O empresário Laércio Cosentino afastou-se do dia a dia da Totvs, a companhia que ele criou e moldou, em novembro do ano passado, quando concluiu o processo de transição na desenvolvedora de software, e passou o cargo de CEO para Dennis Herszkowicz.
Desde então, ele não se envolve mais na parte operacional, dedicando-se apenas à presidência do Conselho de Administração da companhia com valor de mercado de R$ 9,1 bilhões. “Agora, vou uma vez por semana na sede da Totvs”, afirmou ele ao NeoFeed durante o Totvs Universo, evento de tecnologia que aconteceu em junho.
“Nos demais dias, passo o tempo pensando na estratégia para a Totvs e em meus outros negócios, como a Mendelics”, diz o empresário sobre a companhia de exames genéticos da qual ele é investidor desde 2012, quando a empresa foi criada.
Focada em exames genéticos que preveem doenças raras, a companhia se tornou a menina dos olhos de Cosentino pelo seu potencial de negócios que mesclam medicina e tecnologia. Além de fornecer os exames laboratoriais, ela conta com um software de inteligência artificial que compila as informações individuais com mais precisão.
Atualmente, ele é presidente do Conselho da Mendelics e dedica boa parte de seu tempo para pensar na estratégia da companhia. “Ele é muito ativo no dia a dia da Mendelics”, diz David Schlesinger, CEO e cofundador da empresa.
A atenção do empresário é mais do que compreensível. Não é de hoje que a chamada medicina personalizada é tratada como o futuro da saúde. Mais do que prever por meio de mapeamento genético as doenças que uma determinada pessoa poderá ter ao longo da vida, ela poderá influenciar em vários segmentos.
“Genética vai permear a vida e a saúde de todos no futuro. Determina desde coisas banais, como a sua tolerância a lactose ou glúten, até risco de doenças cardiovasculares, entre outros”, diz Schlesinger.
Será possível, por exemplo, prever riscos de doenças comuns como hipertensão e diabetes, e até identificar o remédio que serve para uma determinada pessoa com base no seu mapa genético.
Com um banco de dados de 50 mil pessoas que já fizeram o exame genético, a Mendelics, inclusive, pretende lançar um aplicativo e uma API para que as pessoas de sua base saibam quais os remédios elas podem tomar de acordo com seus exames genéticos. “Temos vários projetos no gatilho que serão lançados nos próximos 12 meses”, diz Schlesinger.
A entrada nos Estados Unidos e na Europa também está nos planos da companhia. Por enquanto, além do mercado brasileiro, a Mendelics atua na Colômbia, onde também tem um escritório, e vende serviços na Argentina, Chile, Peru, Equador e está entrando no Panamá. “A operação internacional já representa 10% do nosso faturamento”, diz Schlesinger.
O início de tudo
Aos 40 anos, formado em medicina pela USP e com doutorado em genética também pela Universidade de São Paulo, Schlesinger fala sobre genes, mutações e prevenção de doenças raras com naturalidade e faz qualquer leigo no assunto entender o que acontece no DNA de uma pessoa.
E foi da mente dele, quando ainda trabalhava no hospital Albert Einstein, que veio a ideia de criar a Mendelics, junção de Mendel (do biólogo Gregor Mendel) com Genetics. Ele percebeu que os preços de um mapeamento genético cairiam muito ao longo dos anos e isso possibilitaria fazer exames em grande escala.
Schlesinger explica que a tecnologia de sequenciamento de DNA que existia desde a década de 70, o método Sanger, era limitada. “Ela foi suficiente para fazer o projeto genoma que começou em 1990 e acabou em 2003. Custou US$ 3 bilhões para fazer o sequenciamento genético de uma pessoa”, diz ele. Outros projetos surgiram depois, reduzindo o custo para US$ 300 milhões.
O projeto genoma, que começou em 1990 e acabou em 2003, fez o sequenciamento genético de uma pessoa e custou US$ 3 bilhões
Mas, entre 2006 e 2007, surgiu um conjunto de novas tecnologias que envolviam químicas diferentes, para fazer sequenciamento de DNA, e novos equipamentos, com câmeras e processadores, que deram origem ao sequenciamento de nova geração. Foi essa segunda geração que permitiu fazer um genoma inteiro por US$ 300 mil em 2008.
A vantagem dessa tecnologia é que, quanto mais usada, quanto maior a escala, o exame fica mais barato. De 2008 até hoje, o custo de sequenciamento de um genoma de uma pessoa caiu de US$ 300 mil para US$ 1 mil. “Percebemos esse movimento e resolvemos montar a empresa”, diz Schlesinger.
A Mendelics começou a tomar forma em 2011, com o perdão do trocadilho, a partir da junção dos DNAs de quatro sócios: David Schlesinger, João Paulo Kitagima, André Valim e Fernando Kok. A ideia era atuar no sequenciamento genético de pessoas e detectar doenças raras, cerca de 8 mil delas, que nunca eram diagnosticadas.
Mas, em vez de mapear o sequenciamento do genoma inteiro, resolveram sequenciar o Exoma, regiões do genoma que produzem proteína. É nessa área, que ocupa 10% do total do genoma, que se concentram quase a totalidade dos 20 mil genes humanos e onde é possível identificar a maioria das 8 mil doenças raras.
Em um exame que mapeia o genoma completo a chance de diagnosticar os pacientes com doenças raras é de 60%. No Exoma, a eficácia é de 55%. “É quase a mesma coisa”, diz Schlesinger. E o preço da análise do Exoma é um quinto do cobrado para se fazer um exame de genoma completo. Atualmente, a Mendelics cobra R$ 6,9 mil por esse exame.
Os sócios da Mendelics, entretanto, não queriam fazer um laboratório. A ideia era criar uma empresa de software para vender o serviço para outros laboratórios. Mas não tinham dinheiro para isso. Montar uma companhia nesse setor requer muito capital e não era fácil encontrar um investidor que topasse tamanho risco.
Eles acreditavam tanto no negócio que, em abril de 2012, os quatro sócios pagaram os primeiros exames pilotos e mandaram para o Exterior. Investiram quase R$ 1 milhão do próprio bolso.
A ideia era validar o trabalho e mostrar para investidores que eles conseguiam fazer. Fizeram testes em dez pessoas e, deste total, fizeram o diagnóstico em seis dos dez casos. “Falei com uns 20 investidores e não estava tendo muito sucesso”, diz Schlesinger. “Precisávamos de um cheque inicial de R$ 10 milhões, o que hoje equivale a R$ 20 milhões.”
Na época, não tinham tantos fundos investindo no mercado como hoje e os que atuavam por aqui não se interessavam por uma startup de biotecnologia. A sorte, porém, bateu na porta, ou melhor, na caixa de e-mails de Schlesinger.
Uma executiva da Totvs, cuja mãe havia feito um dos testes iniciais com a Mendelics, começou a perguntar sobre o trabalho da companhia e passou a trocar e-mails com Schlesinger.
Ela ia encaminhar as mensagens para Laércio Cosentino, mas, sem querer, acabou copiando Schlesinger. “Como estava copiado, acabei entrando em contato direto. Apresentei no family office do Laércio e em um mês o dinheiro estava na conta.” Ou seja, um mês depois de inaugurar a empresa, ela já estava capitalizada.
Em 2015, entrou o fundo de venture capital Fin Health, que aportou outros R$ 20 milhões na Mendelics. “Ao todo, levantamos R$ 30 milhões, mas atualizados são mais de R$ 60 milhões captados”, diz Schlesinger.
Novos exames
Atualmente, a companhia, com 100 funcionários, faz cerca de 40 mil exames por ano e aumentou bastante a sua área de atuação nesse mercado de exames genéticos que movimenta estimados R$ 500 milhões por ano no País.
A partir de 2015, o mesmo ano em que recebeu o segundo aporte, a Mendelics passou a trabalhar com os chamados painéis genéticos. Com isso, detecta câncer de mama hereditário, imunodeficiências e doenças neuromusculares, endócrinas, hematológicas, oftalmológicas.
Em 2017, a empresa lançou o teste da bochechinha, que custa R$ 799. Feito em recém-nascidos, a partir da saliva dos bebês, é possível detectar 287 doenças raras. “Esse é o nosso exame mais direcionado para o consumidor final”, diz Schlesinger.
Os clientes são divididos entre pessoas físicas, laboratórios e hospitais, planos de saúde e indústria farmacêutica. Cada grupo representa 25% dos pedidos. “A indústria farmacêutica teve uma explosão de desenvolvimento de remédios para doenças raras e elas pagam para ter o diagnóstico”, diz Schlesinger.
“Trabalhamos com Pfizer, Biogen, Vertex. Quase todas as empresas que fazem medicamentos para doenças raras no Brasil trabalham com a gente.” Mas a disputa nos últimos anos passou a ser ferrenha.
Será possível, por exemplo, prever riscos de doenças comuns como hipertensão e diabetes, e até identificar o remédio que serve para uma determinada pessoa com base no seu mapa genético
Laboratórios como o Fleury, Hermes Pardini, Dasa e até o Albert Einstein, que comprou a Genomika, entraram nesse segmento com força total. Schlesinger diz que a Mendelics está na frente por ter testado mais as tecnologias e por fazer milhares de exames por ano.
Aliás, a base de dados faz com que a empresa tenha um poderoso Big Data. “Temos mais de 1 petabyte de informações sobre os pacientes”, diz. Compilados, eles trazem informações valiosíssimas sobre as mutações genéticas da população e também servem para aprimorar o algoritmo responsável por ajudar no diagnóstico.
“Fizemos um projeto em 2017, para a Vertex, para sequenciar todos os pacientes com fibrose cística”, diz o executivo. O plano era fazer em três anos e foi concluído em 10 meses. “O Brasil é hoje um dos poucos países do mundo em que 100% de seus pacientes com fibrose cística tem diagnóstico molecular. Estamos muito na frente do resto do mundo.” É no que Laércio Cosentino, que tem o empreendedorismo impregnado em seu DNA, aposta.
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