A estratégia do futuro governo Lula para recolocar o Brasil no cenário internacional dará importância inédita a uma organização pouco conhecida, inspirada em um tratado assinado no governo de Ernesto Geisel, criada na gestão de Fernando Henrique Cardoso, cuja sede atual foi inaugurada em Brasília pelo vice-presidente bolsonarista Hamilton Mourão.
Por meio dessa entidade, o Brasil deve dar destaque a algumas de suas principais propostas para o combate à mudança climática e à retomada de projetos de integração regional, afirmam auxiliares de Lula.
Ao anunciar, após eleito, que pretende, já no começo do governo, realizar no país uma reunião de presidentes da região amazônica, Lula já tinha em mente um projeto de sua equipe para dar mais força à discreta Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), entidade com atuação técnica que inclui desde a cooperação regional no monitoramento por satélite da Amazônia e proteção a índios isolados até acordos de financiamento para ações para exploração sustentável da floresta.
Operando com habilidade, com alternância na presidência e um diretor-executivo experiente, o diplomata brasileiro Carlos Alfredo Lazary Teixeira, a entidade manteve relações de trabalho intensas até com o governo de Nicolás Maduro na Venezuela, em pleno governo Bolsonaro.
“O Tratado de Cooperação Amazônica pode funcionar como o IPCC, o painel internacional de mudanças climáticas, que reuniu o conhecimento antes disperso sobre o tema e deu direção aos esforços para enfrentar o problema”, disse ao NeoFeed o ex-ministro do Meio Ambiente Rubens Ricupero.
Quando jovem diplomata, Ricupero auxiliou o então Ministro de Relações Exteriores, Azeredo da Silveira, a costurar o tratado com sete países vizinhos da região, como forma de dar uma resposta à crescente preocupação internacional com a Amazônia e com o meio ambiente, e evitar o isolamento do Brasil no continente, em meio a disputas com Argentina em torno de Itaipu.
O Tratado teve pouco efeito prático nos primeiros anos, mas o cenário mudou, com o tema da mudança climática em alta, na agenda dos Estados Unidos; projetos de “economia verde” considerados prioritários pela China na relação bilateral com o Brasil; além de iniciativas na Europa para ações contra o aquecimento global e restrições a produtos e serviços causadores de emissões de carbono.
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A equipe de Lula vê essa articulação dos países da região amazônica como forma de refundar o projeto de integração sul-americana em bases técnicas, e definir projetos de cooperação capazes de receber apoio financeiro e político de parceiros como os EUA, a China e a União Europeia – americanos e europeus já têm projetos com a OTCA, e estes últimos financiaram a reforma do edifício-sede, em Brasília, que, concluída em 2020, ganhou placa comemorativa assinada por Hamilton Mourão.
A organização não se limita à questão climática e ambiental, para a qual tem apoio financeiro do governo alemão: os países do grupo negociam, atualmente, um acordo de regulação da navegação fluvial que integrará as autoridades da região no controle fiscalização do tráfego de embarcações nos rios amazônicos, com reflexos para o custo dos fretes, o policiamento contra o crime organizado, a segurança de passageiros e carga, o turismo e os investimentos na infraestrutura de transporte dos países envolvidos.
A organização não se limita à questão climática e ambiental. os países do grupo negociam, atualmente, um acordo de regulação da navegação fluvial
Na confortável sede da organização, em Brasília, enormes telas de vídeo transmitem imagens de satélite da região amazônica, capazes de mostrar desde a formação de tempestades e territórios sujeitos a possíveis inundações até locais de invasão de terra indígena por mineradores ou madeireiros ilegais.
Projetos de cooperação em todas essas áreas permitem treinamento e compartilhamento de tecnologia do INPE com órgãos de países como a Bolívia, com potencial de aumentar eficácia do monitoramento da região via satélite.
Na reunião a ser realizada no primeiro ano de mandato, Lula quer negociar com os governantes vizinhos projetos prioritários de proteção ao meio ambiente, combate ao desmatamento provocador de emissão de gases de efeito estufa e iniciativas de “economia verde”, capazes de dar alternativas para geração de emprego e renda na região.
Com a nomeação do embaixador Mauro Vieira para o ministério, Lula deve indicar seu ex-chanceler, Celso Amorim, para a Secretaria de Assuntos Estratégicos, abrigando-o no Palácio do Planalto em função semelhante à que teve o professor Marco Aurélio Garcia em seus primeiros mandatos, de conselheiro e emissário para conversas com outros líderes de governo.
Vieira já foi ministro, tem grande experiência em postos importantes e é disciplinado e discreto, tido em Brasília como habilidoso politicamente. Sua nomeação indica que ficará com o próprio Lula e, em segundo plano, Amorim, o protagonismo das ações da diplomacia.
Revogaço e Papa Francisco
A equipe de transição deixou, para o novo governo, uma lista de medidas tomadas na gestão de Jair Bolsonaro, muitas vezes, aliás, sem amparo no direito internacional, como o rompimento de relações com a Venezuela de Maduro e a saída unilateral, por decreto, da Unasul, que serão canceladas em um “revogaço” logo após a posse. Cogita-se também reverter iniciativas como a nomeação de integrantes da Polícia Federal para postos em embaixadas, decidida nos meses finais da gestão Bolsonaro.
No combate à pobreza, a África terá destaque, e o presidente eleito já comentou que desejaria uma aliança com o Papa Francisco, em um programa global de combate à fome. O próprio Lula falou de seu interesse em trabalhar com o Papa, ao ter sua primeira conversa - por telefone - com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante a campanha.
No combate à pobreza, a África terá destaque, e o presidente eleito já comentou que desejaria uma aliança com o Papa Francisco, em um programa global de combate à fome
Só após a posse, porém, a equipe de Lula deverá detalhar seus projetos para reativar embaixadas e o programa de apoio à sustentabilidade alimentar na África, que farão parte do que um dos integrantes da equipe de transição, o ex-ministro e ex-governador Cristovam Buarque chama de “retomaço”, ao lado do “revogaço”.
“Temos de retomar muito do que foi feito antes”, defende o ex-governador e ex-ministro Cristovam Buarque, que participou da equipe de transição. “A Agência Brasileira de Cooperação (ABC) fez um bom trabalho na África, e foi desmontada; foi um erro fecharem embaixadas no continente, o custo para o Itamaraty não é alto.” O futuro governo deve reavaliar e buscar a retomada de projetos de apoio da Embrapa à agricultura nos países africanos.
Uma das grandes dificuldades da ação do Brasil na África e em pequenos países do Caribe onde também se abriram embaixadas, porém, foi a falta de recursos para atender às demandas dos governos locais (como apoio a obras de infraestrutura) suscitadas pela presença diplomática.
A equipe não tem, ainda, resposta para esse desafio, hoje mais difícil devido à ostensiva presença econômica da China nesses países, com farto financiamento, dentro de seu projeto de Nova Rota da Seda. Os chineses, entre 2000 e 2020, financiaram cerca de US$ 160 bilhões no continente e, só em 2020, fez investimento direto superiores a US$ 4 bilhões, o dobro do investido pelos EUA.
Lula pretende buscar relações equidistantes entre as duas grandes potências mundiais em disputa por maior influência mundial, China e Estados Unidos, como deixou claro Mauro Vieira. Em sua primeira entrevista após anunciado seu nome, Vieira disse esperar uma relação “intensa, produtiva”, mas “equilibrada, soberana” com esses países, com os quais explorará “todas as possibilidades de cooperação”, sem alinhamentos automáticos, “dentro do interesse nacional”.
Críticos da diplomacia lulista, como Ricupero, cobram do novo governo uma agenda de projetos e prioridades e temem que, na prática, o novo governo busque o que definem como “antiamericanismo”, uma posição de confronto com as posições do governo dos EUA nas organização internacionais.
Não é, porém, o que dizem os auxiliares próximos de Lula, que lembram o esforço de cooperação com o então presidente George W Bush para disseminar a produção de etanol combustível no Caribe – frustrado, entre outras razões, pela ação regional do então presidente venezuelano Hugo Chávez.
Críticos da diplomacia lulista, como Ricupero, cobram do novo governo uma agenda de projetos e prioridades e temem que, na prática, o novo governo busque o que definem como “antiamericanismo”
Em conversas que teve com especialistas, alguns dos quais não incorporados ao futuro governo, Lula ouviu também cobranças e críticas pela falta de um plano claro de integração regional adaptado às novas condições mundiais, com a paralisação de entidades multilaterais, disputas entre grandes atores como China e Estados Unidos e agravamento das crises políticas e econômicas em países da vizinhança.
Um ponto ainda sem consenso na equipe de governo de Lula é o que fazer com as negociações avançadas para o Brasil integrar a OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que reúne as maiores economias mundiais do Ocidente.
É uma decisão que extrapola a diplomacia e envolve também a equipe econômica, onde há auxiliares de Lula e do vice-presidente Geraldo Alckmin que temem reação negativa do mercado no caso de retrocesso do processo de adesão.
Segundo um dos participantes da discussão, a adesão limitaria o uso de tecnologias e processos sujeitos a rígida proteção de propriedade intelectual e fecharia as portas para projetos acalentados pela equipe econômica de Lula para uso de compras governamentais como promotor de negócios e empresas nacionais. Não há pressa, no entorno de Lula, para decidir os rumos dessa negociação.
Já o acordo entre Mercosul e União Europeia, cuja aprovação no Brasil está paralisada, é visto como uma oportunidade de estreitar laços com os europeus, como alternativa a dicotomia China-EUA. Mauro Vieira já deu indicações da solução mais provável: uma reabertura das conversas, para atender a preocupações dos europeus em matéria de proteção ao meio ambiente e combate à mudança climática.
Em troca dessa reabertura, membros da equipe de Lula têm expectativa de maior flexibilidade para proteção de indústrias do Mercosul e menor protecionismo agrícola dos europeus, tema atropelado pela pressa em fechar um acordo com os europeus, por parte do então governo de Maurício Macri na Argentina.
O tema deve ser alvo de conversas ainda em janeiro com o presidente argentino Alberto Fernandes, o primeiro a receber a visita oficial de Lula, aproveitando a ida a Buenos Aires para a reunião da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e caribenhos (Celac).
Nessa reunião, os auxiliares de Lula esperam também que se discuta uma estratégia para lidar com governantes autoritários na vizinhança brasileira, como o governo de Daniel Ortega.
O Brasil, ao mesmo tempo em que defenderá a posição tradicional de não ingerência em assuntos internos dos países, deve operar como mediador entre aliados incondicionais de Ortega, como Cuba, Venezuela e Bolívia, e governos, como o do esquerdista Gabriel Boric, no Chile, que pressionam por medidas do grupo para cobrar maior respeito aos direitos humanos em países da região, especialmente a Nicarágua.
Mudanças no cenário global impedem a mera repetição da ”diplomacia altiva e ativa” de Lula e Amorim nos primeiros mandatos
Em conversas reservadas, participantes da equipe de transição próximos ao PT e a Lula garantem que o novo governo está consciente das mudanças no cenário global, que impedem a mera repetição da ”diplomacia altiva e ativa” de Lula e Amorim nos primeiros mandatos.
Ao lado desses dois adjetivos, o novo governo terá de buscar um terceiro: a diplomacia “criativa”, para projetar o país equilibrando-se em um mundo de disputa entre as duas maiores potências globais, guerra imprevisível na Europa, incertezas na economia e desmonte das organizações multilaterais que abriam espaço a atores como o Brasil.