As transformações da economia global no século 21 foram acompanhadas de perto pelo economista Otaviano Canuto desde que se mudou em 2004 para Washington, nos Estados Unidos, para assumir o cargo de diretor-executivo do Banco Mundial.

Doutor em economia, com passagem anterior pelo Ministério das Finanças do governo federal, Canuto não retornou mais ao País. Passou pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), voltou ao Banco Mundial para ocupar a vice-presidência e depois foi diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Nesta entrevista ao NeoFeed, Canuto – que hoje é membro sênior do think-tank Policy Center for the New South – usa sua ampla experiência acumulada em órgãos multilaterais para fazer uma análise minuciosa da virada macroeconômica pós-pandemia e os desafios globais daqui para frente.

Segundo ele, o processo de globalização causou um efeito positivo nos países em desenvolvimento. “O mundo ficou menos desigual, com redução de pobreza e um processo de industrialização não apenas na China, como em toda a Ásia”, diz Canuto.

No começo da década passada, porém, a migração de indústrias para o outro lado do mundo, aliado à ausência de um sistema de proteção social bem desenvolvido, alimentou o sentimento antiglobalização no Primeiro Mundo, como no Reino Unido, com o Brexit, e a ascensão de Donald Trump nos EUA.

Canuto dedica especial atenção aos efeitos econômicos da pandemia. “Não podemos entender o que está acontecendo no mundo sem levar em conta a simultaneidade de choques de 2020 para cá, que configuram uma tempestade perfeita”, diz.

A pandemia, segundo ele, causou um impacto dramático do lado da oferta e de composição da demanda. O impacto inicial mais pronunciado foi de retração de oferta, por causa dos confinamentos obrigatórios: “A transferência de ajuda dos governos para a população gerou um aumento brutal na poupança não planejada, causando grande elevação da dívida pública no mundo inteiro.”

Por outro lado, as rupturas das cadeias globais de valor, em especial entre 2020 e 2021, levaram a um estrangulamento na produção e na disponibilização de produtos. Quando a situação começou a se normalizar, Canuto aponta a invasão da Ucrânia como novo evento, causando choque de preços de alimentos e de energia.

Os fenômenos climáticos adversos, segundo ele, também se tornaram cada vez mais frequentes, contribuindo para essa tempestade perfeita. “Têm sido comum ciclos de secas seguidas de inundações no Brasil, Argentina, Europa e EUA”, observa.

Para entender a visão de Canuto desse processo, o NeoFeed separou a seguir os principais trechos da entrevista em blocos temáticos, abordando as quatro ameaças causadas pelos choques de custos que, segundo ele, a economia global enfrentará daqui para frente, além de observações pontuais do economista sobre a China e o arcabouço fiscal brasileiro.

Mesmo à distância, Canuto admite um pessimismo com os desafios fiscais do novo governo brasileiro: “Vamos continuar tendo um saldo primário aquém do que seria necessário para estabilizar a dívida pública nos quatros anos do governo Lula.”

Ameaças à economia global

“Os efeitos desses choques de custos foram muitos mais resistentes e não temporários do que se imaginava. Isso me leva a caracterizar as quatro ameaças, ou pontos sensíveis, da macroeconomia global daqui para frente.

A primeira ameaça são os riscos associados à desglobalização e fragmentação de cadeias produtivas. Qualquer que seja o grau, esse processo está ocorrendo, com implicação de custos. O efeito agregado é o PIB global afetado pelo choque de preços.

O eixo da economia global mudou no pós-pandemia. Quando Joe Biden assumiu a presidência nos EUA ficou a expectativa de limitar a guerra comercial contra a China a segmentos ligados à segurança nacional (como semicondutores).

"Não podemos entender o que está acontecendo no mundo sem levar em conta a simultaneidade de choques de 2020 para cá, que configuram uma tempestade perfeita"

Já a reversão das cadeias de valor se mostrou custosa. A não ser que os governos comecem a colocar subsídios monstruosos, como Biden e Emmanuele Macron (presidente da França) estão fazendo, o alcance dessa desglobalização será relativo. Ou seja, se a gama de produtos estratégicos for ampliada, ficará mais difícil. A desglobalização é fonte de choque de preços, que vão crescer quanto maior for estendido esse protecionismo.

A segunda ameaça é essa mudança do regime de política macroeconômica. Pandemia, guerra na Ucrânia e mudanças climáticas, fatores combinados com volumosos recursos transferidos para setor privado, foram os responsáveis pela mudança de patamar de inflação no ano passado.

Com o benefício do olhar para trás, é possível dizer que as autoridades monetárias subestimaram a inflação – com a ideia de que era tudo temporário. De fato, com a normalização pós-pandemia, caíram os componentes dos índices de preços ou pelo menos a inflação dos bens duráveis, energia e alimentos.

Mas o contraste entre oferta e demanda de mão-de-obra continuou apertado. O mercado de trabalho, em especial nos EUA, foi afetado na pandemia pelo fenômeno da chamada "grande renúncia" – muita gente se aposentou, mudou de cidade, deixou o emprego. A menor mobilidade de mão-de-obra qualificada na pandemia causou impacto. Hoje temos salários crescendo, o que explica os juros altos e a inflação longe da meta. Ou seja, temos aperto de condições monetárias e financeiras, que jogam a atividade econômica para baixo, mas com inflação elevada.

Os dez anos de abundância de liquidez e de juros baixos não causavam problemas quando a inflação estava sob controle. Agora, mudou. Com atraso, veio uma resposta significativa. Com certeza, o “novo normal” não será com juros baixos que tivemos na década anterior. A única conclusão razoável é que continuaremos num futuro próximo no novo regime e ainda não sabemos se voltaremos ou não ao velho regime.

A terceira ameaça é a crise da dívida das economias em desenvolvimento. A rigor já havia uma trajetória de endividamento de países de renda baixa e, com a pandemia, ela explode. A situação ficou complicada porque o G20, na pandemia, suspendeu o serviço da dívida principal, mas de um ano para cá surgiu um elefante na sala: a China.

Em todo processo de reestruturação de dívida, o grosso dos credores precisa estar na mesa. O risco é um país credor admitir o perdão, mas outro que não se sentou à mesa negar e receber o valor inteiramente. Por isso que os velhos credores, os países ricos, criaram o Clube de Paris. Ocorre que a China não está no Clube de Paris e faz um jogo: esse banco é oficial, mas os juros daquele outro banco são de mercado. E a China está cobrando esses países.

Para evitar isso, no passado, foram criadas cláusula de ação coletiva: se 75% dos credores concordam com renegociação, essa se torna mandatória para 100% dos credores. As dívidas desses países no pós-pandemia não têm cláusula de ação coletiva. Essa crise é uma questão de tempo para explodir.

A quarta ameaça, ligada a fontes de choques também pelo lado de custos, é a estrada da descarbonização. Não é imaginável transitar da matriz que está aí para outra primordialmente limpa da noite para o dia, com uma oferta complicada de minerais e metais necessários para essa transição.

O lado da descarbonização acompanhando veículos elétricos é fantástico, mas a quantidade de cobre em um carro elétrico é seis vezes maior do que num carro a gasolina. Cobalto, lítio, e outros metais raros têm o mesmo problema: o custo é grande e vai incidir principalmente sobre os países mais pobres.

Gosto de usar o cobalto como caso extremo para ilustrar esse desafio: cerca de 70% das reservas conhecidas estão na República Democrática do Congo. E o processo de produção do cobalto não tem a sofisticação tecnológica da extração de petróleo, é manual, intensivo em trabalho infantil e semi-escravo. Contrataram até o Grupo Wagner, milícia russa que atua na guerra da Ucrânia, para vigiar a produção.

"O lado da descarbonização acompanhando os veículos elétricos é fantástico, mas a quantidade de cobre em um carro elétrico é seis vezes maior do que num a gasolina"

O lítio tem um processo de produção muito intensivo em água, em especial na Bolívia e no Chile – onde povos indígenas dependem dessa água para sobreviver. Portanto, um dos desafios da descarbonização são os custos elevados de extração desses minerais.

E tem ainda outro problema: as transições demográficas. Temos uma parte do mundo, rico, encolhendo a população, e outra, pobre, com gente sobrando, onde essa transição demográfica tende a crescer por causa dos efeitos das mudanças climáticas. É um desafio da humanidade.”

China

“Há 12 anos, quando estive na China representando o Banco Mundial num evento, ouvi um discurso do então presidente Hu Jintao no qual ele admitiu que o modelo do crescimento econômico chinês, de dois dígitos ao longo de três décadas, estava exaurido.

Aquele modelo era baseado em investimentos de quase 50% do PIB ao ano – algo jamais visto. A Coreia do Sul, no auge do crescimento, só atingiu 30% desse indicador. Na China, isso só foi possível com achatamento do consumo doméstico e utilização da capacidade industrial para obter saldo comercial. Então, não por acaso, a China teve nessas décadas superávits absurdos.

Hu sugeriu um rebalanceamento: mesmo que a um custo de crescimento menor do PIB, depender menos de investimento e mais de consumo doméstico. E conseguiram. No pós-pandemia, o crescimento econômico chinês deverá ser mais baixo (previsão de 5% este ano), com uma composição diferente. Na margem, até a demanda de matéria-prima vai mudar, menos ferro e mais sete minerais estratégicos, como cobre (para os carros elétricos).

Mas a lição de casa proposta pelos órgãos multilaterais foi ignorada: fortalecer o sistema de proteção social. A China é de um capitalismo selvagem de deixar vermelha a esquerda brasileira. O sistema de cobertura de auxílio-desemprego é o menor entre todos os emergentes. Não tem SUS, educação gratuita nem aposentaria. Ou o chinês poupa ou vai ter problemas quando chegar à velhice, sem falar no efeito da política do filho único, com menos filhos para cuidar dos idosos.”

Arcabouço fiscal no Brasil

“Não acho que o arcabouço fiscal, como está, seja suficiente para evitar o aumento da relação dívida/PIB. Não vejo nenhuma evolução exponencial da dívida, mas ela está longe de estabilizar. O ministro Fernando Haddad até buscou conciliar o apetite do governo de elevar os gastos com a introdução de gatilhos e freios para impedir que a dívida seja mais explosiva. Mas é evidente que, para o que está sendo previsto, mesmo com muita coisa deixada de fora, o gasto vai subir bastante.

A deterioração de saldo só não ocorrerá se a arrecadação tributária subir muito, e já estamos num patamar tributário muito elevado. Haddad falou em não aumentar as alíquotas, e sim em cortar o volume de isenções tributárias e subsídios. O que se achou que seria mais fácil - a taxação de importações de baixo valor, na saída da China - acabou retirado pelo próprio governo.

"Não acho que o arcabouço fiscal, como está, seja suficiente para evitar o aumento da relação dívida/PIB"

Mesmo que o baixo dinamismo da arrecadação tributária venha a coibir o aumento de gastos nos anos seguintes, levando em consideração os freios embutidos, vamos continuar tendo um saldo primário aquém do que seria necessário para estabilizar a dívida nos quatros anos do governo Lula. Vai ser explosivo? Não, porque não há ondas de preocupação com prêmios de risco, mas definitivamente a estabilização da relação dívida pública/PIB não deverá ocorrer.”

Juros e Banco Central

“Eu não me alinho com aqueles que acham que o Banco Central está arbitrariamente deixando os juros elevados. Se olharmos os parâmetros, como hiato do produto, expectativa de inflação e a inércia inflacionária que ainda existe, a taxa de juros poderia estar um ponto percentual mais baixa, mas não muito mais que isso.

Existe a preocupação com o arcabouço fiscal, mas estou mais preocupado com outros sinais, de o governo abrir outras torneiras. Não estou acompanhando de perto os planos do Aloízio Mercadante e do BNDES, mas espero que não seja de o banco voltar ao que era.

Bancos multilaterais, como o BNDES, devem operar não como substitutos do financiamento privado, mas como viabilizadores. Provendo financiamento e cobertura com seguros naqueles poucos segmentos de setores nos quais a aversão a risco é alta demais para atrair o setor privado. Senão acaba inviabilizando certos projetos de infraestrutura não porque o projeto andando não é viável comercialmente, mas porque tem pedaços da cadeia de investimentos que são de bens de alto risco que o setor privado não quer encarar.

Portanto, é bom focar em infraestrutura, mas a maneira de catalisar o envolvimento privado não pode ter percepção de risco regulatório nem de mudança da regra do jogo – como o governo tentou fazer com saneamento.”