Pierre Lurton emana novas energias. Pode ser pelos netos, cinco nascendo no interim de dois meses. Pode ser por ter deixado a gerência do Cheval Blanc a cargo de seu ex-estagiário, Pierre-Olivier Clouet. Capaz que seja sobretudo pelo desafio de promover os próprios vinhos.
Aos 66 anos, o atual presidente do conselho de administração do Château d'Yquem (Sauternes), de Cheval des Andes (Argentina) e agora do Cheval Blanc, três domínios da LVMH, faz charme. “Estou no fim da minha carreira. Depois de 40 anos, entre Yquem, Cheval Blanc, Cheval des Andes e outras vinícolas tão grandes, precisava me ocupar melhor do meu jardim secreto”, disse ao NeoFeed.
Seu éden, nem tão escondido assim, tem nome: Château Marjosse. A propriedade do século 18 foi construída por Victor Louis, o arquiteto do Grand Théâtre de Bordeaux. Fica localizada na região vinícola de Entre-deux-Mers, reconhecida pelos brancos de Bordeaux.
Pierre nasceu a menos de um quilômetro dali. Filho de Dominique Lurton (o caçula de irmãos responsáveis pelos Bordeaux modernos), chegou a enfrentar quatro anos de estudos de medicina antes de atender ao chamado do Clos Fourtet, Premier Grand Cru Classé de Saint-Émilion, de seu tio Lucien.
No entanto, foi somente em 1997, muitas safras depois disso, que ele acabou por adquirir o Marjosse. Ali, com a esposa e jornalista brasileira, Alexandra Lurton, ele se dedica especialmente a duas atividades: passear com Bertin, um pastor-australiano, e cuidar dos jardins, que incluem hortas e, claro, vinhedos.
Sua própria vinificação iniciou-se em 2018, dois anos antes do casamento. Porém, com a entrada de Alexandra, o expert viu-se inspirado a pensar em novos vinhos, rótulos e maneiras de propagandeá-los. A linha Anthologie, estampada com pássaros da fauna local, escolhidos por ela, é o desenlace.
A coleção antológica já possui três exemplares, todos eles disponíveis por aqui. “Estamos elevando a escala de requinte e elegância para os diferentes cuvées. As melhores vinhas de Sauvignon Blanc, Sauvignon Gris e Semillon se reúnem no Anthologie de Marjosse Cuvée Palombe (R$ 579,82 a safra 2019)”.
A série segue com dois tintos: o Cuvée La Charmille, um dos três Merlots de vinhas de mais de 40 anos de uma mesma parcela do Marjosse. A safra 2018 (R$ 441,63), “voluptuosa”, recebeu 92 pontos pelo respeitado crítico americano James Suckling.
Já o Cuvée Ortolan 2019 (R$ 533,39) revela a maestria de Lurton sobre uma determinada uva. “É uma escolha de parcela de velhos Cabernets Francs e também uma ideia que atravessou a mente da minha mulher. Ela diz que sou o rei do Cabernet Franc, graças à experiência com Cheval Blanc, onde ele é a estrela, embora não esteja em tintos varietais, como esse.”
Resultado de tal investida é um vinho delicado e sutil, sem notas verdejantes. “Tem um gostinho de cassis e é muito fino. Claro, é apenas uma pequena abordagem perto do grande topo de Cheval”, define ele.
Os rótulos mencionados estão nas mãos da Mistral. Antes, o connoisseur distribuía seus vinhos como fazia com as maisons que gere, isso é, pela Place de Bordeaux, provavelmente a mais influente rede de comércio de vinhos de luxo do mundo. Agora, até pelas novas conexões com o Brasil, ele aposta na distribuição da importadora de Ciro Lilla.
“Hoje essa é para mim a verdadeira vida, porque quando você é Cheval Blanc e Château d’Yquem você está no meio das estrelas do céu. É formidável, mas não é a realidade. Anthologie é real, uma nova inspiração”, avalia Lurton.
Verdade seja dita, apesar de amigos brasileiros, de um terreno no “sertão” de Trancoso e de projetos distantes com café e vinhos em território tupiniquim, seu universo concreto orbita um bocado em torno d’Yquem.
“É um lugar sublime, que faz parte do patrimônio e do orgulho da França. É a matéria-prima, a elegância do gesto, o savoir-faire e a raridade. Em certos anos, quando não estamos em sintonia com o clima, não fazemos vinho e isso é a noção de excelência”, filosofa.
Nesse sentido, o trabalho que mais o move é o de perdurar essa tradição, o de transmitir a sabedoria “absolutamente incrível da natureza de partir de uma coisa podre e chegar a uma coisa sublime”. Por “coisa podre”, não custa frisar, ele se refere às uvas atacadas pelo fungo Botrytis cinérea que dão origem ao Sauternes.
“Talvez seja um pouco presunçoso da minha parte, mas há vinho e há Yquem. Ok, tem Petrus, tem Romanée-Conti, mas Yquem é diferente. É mítico. Quando se observa a paisagem de Yquem, quando se degusta Yquem, você entra em um outro mundo, numa espécie de milagre da natureza”, defende seu presidente do conselho de administração.
Até por isso, Lurton esforça-se para que a bebida não seja tratada como um vinho de sobremesa. “A gente pode servir como aperitivo, simplesmente com um frango ou com cogumelos, mas também pode beber no meio da noite, fumando um charuto, porque esse grande vinho não é complicado, basta um instante e um pouco de dinheiro”.
Por descomplicado, o especialista garante que Yquem ama as especiarias e funciona com uma moqueca e melhor ainda com uma feijoada. Já em relação à quantidade de dinheiro, vale lembrar que uma garrafa do mito pode bater dezenas de milhares de euros, afinal, há millésimes desde 1861. “É um vinho incrível que não remanesce no dulçor, e sim na complexidade, por isso viaja extraordinariamente no tempo”.