Este é o quarto artigo da série de aplicações da inteligência artificial (IA) em saúde. O assunto é tão amplo, que o dividimos em seis artigos. A ideia da série é colocar em debate a aplicação da IA na medicina, analisando onde existem potenciais pontos de atenção e que poderiam ser melhorados com uso de IA.

Um aspecto que, acredito, incomoda os pacientes nos atendimentos em consultórios é o teclado. Muitas e muitas vezes o médico passa a maior parte do seu tempo em uma consulta digitando dados obtidos dos exames solicitados aos pacientes. Muito pouco tempo conversando, examinando e olhando olho no olho do paciente, tentando entender quem é aquela pessoa.

Já tive experiências desagradáveis com isso. Uma vez me indicaram um cardiologista, que apesar de bom profissional técnico, passava o tempo todo da consulta, sentado de lado para mim, de frente ao seu laptop, digitando os dados dos exames que me havia solicitado.

Observando seu trabalho via que muito do que ele fazia era copiar/colar textos anteriores. Olhando com atenção, vi que, por este motivo, uma informação que ele havia inserido de forma errônea na primeira consulta estava sendo propagada para as demais. O alertei a tempo. Bem, e em meros cinco minutos, ele me perguntava algo, me solicitava novos exames e pedia para retornar um tempo depois. E a história se repetia.

Mudei de profissional após a terceira consulta, pois queria um médico que interagisse comigo e não criasse um distanciamento tão grande assim. O uso de computadores pelos médicos deveria ser para melhorar o atendimento e não criar um distanciamento como esse.

Também temos queixas em hospitais, quando vemos que muitos sistemas de prontuários eletrônicos são complexos de usar e demandam horas e horas de treinamento para os profissionais de medicina estarem aptos a operá-los.

Uma vez, antes de uma pequena cirurgia, o cirurgião, sabendo que eu trabalhava com TI, me disse que uma coisa que o incomodava muito era exatamente a demanda de trabalho extra que os sistemas do hospital exigiam dele, pois eram sistemas complexos, pouco intuitivos e que no entender dele, apenas ajudavam nas rotinas administrativas do hospital, mas não o ajudava na prática médica.

Claramente, quando médicos e pacientes se queixam de algo, temos um ponto de atenção.  A tecnologia digital não está contribuindo adequadamente.

Creio que podemos pensar em usar IA para ajudar a resolver estes problemas. A evolução dos sistemas de processamento de voz e processamento de linguagem natural já está permitindo que seja possível pensarmos em um assistente virtual que grave uma consulta, faça transcrição e edição, e a armazene para posteriores análises pelo médico.

Além disso, para apoiar o médico, o assistente virtual poderia ajudar na interação, propondo algumas perguntas durante a consulta e, mesmo depois, em uma análise posterior, poderia correlacionar determinados sintomas descritos pelos pacientes, correlacionando-os com características que, provavelmente passaram desapercebidas na conversa.

Como os médicos não conseguem se manter atualizados, pois têm alta demanda de trabalho e jamais teriam tempo para ler os mais de dois milhões de artigos científicos, revisados pelos pares, que são publicados anualmente, em todo o mundo, novas abordagens clínicas ou novos medicamentos poderiam ser sugeridos.

O uso mais intenso de IA poderá contribuir em muito para o modelo de medicina personalizada

O uso mais intenso de IA poderá contribuir em muito para o modelo de medicina personalizada. Com assistentes virtuais atuando como médico assistente e novos recursos como análise de DNA, este caminho é possível.

Embora não seja médico, o assunto saúde e medicina sempre me interessou e li recentemente um artigo muito instigante, “From Evidence Based Medicine to Medicine Based Evidence”, que mostra que as práticas médicas de hoje são baseadas em resultados obtidos pela média da população, o que não significa muito para cada paciente individual, com suas especificidades.

Cada indivíduo é único em seu metabolismo, genética, hábitos de vida e condições de saúde, e recomendações baseadas na média, nem sempre serão as mais adequadas para ele, especificamente. Não existe esta coisa de paciente padrão.

No último artigo abordamos IA em especialidades como radiologia, que são centradas em análises de padrões. Mas e as outras especialidades? Por exemplo, oftalmologia. Sabe quando você vai ao oftalmologista e faz aquele teste de ler as letras na parede? Pois é. Este é o teste de Sellen, criado em 1862! Dá para imaginar quão desatualizado está a oftalmologia, neste quesito, pelo menos?

É curioso, pois vemos correções de miopia feitos à laser, que é uma tecnologia avançada, lado a lado com esta técnica, criada no século 19. Mas a IA pode ajudar muito. Por exemplo, seu uso pode melhorar significativamente a acurácia dos exames, como vemos em “Eye, robot: Artificial intelligence dramatically improves accuracy of classic eye exam”.

No futuro talvez possa até ser feito sem ida ao consultório, como a iniciativa, em testes, claro, da experiência proposta pelo https://myeyes.ai/. Além disso, nem toda a população tem fácil acesso à médicos oftalmologistas e doenças como edema macular diabético e retinopatia diabética afligem centenas de milhões de pessoas em todo o mundo.

Alguns experimentos tem se mostrado bem promissores, como o “Development and Validation of a Deep Learning Algorithm for Detection of Diabetic Retinopathy in Retinal Fundus Photographs”, conseguindo índices de acerto superiores a 90%.

A tecnologia não será substituto para o médico, mas vai demandar uma mudança significativa em muitas das atuais práticas médicas

O avanço tecnológico e o uso mais intenso da IA pode provocar mudanças nas regulações médicas. A tecnologia não será substituto para o médico, mas vai demandar uma mudança significativa em muitas das atuais práticas médicas e isso, nem sempre é uma questão fácil de ser debatida e até mesmo aprovada pelos órgãos de classe.

Um artigo muito interessante é “With an eye to AI and autonomous diagnosis”, que mostra que poderemos vir a ter muitos diagnósticos autônomos, não eliminando médicos, mas agindo onde eles não estão presentes. Amplia o alcance da medicina para a sociedade.

Outra aplicação da IA em oftalmologia é que um exame feito no nosso olho pode identificar doenças que podem passar despercebidas ao oftalmologista, por estarem fora de sua área de especialização. Uso de Deep Learning na análise de retina para prever doenças cardiovasculares é um exemplo. Vale a pena ler o estudo “Prediction of cardiovascular risk factors from retinal fundus photographs via deep learning” que mostra que o olho, pode ser sim, uma janela para análises preditivas de diversas doenças.

Talvez, no futuro, usando smartphones com câmeras aprimoradas nós mesmo podemos nos auto-examinar e identificar sinais precoces de degeneração macular (DRMI), retinopatia diabética, glaucoma, catarata e mesmo Alzheimer. Precisaremos do oftalmologista? Sim! Ele será indispensável na revisão do diagnóstico e no tratamento. Mas com uso de IA e de tecnologias digitais, seu consultório poderá estar em uma simples maleta. A Eyenetra coloca foróptero e refrator em uma maleta portátil.

Na cardiologia também a IA terá papel extremamente importante. Uma doença que mata muito. De acordo com a plataforma Cardiômetro, da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), mais de 289 mil pessoas morreram aqui no Brasil em decorrência dessas patologias no ano de 2019. Os especialistas usam basicamente duas tecnologias para auxiliar no seu diagnóstico: eletrocardiografia (ECG) e ecocardiografia.

O uso de IA pode ajudar em muito a melhorar a precisão desses diagnósticos. Algumas experimentações já vem mostrando isso, como “Machine Learning Algorithm Outperforms Cardiologists Reading EKGs” e “Cardiologist-Level Arrhythmia Detection With Convolutional Neural Networks”.

Acoplando algoritmos com tecnologias de equipamentos vestíveis, podemos fazer com que a medicina deixe de ser pontual, para ser contínua. Aliás, isso já existe: a AliveCor.com utiliza acelerômetro pode identificar anomalias no batimento cardíaco em relação ao nível de atividade física e alerta o usuário para realizar, ele mesmo, o ECG.

Hoje o cardiologista só tem contatos com o cliente pontualmente e com tecnologias digitais como essa se disseminando (preços caindo mais e mais), ele passa a receber informações contínuas e terá muito mais condições de se dedicar ao tratamento.

Com informações contínuas, a medicina passa a ser direcionada a atuar de forma preventiva e preditiva, e não apenas corretiva

Além disso, com informações contínuas, a medicina passa a ser direcionada a atuar de forma preventiva e preditiva, e não apenas corretiva. O paciente também passa a ter mais engajamento em sua própria saúde. Não a terceiriza para o médico.

A IA também pode ser uma arma poderosa no combate ao câncer. Segundo a IARC (International Agency for Research on Cancer), em 2018, no mundo, ocorreram 9,6 milhões de mortes por câncer. O câncer de pulmão apresenta-se como o sítio primário com maior incidência de 11,6% do total, e também, o de maior mortalidade, com 18,4% do total de mortes. No que diz respeito à incidência, aparecem na sequência o câncer de mama (11,6%), próstata (7,1%) e cólon (6,1%). No tocante à mortalidade, o tumor de pulmão é seguido pelo câncer colorretal (9,2%), gástrico (8,2%) e hepático (8,2%).

As armas tradicionais de diagnóstico nem sempre funcionam adequadamente. Na gastroenterologia, por exemplo, um estudo feito há tempos, “Colonoscopies Miss Many Cancers, Study Finds”,  mostrou que em vez de prevenir 90% dos cânceres, como alguns médicos acreditam, as colonoscopias previnem apenas entre 60% e 70%. Alguns experimentos com IA tem mostrado resultados bastante promissores nesta área, como “Simultaneous detection and characterization of diminutive polyps with the use of artificial intelligence during colonoscopy”.

Hoje, na medicina, ainda usamos muitas tecnologias antigas, que, claro, têm seu valor. Mas, não poderiam ser refinadas? Por exemplo, o estetoscópio, quase que um símbolo da medicina, apareceu em 1816, quando o médico francês René Laennec inventou o primeiro utilizando um longo tubo de papel laminado para canalizar o som do tórax do paciente ao ouvido.

Laennec criou o nome "estetoscópio" a partir de duas palavras gregas: stethos (peito) e skopein (para visualizar ou ver). Ele também chamou o seu método de usar a "auscultação" pelo estetoscópio de "auscultare" (ouvir). Vinte e cinco anos mais tarde, George Camman de Nova York, desenvolveu o primeiro estetoscópio com um fone de ouvido para cada orelha.

A invenção do eletrocardiógrafo, em 1902, pelo fisiologista holandês Willem Einthoven, juntamente com a descoberta dos Raios-X, em 1895, contribuiu em muito para a evolução da medicina atual. Hoje, a tecnologia digital, com uso intenso da IA, terá uma relevância muito grande em uma nova era da medicina. A IA poderá ser a transformadora da medicina, como o foram o estetoscópio, o microscópio, o Raio-X e o eletrocardiógrafo.

A jornada da IA na medicina não é simples, nem fácil. Temos muito a evoluir ainda, e mesmo grandes empresas às vezes tropeçam, como vimos nos caso do Google (Why Google Flu Is A Failure) e IBM (IBM’s Watson supercomputer recommended ‘unsafe and incorrect’ cancer treatments, internal documents show).

Mas, com a IA evoluindo rápido, melhora-se o nível dos algoritmos e as bases de dados para treinamento, e vemos nitidamente que sua aplicação tem potencial de transformar a medicina. Talvez no futuro breve não estejamos mais discutindo se um médico está adotando IA, mas porque ainda não a está adotando.

Um estudo, “The AI effect: How artificial intelligence is making health care more human”, mostra que a medicina, com uso de IA vai tirar o robô de dentro do médico e tornar a medicina mais voltada para o lado humano.

No próximo artigo vamos dar mais um passo na discussão de IA e saúde, abordando alguns aspectos onde a IA não parecia, no primeiro momento, ter aplicabilidade, como na psiquiatria. Engano. A IA poderá permear toda a medicina.

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*Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.