A paulistana Ester Carro nasceu e cresceu no Jardim Colombo, um dos núcleos do Complexo Paraisópolis, a terceira maior favela do país, com 58,5 mil moradores, na zona sul da capital. Um lugar como poucos no Brasil, onde as desigualdades se revelam tão profundas.
Uma região onde as moradias precárias, vielas sem asfalto e córregos a céu aberto da comunidade contrastam com a riqueza do bairro vizinho, o Morumbi, com suas mansões, condomínios de luxo, ruas asfaltadas e praças e parques arborizados.
Desde muito cedo, Ester se impôs a missão de mudar a realidade de seu entorno, embora não soubesse muito bem qual caminho seguir. “Quando comecei a entender a importância da arquitetura e do urbanismo e como eles poderiam ser uma ferramenta de transformação social, pensei: ‘É isso que eu quero fazer'", diz ao NeoFeed.
E é o que ela tem feito, nos últimos anos — e o que tem lhe rendido reconhecimento nacional e internacional como uma das vozes mais ativas da arquitetura social.
Filha de pedreiro e neta de marceneiro, Ester tinha alguma familiaridade com a construção civil. A arquitetura era algo mais distante, vista mais de perto apenas em ocasiões esporádicas, quando a prefeitura propunha algum projeto na favela. Seu pai, Ivanildo de Oliveira, também líder comunitário, tinha o costume de levar Ester para as reuniões.
“Não me imaginava como arquiteta. Eu não tinha a referência de uma mulher periférica fazendo parte da arquitetura. Foi bem difícil no começo me enxergar nessa posição”, conta.
Ao entrar na faculdade, mais um desafio: era a única da turma a morar em uma favela. Além disso, na época, os professores mal falavam sobre arquitetura social, tampouco em empreendedorismo de impacto. Mas Ester não esmoreceu.
E, hoje, aos 29 anos, ela coloca em prática seus conhecimentos de arquiteta e seus sonhos de empreendedora no Jardim Colombo, onde preside o Fazendinhando, instituto de transformação territorial, cultural e socioambiental.
Professora na Universidade Mackenzie, onde cursa o doutorado, e sucesso nas redes sociais, em vídeos sobre suas obras, ela tem levado os projetos do Jardim Colombo mundo afora, em conferências internacionais no México, Egito, Estados Unidos... a arquiteta já apresentou seu trabalho no prestigioso MIT e na ONU. E mereceu reportagens na revista alemã Der Spiegel e a americana Vogue.
O lixão e o parque
Uma das intervenções mais celebradas da arquiteta foi a transformação de um lixão de mil metros quadrados em parque. Ao longo de dois anos, o lugar insalubre e malcheiroso foi se transformando em espaço de convivência.
Tudo com a participação dos moradores do Jardim Colombo. O que lhes despertou o sentimento de pertencimento. “A comunidade foi entendendo que não podia mais jogar lixo no local, pois o espaço é dela e de sua família e é preciso cuidar”, diz Ester.
O Parque Fazendinha tem playground, áreas verdes e conta com eventos mensais. Virou uma espécie de quintal, uma extensão da casa dos moradores — “um respiro” para aqueles que vivem em pequenas moradias, muitas vezes com pouca ventilação e luminosidade. O projeto ainda não está pronto e, em sua última fase, contará com recursos públicos.
Em paralelo à construção do parque, novas demandas surgiram. Uma delas foi a reforma de moradias precárias, projeto batizado de Fazendo o Lar. Já são 360 ambientes transformados.
Quem bate nas portas de parceiros para conseguir recursos e materiais para as reformas é a própria Ester. Todo trabalho é feito a partir de doações e de forma coletiva: com mutirões, voluntariado e apoio da iniciativa privada. Até hoje, cerca de 20 empresas apoiaram os projetos.
A menor casa do Brasil
São histórias como a de Francisco da Silva, 60 anos, o Tiquinho. Ele vivia em apenas 4 metros quadrados. O morador não tinha banheiro, cozinha e nem acesso à água. Para dormir, ele escalava a parede para alcançar uma cama improvisada próxima ao teto.
Com R$ 10 mil arrecadados em campanha pela internet, o Fazendo o Lar conseguiu ampliar o ambiente para 11 metros quadrados, com banheiro, pia de cozinha e até frigobar. “Esse foi um dos meus maiores desafios até hoje”, lembra Ester. “Nunca imaginei ter de desenhar um mobiliário que servisse tanto para acessar à cama como para armazenar utensílios em nichos”.
Com a mão de obra dos moradores, a casa de Tiquinho tem agora banheiro, móveis que não só servem para o armazenamento como escada para ele alcançar a cama suspensa. A casa também ganhou um novo revestimento, piso, azulejo, pintura e até um pequeno jardim feito pelo morador. A história “viralizou” na internet como a menor casa do Brasil.
Em breve, Ester deve começar a reforma de Daniela Aparecida Cesário, 48 anos, desempregada e mãe de cinco filhos. Ela mora na parte de cima da casa da irmã, um espaço com três cômodos, sem banheiro.
Taína, a primogênita de Daniela, chegou a fazer um empréstimo para construir um banheiro no local, mas com o dinheiro só foi possível ir até o fim.
“Sem torneira, sem descarga, sem nada. Era literalmente só a privada”, conta ela, ao NeoFeed. “Agora, minha mãe vai ter um banheiro e vai poder viver na casa dela com meus quatro irmãos. Sem ter de usar o banheiro de outras pessoas.”
Mulheres na construção civil
O Parque Fazendinha ainda deu origem a mais um projeto: o Fazendeiras, iniciativa para capacitação de mulheres da comunidade para o setor da construção civil.
A comunidade do Jardim Colombo é composta em sua grande maioria por mulheres chefes de família, com baixa escolaridade e desempregadas, o que piorou durante a pandemia.
Na mesma época, o setor de construção civil era um dos poucos aquecidos e precisando de mão de obra. Assim, nasceu o Fazendeiras, com o objetivo de capacitar as mulheres tanto para o mercado de trabalho como para realizar reformas em suas casas e nas moradias da comunidade.
Os cursos são oferecidos por moradores que já atuam na área como pedreiros e azulejistas e por parceiros, entre eles Tintas Coral e Senai.
Tainá, 26 anos, é uma das 400 Fazendeiras já treinadas pelo projeto. Há cinco anos, ela soube de uma vaga no curso de azulejista em uma postagem de Ester no grupo da comunidade.
Na época, a jovem estava desempregada e enxergou no anúncio uma grande oportunidade. Não fez apenas o curso de azulejista, como também o de pintura, elétrica e de instalação de piso vinílico.
“Me especializei nos cursos e foi muito bom para mim, porque eu tive uma noção de como colocar piso, pintar uma casa... sou apaixonada por pintar casas", conta.
Hoje em dia, Tainá põe a “mão na massa” em sua própria casa, na de parentes e, claro, nas reformas do Jardim Colombo. Ela trabalha como coordenadora do Fazendeiras.
Como ela diz: "Ver o sorriso no rosto das pessoas, às vezes, só por causa de uma parede ou de uma fachada pintada, é muito gratificante”. E, assim, Ester vai "formando" uma legião de arquitetos sociais.