SEATTLE - É impossível não notar, a uns bons metros de distância, a instalação de aproximadamente 270 mil metros quadrados, distribuídos em cinco pisos, na pequena Arlington, cidade de pouco mais de 20 mil habitantes na região metropolitana de Seattle.

Dentro do local, o que chama a atenção é a dança protagonizada por um exército de robôs, que, com movimentos em sincronia, agilizam coletas, transportes e empacotamentos de pedidos. E cujos passos e braços são embalados por avalanches de dados, inteligência artificial e machine learning.

O palco dessa “exibição” é o PAE2, maior fulfilllment center da Amazon no estado de Washington. Inaugurado em 2023, o centro é um dos elos da famosa fortaleza logística de entregas da companhia, que vem sendo reforçada pelos tentáculos de mais de 750 mil robôs distribuídos globalmente.

A uma hora dali, no quartel-general (QG) da Amazon, em Seattle, outro braço da gigante americana, a Amazon Web Services (AWS), apontada como o “molho secreto” do PAE2, também tenta manter o ritmo. Nesse caso, de crescimento e da entrega de resultados no amplo pacote de negócios da empresa.

Criada para municiar as próprias operações da Amazon, a AWS ganhou status de companhia em 2006. E, desde então, desbravou e liderou com sobras a oferta de infraestrutura de computação em nuvem. Agora, porém, esse domínio vem sendo colocado à prova com a corrida da inteligência artificial (IA).

“Nossa operação ainda cresce mais do que qualquer outra”, afirmou Matt Garman, CEO da AWS. “E, hoje, entre 80% e 90% dos recursos ainda estão on-prem (instalados nas infraestruturas dos clientes). Então, é um mercado enorme. E não se trata de um setor em que um único vencedor vai levar tudo.”

Parte de um discurso para mostrar que a AWS não está deitada em berço esplêndido diante desse redesenho no mercado de cloud computing, as palavras de Garman foram ditas na semana passada a jornalistas de 20 veículos de todo o mundo. Entre eles, o NeoFeed, único representante brasileiro no grupo.

Durante três dias, a Amazon abriu parte das portas da sua sede, em Seattle, para mostrar e realçar o que a AWS tem feito. E, em meio ao vaivém de pedestres, bikes, patinetes, bondes e das gaivotas que cortam as ruas do bairro South Lake Union, o roteiro deu uma boa dimensão do seu poder de fogo.

Tal qual a chuva e o frio típicos da cidade, a Amazon tem uma influência marcante na paisagem da região, onde mantém, desde 2010, mais de 40 prédios a poucos quarteirões do Pike Place Market, um dos cartões postais de Seattle. Todos com nomes ligados a algum capítulo da história da empresa.

Um deles leva o nome de Day 1, uma referência a um dos mantras de Jeff Bezos, o fundador da Amazon, que, desde a criação da companhia, em 1994, defendeu que a companhia agisse como se estivesse em seu “primeiro dia”.

No comando da AWS desde junho deste ano, Garman, que ingressou na operação em 2005, como estagiário, entende bem essa máxima. E conhece como poucos os caminhos de cada metro quadrado dos múltiplos andares, salas e corredores que traduzem a ampla presença da Amazon na cidade.

O que é novidade no percurso do executivo e da AWS é o avanço de um concorrente, em particular, no território dominado pela empresa. E cuja sede está instalada a cerca de 20 minutos dali, em Redmond, também no estado de Washington: a Microsoft, com a Azure, sua plataforma na nuvem.

Na trilha de um relacionamento estreito com a OpenAI, dona do ChatGPT e uma das protagonistas do hype da IA, e a partir de um aporte de cerca de US$ 14 bilhões na startup, a Microsoft – e, em menor escala, o Google, com a Google Cloud - vem reduzindo gradativamente sua distância em relação à AWS.

Segundo a consultoria americana Synergy Research, entre 2017 e 2024, a Microsoft saltou de uma participação no mercado global de infraestrutura de nuvem - estimado em cerca de US$ 300 bilhões - de 11% para 23%. O Google, por sua vez, saiu de 5% para 12%. Já a AWS recuou de 34% para 32%.

Um passo atrás

Garman rechaçou a opinião de parte do mercado de que a AWS tenha demorado para surfar a onda da IA, ao ressaltar que a empresa tem ofertas sob essa perspectiva há ao menos uma década. Entretanto, ele reconheceu um mérito na ferramenta por trás do sucesso da OpenAI.

“Acho que o mundo foi meio que tomado pela tempestade do ChatGPT, que foi capaz de mostrar o que esses modelos eram capazes de fazer”, observou Garman. O CEO não deixou de cutucar, porém, a Microsoft.

“Se você olhar para o nosso concorrente mais próximo, a Microsoft, o que eles estão fazendo é mudar a participação de negócios já existentes para esse negócio de cloud. Então, não é algo totalmente comparável”, disse. “Mas nós percebemos que precisamos seguir famintos.”

Garman destacou que, ao reconhecer o potencial desse novo cardápio, agora sob a roupagem da chamada IA generativa, a decisão da AWS foi dar um passo atrás, diferentemente de rivais que saíram em disparada para criarem suas ferramentas nesse espaço.

“Nós recuamos para construir uma plataforma em que os dados das empresas e sua privacidade seriam provavelmente o que diferenciaria, no longo prazo, suas aplicações. E isso levou mais tempo”, disse o CEO. “E nunca acreditamos que haveria apenas um modelo e que a OpenAI seria a única opção.”

Parte dessa abordagem começou a vir à tona em setembro de 2023, a partir do lançamento da Bedrock. Entre outros recursos, a plataforma traz atalhos para que as empresas construam ferramentas personalizadas de IA generativa a partir de modelos pré-treinados tanto pela AWS como por terceiros.

Além dos modelos Titan, da AWS, a oferta inclui opções de startups como a israelense AI2I Labs, a francesa Mistral e a americana Anthropic, rival da OpenAI que já captou quase US$ 10 bilhões em 10 rodadas de investimentos. Desse montante, US$ 4 bilhões foram desembolsados pela própria Amazon.

“Muitos dizem ter um ótimo modelo para fazer tudo. Não acreditamos nisso”, disse Vasi Philomin, vice-presidente de IA generativa da AWS, ao NeoFeed. “É apenas uma parte do quebra-cabeça. Você precisa de muitas alternativas para aplicar o conceito em escala e conectado a problemas de negócios do mundo real.”

Integrado recentemente ao time da Anthropic, como chief product officer, o brasileiro Mike Krieger, também conhecido como um dos cofundadores do Instagram, ressaltou como a parceria e essa tese, que combina dados dos próprios clientes com um leque diverso de modelos de IA, vem avançando.

“Uma das dimensões que mais me empolgam é a possibilidade dos modelos não apenas identificarem os problemas dos clientes”, disse Krieger. “Mas também corrigi-los, com respostas mais aprofundadas, encontrando insights nos dados e talvez até mesmo propondo ideias e quais ações tomar a partir deles.”

Outro pilar de IA da AWS é a divisão batizada de Amazon Q Business. Entre outras ofertas, ela inclui um assistente de IA generativa que usa recursos similares ao ChatGPT, mas que fornece respostas a partir de diferentes fontes de dados, estruturados ou não, da empresa que adota a ferramenta.

Esse portfólio também facilita a criação de aplicações de produtividade baseadas em IA generativa, sem exigir conhecimentos avançados de programação. Basta descrever ao assistente os requisitos do sistema que irá aprimorar determinada tarefa e as fontes de dados a serem consultadas.

“Você usa linguagem natural para construir as aplicações e pode compartilhá-las com outras pessoas na empresa”, disse Dilap Kumar, vice-presidente de Amazon Q Business. “A maioria das pessoas que está criando essas aplicações não é desenvolvedor, e sim quem está mais nas linhas de negócios.”

Uma terceira camada na estratégia de IA da AWS, em curso já há mais tempo, envolveu o investimento no desenvolvimento de seus próprios chips, batizados de Trainium e Inferentia, voltados exclusivamente ao treinamento de modelos de IA e as altas cargas de processamento exigidas nesses processos.

“Eles têm um preço 40% a 50% melhor na comparação com qualquer outra oferta”, afirmou Philomin. “Hoje, um dos problemas é que o custo ainda alto restringe a IA a aplicações de alto valor. Vamos nos concentrar em reduzir esse custo para que as empresas possam aplicá-la a tudo.”

As duas principais rivais da AWS também têm iniciativas semelhantes no campo do silício. A Microsoft, com o Maia AI, seu primeiro chip de IA, anunciado em novembro de 2023. E o Google com processadores como o Axion, lançado em abril desse ano.

Das provas de conceito à produção

O mais novo movimento da AWS nessa disputa foi concretizado na segunda-feira, 4 de novembro, com o anúncio de uma aliança global para expandir o programa Generative AI Innovation Center (GenAIIC).

Lançado em junho de 2023, com um aporte inicial de US$ 100 milhões, o GenAIIC, na prática, conecta as empresas clientes com cientistas e especialistas da AWS para o desenvolvimento de ferramentas de IA generativa.

Com a aliança global, a iniciativa passará a ter o apoio de parceiros globais para estender seu alcance em todo o mundo. Inicialmente, nove consultorias e integradores serão “plugados” nessa rede. Além de nomes como Deloitte, na América Latina, o integrante dessa lista será a Escala24x7.

A expansão do projeto dialoga com os resultados que a AWS começa a colher após um trabalho mais restrito aos bastidores. A plataforma Bedrock, por exemplo, já soma mais de 10 mil usuários. Com clientes como Nasdaq, Doordash e Booking.com, o GenAIIC, por sua vez, também traduz essa mudança.

“Houve muita experimentação e provas de conceito no ano passado”, disse Sri Elaprolu, head global do GenAIIC. “Nesse ano, mais de 50% desses projetos já entraram ou estão entrando em produção”. Um dos nomes nesse estágio é a National Football League (NFL), a liga do futebol americano.

A NFL, que já mantém outros projetos com a AWS, entre eles, o uso de machine learning e IA para prever contusões de jogadores, desenvolveu um assistente que permite buscar imagens e lances a partir de uma série de filtros, por exemplo, por jogadas, ano e nome do atleta.

“Temos muitos profissionais criando conteúdos nas nossas plataformas”, disse Eric Peters, diretor de mídia e pós-produção da NFL. “No passado, eles levavam cerca de 30 minutos para obter uma imagem. Com essa ferramenta, eles têm acesso a listas de imagens e podem editá-las em questão de segundos.”

O Brasil também está avançando suas jardas nessa arena. É o caso da Gimba. A varejista está usando a IA generativa da AWS para agilizar o cadastro e a atualização de produtos em seu catálogo, composto por cerca de 30 mil SKUs. E reduziu em 84% - de 13 para 2 minutos – o tempo gasto nesse processo.

A Amazon não está economizando, porém, nessa corrida. Apenas em data centers, há planos de investir mais de US$ 100 bilhões na próxima década. O Brasil está nessa lista, com a projeção de um aporte de R$ 10,1 bilhões até 2034. O motivo? Justamente a demanda por nuvem e IA generativa.

A empresa não é a única que está abrindo os cofres. O Goldman Sachs apontou que Amazon, Microsoft, Alphabet e Meta investiram aproximadamente US$ 357 bilhões em 2023 em capex e P&D, sendo uma parcela considerável desses recursos direcionada à IA.

Já analistas do Citi projetam que a cifra aplicada pelo quarteto apenas nesse conceito deve chegar a cerca de US$ 209 bilhões nesse ano. Entretanto, essas cifras bilionárias têm alimentado não apenas os modelos de IA, mas também uma pressão crescente dos investidores pelo retorno desses aportes.

“Acho que essa tecnologia vai ser transformadora, mas é uma espécie de ciclo. O fato é que você tem que apostar para onde esses modelos estão indo”, afirmou Garman, o CEO da AWS. “É aí que estão os investimentos e não no valor que eles entregam hoje.”

No caso da Amazon, o resultado mais recente dessa equação, referente ao terceiro trimestre de 2024, foi divulgado em 31 de outubro. No período, a receita líquida da empresa cresceu 11%, para US$ 158,9 bilhões.

Com um salto de 19%, a AWS teve uma receita de US$ 27,4 bilhões e foi um dos motores para que a Amazon superasse as projeções de analistas. Em contrapartida, o ponto negativo foram os gastos de capital, que cresceram 81%, para US$ 22,6 bilhões, justamente na esteira dos investimentos em IA.

Em teleconferência com analistas, Andy Jassy, CEO da Amazon, disse que a empresa já provou ao longo do tempo ser capaz de gerar recursos suficientes para tornar sua operação um negócio de retorno sobre capital investido muito bem-sucedido. E que espera que o mesmo aconteça com a IA generativa.

“É uma oportunidade realmente grande, talvez única na vida”, afirmou Jassy. “E acho que nossos clientes, o negócio e nossos acionistas se sentirão bem no longo prazo com o que estamos perseguindo agressivamente.”