejo de moda raiz e está acostumado a operar com custos mais baixos e com o perfil de consumidor mais popular”, afirma Eduardo Terra. “Se existe um nome adequado para o momento da Marisa é o dele.”
CEO da AGR Consultores, Ana Paula Tozzi acrescenta: “Desta vez, trouxeram alguém que conhece o mercado da Marisa”, observa. “A dúvida é se ele vai ter carta branca e tempo para fazer as transformações necessárias. Ele não tem espaço pra errar.”
Com a chegada do executivo, um segundo destino mais provável ao lado do fechamento de capital, é a preparação para a entrada de um novo sócio ou mesmo a venda da operação, na visão das fontes consultadas pelo NeoFeed. Uma alternativa que já foi colocada na mesa em outras oportunidades.
“Essa é a hipótese mais racional. Dificilmente a Marisa vai passar a arrebentação e resgatar seu conceito, marca e proposta de valor”, diz uma fonte do setor. “É preciso sanear a empresa até que a janela de M&A esteja mais aberta. E ainda existem bons ativos ali, em termos de lojas e da própria marca.”
Entre os possíveis candidatos, ele cita desde fundos mais agressivos e players mais tradicionais como C&A e Renner, até nomes menos óbvios e que passaram por essa mesma trajetória de recuperação e que começam a mostrar resultados nessa direção. Entre elas, a Veste, antiga Restoque.
Um ano para esquecer?
Seja qual for a opção, o novo CEO terá ainda muito trabalho pela frente. É o que mostram os dados da prévia de resultados do quarto trimestre e do ano de 2023. Mesmo com a rede tendo fechado 89 lojas e tomado diversas medidas para tornar a operação mais eficiente e rentável no decorrer do ano.
Entre outubro e dezembro, a receita líquida da companhia recuou 41,4%, para R$ 409 milhões. No ano, a queda foi de 29,3%, para R$ 1,5 bilhão. As vendas mesmas lojas, por sua vez, caíram 28% no trimestre e 19,7%, em 2023.
Já o lucro bruto caiu 39,8% no trimestre, para R$ 218 milhões, e 30,4% em 2023, para R$ 779 milhões. O Ebitda ficou negativo em R$ 35 milhões entre outubro e dezembro, contra um Ebitda positivo em R$ 24 milhões, um ano antes. O mesmo comportamento foi registrado no ano: Ebitda negativo em R$ 111 milhões.
A dívida líquida foi reduzida em 31,5% em base anual, para R$ 67,8 milhões. Enquanto a posição de caixa e aplicações financeiras tiveram queda de 37,4%, para R$ 92,3 milhões.
“Toda a reestruturação feita ao longo de 2023 não foi suficiente para se refletir nos resultados”, diz Caroline Sanchez, analista da Levante. “A projeção é de um 2024 bastante desafiador e, mesmo com perspectivas de melhora no cenário macro, não há sinais de que a Marisa consiga surfar essa onda.”
Procurada, a Marisa disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que não daria entrevista.