Recorrendo a um dos bordões mais usados pelo petista Luiz Inácio Lula da Silva, é possível afirmar que nunca antes na história, a defesa da democracia decidiu uma eleição presidencial como aconteceu desta vez.
Convencendo adversários e arrebanhando até os apoios mais improváveis, Lula conseguiu montar uma ampla aliança de partidos e personalidades atraídos muito mais pelas ameaças do presidente Jair Bolsonaro às instituições e os riscos às conquistas democráticas do que propriamente pela admiração ao candidato petista.
“Lula mostrou que vai reconciliar o País, que será o presidente de todos os brasileiros e isso foi decisivo para sua vitória. O País está cansado de tanto ódio, de tanta divisão”, afirma ao NeoFeed o advogado e líder do Prerrogativas, Marco Aurélio de Carvalho, um dos principais articuladores dos encontros que aproximaram o ex-presidente de figuras em diferentes estratos da sociedade.
E, embora ainda seja muito cedo para avaliar o lugar que este terceiro mandato de Lula terá na história, sem medo de errar é possível afirmar que o resultado deste domingo coroou uma das mais hábeis costuras políticas que o país já assistiu desde a vitória de Tancredo Neves no então colégio eleitoral, em 1985, e que pôs fim a 21 anos de ditadura militar.
Alavancada por quatro anos de uma administração que isolou o país internacionalmente e que se omitiu em relação a Covid-19, o ex-presidente Lula reuniu apoios e aliados e se consolidou como a principal via de enfrentamento aos retrocessos bolsonaristas.
Um trabalho que começou rompendo resistências com os tradicionais aliados da esquerda e que chegou ao dia da votação no segundo turno, amparado em um arco de partidos e ideologias que vão do centro ao centro direita, liberais e conservadores. Dos primeiros encontros com Guilherme Boulos – convencido a abrir mão da candidatura presidencial para apoiar Lula – a escolha de Geraldo Alckmin para vice na chapa.
A aproximação com Alckmin, que começou no primeiro semestre do ano passado quando emissários de ambos os lados sugeriram ao ex-presidente o nome do ex-governador e, ao mesmo tempo levavam ao ex-tucano as mensagens da receptividade de Lula, foi a principal jogada da candidatura.
Não só porque, no entender de analistas políticos e acadêmicos, retirou vitalidade e argumentos da chamada terceira via, mas por ter deixado muito claro que acima de qualquer objetivo, nesta campanha, estava o de derrotar Bolsonaro.
“O PT foi convencido de que acima de qualquer tipo de platitude ideológica, estava o objetivo de derrotar Jair Bolsonaro e eleger Lula”, argumenta ao NeoFeed o cientista político e professor Carlos Melo.
Para o segundo turno chegaram a senadora Simone Tebet (MDB-MT), candidata à presidente derrotada. Ela se juntou a ex-senadora Marina Silva, e ao deputado André Janones (Avante) que também desistiu de sua candidatura presidencial. Janones não só aderiu e apoiou Lula, como foi o responsável pelo enfrentamento com o bolsonarismo nas redes sociais, deu dinamismo e força às mídias petistas.
Na reta final da campanha se somaram também o ex-presidente José Sarney e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que, no primeiro turno dera uma declaração um tanto quanto tímida. Dessa vez, antes do segundo turno, gravou uma mensagem declarando seu apoio e voto em Lula. Economistas como Armíno Fraga e Pérsio Arida, símbolos do mercado financeiro, também embarcaram nessa onda democrática.
Mas, se Lula teve méritos nessa estratégia, o governo Bolsonaro, segundo o professor Sérgio Fausto, diretor executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso, ajudou a perceber que o “patrimônio comum”, construído pelas forças democráticas nos últimos 40 anos (considerando as eleições diretas para os governos estaduais em 1982 que foram um passo decisivo para o fim do regime autoritário em 1985), estava ameaçado.
“O sentimento de ameaça levou a que se abrisse um campo de interlocução suprapartidário na sociedade civil. Quebraram-se barreiras que se haviam erguido nos anos de polarização entre PT e PSDB), explica Fausto ao NeoFeed.
Se no primeiro ano do governo bolsonarista já era possível perceber a falta de compromisso democrático e o desrespeito às instituições, a noção exata da ameaça autoritária de Bolsonaro se tornou mais do que clara na pandemia da Covid-19 que custou a vida de mais de 600 mil brasileiros.
Naquele momento, diante da falta de rumo na condução da pandemia pelo governo federal, começava a se consolidar na sociedade, independentemente de ideologias, que, acima de tudo, qualquer projeto político deveria aglutinar as forças democráticas no País, de maneira que houvesse condições de impedir um novo mandato para Jair Bolsonaro. E, apesar de muito se falar em terceira via, o tempo mostrou que esse nome era o de Lula.
Segundo Fausto, nos protestos e na resistência contra Bolsonaro, também permitiram que renascesse um desejo, uma aspiração de “unidade na diversidade” que não se tinha desde a luta contra o regime autoritário.
“Lula teve o mérito, ao escolher Geraldo Alckmin como vice, de mostrar sintonia com esse novo ‘espírito do tempo’, conferiu densidade eleitoral ao desejo de “unidade na diversidade”, explica Fausto.
Ele acrescenta que Lula, diferentemente do que já ocorreu em momentos passados de sua carreira, deixou claro ser um candidato que cruza fronteiras religiosas, de classe, de raça etc., dando consequência política ao movimento que nasceu e se fortaleceu na sociedade.
“Concentramos esforços em mostrar Bolsonaro como um candidato desumano e desonesto e apontar o risco que ele representa para a democracia”, disse Tebet ao NeoFeed. Mas, se Lula ao escolher Alckmin mostrou sintonia com os anseios da sociedade, o ex-governador de São Paulo, por sua vez, conseguiu amenizar desconfianças que ainda pairavam sobre o PT, principalmente, em relação à política econômica.
Alckmin, mais do que um candidato a vice, passou a encarnar o papel de fiador do compromisso com a estabilidade, com a continuidade das reformas e, mais do que tudo, com a responsabilidade fiscal.
O ex-governador também abriu portas ao PT em setores resistentes como o agronegócio e, apesar de o próprio Lula sempre dizer que durante seu governo “os ricos, os empresários e banqueiros” não perderam dinheiro, o governo de Dilma Rousseff, que o sucedeu, não deixou boas lembranças junto ao PIB.
“Tancredo construiu esse entendimento para superar o governo autoritário que suprimiu a democracia. Lula conseguiu esse acordo para afastar as ameaças a democracia, unindo o antibolsonarismo”, observa o cientista político Antônio Lavareda ao NeoFeed.
Na ecumênica relação de personalidades que pediram voto para Lula e trabalharam para que ele vencesse a eleição estão aliados que haviam rompido com o PT e, pelo menos, cinco ex-ministros do STF, incluindo o relator do mensalão, Joaquim Barbosa, o ex-senador Cristovam Buarque. “Lula trouxe um clima de confiança, de reconciliação e aprendeu com seus erros. Estou esperançoso”, disse Cristovam.
Interlocutores de Lula também apontam que o próprio ex-presidente, em busca de amenizar a desconfiança do mercado financeiro e do PIB, já sinalizou à centro-direita, apontando que o partido não tem como governar apenas com as bases petistas e da própria esquerda e, sempre que pode, repete que seu governo será do povo. Eleito hoje, Lula se prepara para costurar um governo que consiga espelhar todas as forças que o apoiaram para derrotar a extrema direita, tirando Jair Bolsonaro do Palácio do Planalto.
Um governo que, como bem mostraram os últimos movimentos de Lula terá como personagens centrais Simone Tebet, Marina Silva, o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles, e André Lara Resende que vem ganhando protagonismo no entorno de Lula em um grupo que também conta com economistas como Guilherme Mello e Gabriel Galipolo.
Lara Resende, um dos pais do Real, tem conversado com Lula sobre pontos de uma política econômica que tenha condições de atender às imensas demandas sociais, gerar investimentos, mantendo o equilíbrio fiscal.
Meirelles, por sua vez, tem buscado garantir que o Lula de um terceiro mandato, será o Lula do seu primeiro governo que “deu muito certo” e lembrou do evento na semana passada no Teatro Tuca, da PUC em São Paulo, onde, ao lado de Persio Arida, assinalou a importância de que o ex-presidente anuncie um programa de responsabilidade social e fiscal.
“O país precisa crescer para gerar empregos. E, para isso, precisamos ter estabilidade fiscal, uma queda da inflação e dos juros. Tudo começa com a austeridade fiscal”, afirmou Meirelles no evento.
Lula, porém, chegou à vitória sem apresentar as medidas concretas que tanto o empresariado e o mercado financeiro lhe cobraram durante toda a campanha. Mas assegurou que haverá estabilidade, previsibilidade, credibilidade e confiança capazes de atrair investimentos que estimulem a retomada do crescimento.