Céu azul, dias ensolarados e secos — com as temperaturas de amenas para quentes, de vez em quando, dá para ficar apenas de camiseta. As noites, por sua vez, são bem frias. Assim é o inverno rural de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, por onde se estende a Serra da Mantiqueira.
Essas memórias renderam ao engenheiro agrônomo Murillo de Albuquerque Regina, mineiro de 63 anos, um insight que revolucionaria o mercado brasileiro de vinhos.
Quarenta anos atrás, apenas a bebida produzida no Rio Grande do Sul era considerada de qualidade. Hoje, porém, a vinicultura da Mantiqueira está entre as melhores do mundo.
Na última edição do Decanter World Wine Awards, o “Oscar” dos vinhos, o Brasil conquistou 105 medalhas. Delas, 25 foram para rótulos vindos das montanhas do sudeste brasileiro.
No início da década de 1990, em uma das primeiras aulas do doutorado em viticultura e enologia na Universidade de Bordeaux, na França, Albuquerque foi tomado pelas lembranças dos invernos de sua infância.
Ex-pesquisador da Epamig, o engenheiro agrônomo descobriu que, se podasse as videiras duas vezes ao ano, em janeiro também, além de agosto, ele conseguiria alterar o ciclo da planta.
E, assim, Albuquerque inventou a dupla-poda. Com isso, os frutos estão em ponto de colheita durante o inverno, quando as condições climáticas são mais propícias.
Graças à técnica, os chamados vinhos brasileiros de inverno ganharam projeção internacional; sobretudo os de Minas Gerais, de onde saem 51% da produção nacional. Somado ao vinho produzido nas vinícolas de São Paulo, esse volume faz da Mantiqueira o polo do vinho de inverno no País.
Os negócios na região, claro, eclodiram e vivem tempos de efervescência. O empreendimento mais recente é também o mais inovador.
Como um vinicultor de verdade
Donos da vinícola Alma Gerais, na cidade mineira de Bom Sucesso, os irmãos Antônio Alberto Júnior e Alessandro Rios investiram R$ 140 milhões na construção da Enovila.
À beira de uma represa de 70 quilômetros de largura, em uma área de quase 2 milhões de metros quadrados, dentro do condomínio Vivert, de propriedade da família, o complexo contará com 60 casas, a ser operado no sistema de propriedade compartilhada.
Até aí, nada demais. Os dois, porém, oferecem aos futuros proprietários a chance de experimentar as vivências de um verdadeiro vinicultor - da plantação da uva ao engarrafamento da bebida. Ao fim do processo, eles terão um blend para chamar de seu.
Funciona assim: cada imóvel será dividido entre 13 sócios, que terão o direito de usá-lo por quatro semanas, ao longo do ano, uma a cada três meses. Com projeto de Gustavo Penna, as casas têm, em média, 240 metros quadrados, com cotas a partir de R$ 360 mil.
A manutenção sai por R$ 500 mensais — o que dá direito a 150 garrafas exclusivas por ano e acesso a serviços de hotelaria, como restaurante, bar, piscinas, spa e quadras de esporte.
A previsão é de que as primeiras casas fiquem prontas em 2027, mas os sócios já poderão desfrutar da estrutura vinícola a partir de julho próximo.
"A Enovila é para quem quer ter a experiência de produzir o próprio vinho, sem arcar com a parte chata da produção", define Alberto Júnior, em conversa com o NeoFeed.
Há de se ter paciência
A vinicultura não é definitivamente um empreendimento para os mais ansiosos, como conta ao NeoFeed Célia Pinotti Carbonari, sócia da vinícola Villa Santa Maria, em São Bento do Sapucaí, porção paulista da Mantiqueira.
Um parreiral leva cerca de quatro anos para começar a dar uvas adequadas para a produção de vinho. E, até lá, são consumidos cerca de R$ 470 mil por hectare, sem contar a compra da terra.
Desse montante, cerca R$ 150 mil são gastos para preparar a plantação. Outros R$ 80 mil são gastos, anualmente, com a manutenção. Cada hectare produz cerca de 4 mil a 5 mil garrafas por safra.
O sucesso da dupla-poda
Ainda que a maioria dos vinicultores adeptos da dupla-poda esteja na Mantiqueira, vinhos de inverno são fabricados também na Bahia, Goiás, Mato Grosso e Distrito Federal, segundo a Associação Nacional de Produtores de Vinho de Inverno (Anprovin).
Seus 44 associados são responsáveis pela produção de 651 mil garrafas anuais, que movimentam cerca de R$ 120 milhões.
Célia é uma das empreendedoras com mais experiência no setor. Também presidente da Câmara Setorial de Viticultura, Vinhos e Derivados do Estado de São Paulo, ela foi pioneira na aplicação da dupla-poda, há quase duas décadas.
Em 2004, Célia era dona de uma pequena propriedade no bairro do Baú, em São Bento do Sapucaí, onde passava apenas os fins de semana, quando começou a pensar em montar um negócio, que a permitisse se mudar de vez para o campo e deixar a agitação de São José dos Campos, onde vivia.
Na época, as primeiras videiras que Albuquerque havia trazido da França começavam frutificar por aqui e ela e o marido, seu sócio, decidiram adotar a técnica em suas terras. Como a história mostraria, eles fizeram (muito) bem.
Dois rótulos da Villa Santa Maria, o Brandina Assemblage 2020 e o Brandina Sauvignon Blanc 2021, foram premiados no último Decanter. Dos 25 vinhos da Mantiqueira laureados, 17 são produzidos pelo sistema de dupla-poda.
O empreendimento de Célia inclui um restaurante e visitas aos parreirais da Villa Santa Maria. "Como estamos em uma região turística, conseguimos vender 100% do que produzimos aqui mesmo", diz Célia. As garrafas custam entre R$ 99 e R$ 399.
Tirando o "vinho da chuva"
Até a criação da dupla-poda tinha-se como certo: vinho bom era vinho proveniente apenas das vinícolas localizadas entre as latitudes 30 a 50 graus, dos hemisférios norte e sul — França, Itália, Portugal, Espanha, Argentina, Chile, Nova Zelândia e Austrália.
Albuquerque não esquece. Enquanto exibia um mapa, um dos professores do doutorado explicava as três características fundamentais para fazer vinhos de alto padrão: dias ensolarados, noites frias e clima seco.
O então doutorando conhecia bem a combinação. Mas não identificou sua região natal naquela cartografia. Albuquerque logo entendeu: a diferença entre o Brasil e os melhores centros produtores estava na chuva.
Aqui, normalmente, as videiras dão frutos no verão, quando os índices pluviométricos são altos — o que resulta em uvas saborosas para comer, mas de baixa qualidade para a produção vinífera.
"Eu precisava encontrar uma forma de tirar o vinho da chuva", recorda o engenheiro agrônomo ao NeoFeed.
Com a dupla-poda, ele fez mais do que proteger as uvas do aguaceiro. Albuquerque levou os vinhos da Mantiqueira ao estrelato.