No fim do ano passado, o empreendedor Fabricio Bloisi, fundador da Movile, fez uma declaração surpreendente durante um evento de startups. Questionado sobre a avaliação privada de sua empresa, ele não saiu pela tangente. “Não estou preocupado com isso, mas sim em criar uma empresa que cresça rápido e vá valer entre US$ 10 bilhões e US$ 30 bilhões”, disse o empreendedor. “Já valemos mais de US$ 1 bilhão há dois anos.”
No ano passado, o aplicativo de transporte 99 e a fintech Nubank foram as primeiras empresas do mercado brasileiro avaliadas acima de US$ 1 bilhão. Tecnicamente, elas se transformaram em unicórnios, jargão do setor para se referir a empresas bilionárias. Naquela tarde, como se quisesse que isso não fosse notado, Bloisi anunciava à plateia que já era um unicórnio muito antes disso.
Poucos dias depois, em meados de novembro, o aplicativo de entregas iFood, da qual a Movile é controladora, recebia um aporte de US$ 500 milhões e entrava para o rol de startups brasileiras que valem mais de US$ 1 bilhão. Hoje, a Gympass, uma espécie de Netflix das academias de ginásticas, também já pode ser considerada um unicórnio, depois de receber investimento do fundo japonês Softbank.
“O ano passado foi o que recebemos a maior quantidade de aportes na área de tecnologia do Brasil, com valores que chegavam a bilhões de reais investidos em startups”, afirmou Bloisi, em entrevista exclusiva ao NeoFeed. “Esses são alguns dos dados que provam que é possível criar empresas globais e muitos grandes de tecnologia e internet em nosso país.”
Nesta entrevista, Bloisi conta sua visão de como ele transformou a Movile, que surgiu em 1998 como uma empresa de ringtones e de mensagens de texto (SMS), em uma gigante que atinge 300 milhões de usuários mensais ao redor do mundo, com escritórios na Argentina, Colômbia, Estados Unidos, França, México e Peru e conta com 2,3 mil funcionários.
Sob seu controle estão a PlayKids, a Wavy, o Movile Pay, que nasceram dentro da Movile, e a iFood, Sympla, MapLink e Zoop, que têm investimentos da empresa. Os investidores são o fundo sul-africano Naspers e o Innova Capital, que tem o bilionário brasileiro Jorge Paulo Lemann entre os cotistas. “Eu cometi muitos erros, e inclusive incentivo nosso time a errar. Se não erramos, não estamos arriscando o suficiente”, diz Bloisi.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Durante muito tempo, a Movile, que tinha outro nome nos anos 2000, foi uma empresa pequena, com baixo faturamento e poucos funcionários. A partir de 2009, no entanto, a empresa começou a mudar e a crescer de forma acelerada. O que possibilitou esse salto?
Sempre tivemos a vontade e o sonho grande de nos tornarmos uma empresa global e, para isso, procuramos sempre antecipar tendências. Com o surgimento dos smartphones e o desenvolvimento da economia dos aplicativos, reinventamos nosso modelo de negócios e passamos a atuar colocando os clientes no centro das operações, oferecendo os serviços que eles procuravam. Estudamos muito, aprendemos com os melhores do Vale do Silício e assim nasceu Playkids e a nossa estratégia de investir no iFood, por exemplo. A história da Movile tem acompanhado o crescimento das tecnologias móveis e avançamos a passos largos para sermos referência em inteligência artificial e machine learning na região. Eu acredito fortemente que trilhões de dólares irão para as mãos das empresas inovadoras nos próximos anos e são essas empresas que trarão verdadeira disrupção mercado.
Uma das metas da Movile é atingir 1 bilhão de clientes até 2020? Você acredita que vai conseguir alcançar essa meta?
Sim, acredito. Estamos trabalhando fortemente todos os dias para que isso aconteça, de forma acelerada, apostando nas tecnologias mais avançadas para garantir escala e seguimos nutrindo sonhos grandes e ambiciosos.
"O iFood tem mais de 17 vezes o tamanho do segundo colocado na região, uma rede com mais de 66 mil restaurantes em 500 cidades"
Até 2012, a Movile era uma empresa que apostava em conteúdo para celulares, como SMS e ringtones. O iFood foi um dos primeiros investimentos fora dessa área. Por que resolveu investir em um aplicativo de entregas de comida?
Na ocasião, sentimos a necessidade de ir para outros mercados, e diversificar as operações também além da Playkids. Investimos em um aplicativo de entrega de comida porque, na época, esta era uma oportunidade de mercado onde enxergávamos grande potencial, e, de fato, essa decisão mostrou-se acertada ao longo dos anos.
O iFood é hoje o maior negócio na qual a Movile investe. No ano passado, o aplicativo de entregas de comida recebeu US$ 500 milhões, até então o maior aporte de um startup na América Latina. Qual a ambição com o iFood em um momento em que a concorrência, mesmo no mercado brasileiro, começa a ficar mais acirrada, com empresas como Rappi e Loggi?
A concorrência fortalece o mercado. Mas de outro lado temos a confiança em dizer que o iFood atingiu um patamar único no mercado brasileiro por algumas razões: entender profundamente o consumidor, usar tecnologia para antecipar suas demandas e especialmente por criar uma rede capaz de oferecer a melhor experiência possível. O uso de inteligência artificial e ciência de dados permitem grandes avanços nessa área e consolidam nossa posição de liderança, além de permitir trazer aos clientes o que há de mais inovador na região. Hoje temos mais de 17 vezes o tamanho do segundo colocado na região, uma rede com mais de 66 mil restaurantes em 500 cidades. Mais do que dobramos de tamanho a cada ano e estamos testando tecnologias para melhorar cada vez mais a experiência do cliente. Nosso maior objetivo atualmente é expandir nossa área de inteligência artificial, trazendo para a operação os melhores talentos para seguir inovando.
A Movile tem participações em diversos negócios, como o PlayKids (educação), Sympla (tíquetes), Zoop (fintech), Rappido (delivery e marketplace), entre outros. Como faz para administrar todos eles?
Cada empresa é autônoma com seus times e trabalha em formato de ecossistema. O ambiente de trabalho é aberto para facilitar a troca de informações com pessoas e empresas diferentes e é por meio dessa troca de experiências entre nossos colaboradores e a confiança no trabalho em time que sempre estimulamos e conseguimos ter sucesso com esse modelo de administração e, consequentemente, melhorar a experiência dos nossos usuários.
A Movile já recebeu aportes que somam US$ 395 milhões, segundo o Crunchbase. Há espaço para novos aportes ou agora chegou a hora de crescer organicamente?
O Grupo Movile está sendo cada vez mais notado dentro e fora do país e esses aportes continuam vindo de diversas fontes, reconhecimento que conseguimos depois de muito trabalho e dedicação. Mas, no momento, não temos algo concreto planejado ainda para os próximos meses.
Quais os próximos passos da empresa? Há planos de entrar em novas áreas?
Investir cada vez mais em inteligência artificial, logística e pagamentos para melhorar o que já temos e para enriquecer ainda mais a qualidade da experiência das pessoas que utilizam nossos aplicativos. O mercado agora pede por mais inovação e é isso que estamos planejando trazer para o grupo futuramente.
Você aborda muito a questão do fracasso. Diz que na Movile testa muitas ideias e as que não dão certo são abandonadas rapidamente. Qual foi o seu maior erro e o que aprendeu com ele?
Eu cometi muitos erros, e inclusive incentivo nosso time a errar. Se não erramos, não estamos arriscando o suficiente. Errar, ajustar, tentar de novo é a nossa forma de aprender e evoluir rápido. Hoje acredito que meus maiores erros estiveram em não ser tão agressivo em metas em certos casos, retardando o desenvolvimento de alguns projetos por exemplo. Mas tenho muitos erros: perdi dinheiro em muitas apostas, não fui rápido o suficiente, erramos em produtos, erramos em gente, todo o tempo. Espero errar ainda mais no futuro e mais rápido, e também crescer e avançar ainda mais rápido.
Em 2008, você defendeu a tese de mestrado “Proposta de modelo para geração de valor substancial e estratégia de crescimento acelerado em startups”, pela FGV-SP. Ela estudava como as startups do Vale do Silício cresciam rápido. O que o Vale do Silício tem que o Brasil não tem? E o que o senhor aproveitou desse estudo para implantar na Movile?
Acredito que a minha pós-graduação foi fundamental para o crescimento da Movile. Eu percebi que não tínhamos material suficiente sobre crescimento de startups e por isso estudei como as empresas internacionais crescem, inovam, a estratégia de consolidação delas e pude aplicar tudo isso no crescimento da Movile. A nossa ida para o Vale do Silício nos deu a oportunidade de observar como isso ocorre na prática, já que foi lá que tivemos os booms famosos de startups de tecnologia e nos deu mais ideias para nos inspirarmos. Depois do meu mestrado na FGV, fiz cursos em Stanford e agora estou entrando em um curso em Harvard. Acho que o mais importante é estudar o tempo todo, pois é isso que me mantém capaz de manter uma empresa que está sempre mudando e inovando.
E como o Vale do Silício tem ficado para trás na questão de inovação atualmente, nós temos procurado estudar mais o mercado chinês, onde vemos um grande potencial para o segmento mobile. Esse cenário mais próximo da nossa realidade tem chamado nossa atenção e pretendo continuar observando-o de perto.
"O ano passado foi o que recebemos a maior quantidade de aportes na área de tecnologia do Brasil"
Você diz que não está preocupado com que sua empresa seja reconhecida como um unicórnio (empresas que valem mais de US$ 1 bilhão). Na verdade, seu alvo é ser uma empresa muito maior, que possa atingir uma avaliação entre US$ 10 bilhões e US$ 30 bilhões. Hoje, existem startups com valor acima de US$ 1 bilhão no Brasil, como a Nubank, Gympass, a 99 e o próprio iFood. Mas por que o Brasil tem tão poucas empresas bilionárias?
Eu acho que os empresários brasileiros precisam agir com mentalidade global. Culpando somente o país e o estado da economia (que têm sim seus problemas), esquecem também dos próprios erros que cometem em seus negócios. Muitos focam somente no mercado interno e não planejam estratégias que podem ter alcance global, ficando reféns de suas próprias limitações. Para resolver isso, é preciso pensar grande e focar em construir empresas globais, não precisamos ter síndrome de inferioridade. Nós podemos e precisamos ir além.
Quanto ao diagnóstico, podemos ver que todo o potencial disruptivo da tecnologia nos mostra que tudo está sempre mudando e os bilhões de dólares hoje investidos em algumas empresas irão mudar de mãos e irão abrir espaço para outra empresas mais novas e inovadoras no futuro. Muitos investidores de fora têm olhado para a América Latina e isso me faz pensar que a tendência dos próximos anos será de muito crescimento.
Ao mesmo tempo empresas como iFood, Nubank, Gympass e 99 receberam aportes recordes. O Brasil está começando a chamar a atenção dos grandes fundos de venture capital global. O mercado brasileiro está entrando em uma nova fase?
Sim, e é preciso continuar pensando grande. O ano passado foi o que recebemos a maior quantidade de aportes na área de tecnologia do Brasil, com valores que chegavam a bilhões de reais investidos em startups. Esses são alguns dos dados que provam que é possível criar empresas globais e muitos grandes de tecnologia e internet em nosso país.
Apesar de estudar o Vale do Silício, o modelo de negócio da Movile me parece muito mais parecido com empresas chinesas, como a Tencent. Por que você considera o modelo chinês mais interessante do que o americano?
Queremos aprender com todos os cases de sucesso e vemos a China como um mercado maduro e com grande potencial. Também vejo que temos muitas características em comum com o mercado chinês, então atualmente temos nos inspirados muito neles por conta dessas semelhanças. E concordo que hoje somos mais parecidos com empresas chinesas que americanas.
A China já está à frente dos EUA no quesito inovação?
Sim, considero que a China está à frente dos EUA. As empresas chinesas têm investido em aplicativos que facilitam a vida dos usuários unindo vários serviços em um lugar só, como acontece com o WeChat e o Alipay. Eu acredito que esse seja o futuro do mobile e, em comparação, eles estão conseguindo criar empresas muito maiores e com tecnologias muito mais avançadas.
"Considero que a China está à frente dos Estados Unidos"
Muitos jovens têm ideia de montar uma startup para vendê-la por milhões ou bilhões de dólares logo depois. O que você diria para esses empreendedores que sonham em ficar ricos e desprezam toda a dificuldade para construir uma empresa que tenha valor e seja duradoura?
Eu diria que não é fácil. Na minha jornada pessoal, eu fiz a faculdade, participei de uma empresa júnior e foi a partir do meu mestrado que comecei a entender como deveria gerenciar uma startup com sucesso. Precisei de anos de estudo para que a Movile se tornasse uma empresa grande e com alcance global como ela é hoje. Além disso, é preciso muita paixão - muita coisa vai dar errado, e sem estar apaixonado pela idéia, o normal é desistir no caminho. É uma jornada incrível, para quem entende que serão muitos anos, muito trabalho, muitas frustrações, mas também muita recompensa para quem for apaixonado pelo caminho. Não é um caminho para ganhar dinheiro rápido nem fácil.
Você já se declarou grande fã de fundador da Microsoft Bill Gates e do empresário brasileiro Jorge Paulo Lemann, do 3G Capital. O que aprendeu com eles?
Desde pequeno, eu admirava muito o Bill Gates. Ele foi a primeira pessoa a me inspirar e me fazer ter esse desejo de empreender, ter meu próprio negócio e atingir a vida de milhares de pessoas. Assim que tive a oportunidade, resolvi arriscar e criar o primeiro modelo que viria a se tornar a atual Movile. Bill Gates me inspira por ter iniciado a empresa na faculdade e já pensando muito grande. Já o Jorge Paulo Lemann, me inspira muito por todas as coisas que conseguiu criar no Brasil, mesmo com as dificuldades do mercado, e se destacou globalmente. Sempre nos incentivando a pensar e a sonhar grande, nos mostrando que é possível sim brasileiros construírem negócios com grande potencial global.
Você também tem o sonho de viajar para o espaço. Há várias empresas, como as de Jeff Bezos, Elon Musk ou Richard Branson, que devem começar a levar turista para o espaço. Já comprou o seu tíquete?
Pretendo viajar na Blue Origin, a empresa do Jeff Bezos, que terá seu primeiro vôo com passageiros no final de 2019. Acredito que em 2020 serei um passageiro.
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