Os últimos 18 meses têm sido bem emocionantes, em especial para quem está precisando de capital para manter o seu negócio operacional. O dinheiro secou e o investidor “sentou” em cima dos recursos esperando algum sinal de mudança. O FOMO (Fear of Missing Out) deu lugar ao FOGI (Fear of Getting In). Enquanto isso, muitas empresas quebraram e algumas outras ainda quebrarão nos próximos meses.
Quem sobreviveu está se virando para esticar ao máximo o caixa. Ou então recorreu a um M&A com empresa concorrente ou similar, em um abraço de quase afogados para aumentar o runway até o mercado melhorar.
Mas qual é o motivo desta correção? O que deu errado? Atuando com venture capital desde 1998, pude vivenciar diversos “estouros de bolhas” e períodos de correção (como o que vivemos hoje).
O famoso estouro da “bolha dotcom” de 2000 foi um exemplo clássico de descasamento entre valuations, mercados endereçáveis e perspectivas de faturamento, que culminou com a evaporação de muitas startups de tecnologia, em especial no segmento de telecom/internet.
O que vivemos hoje é algo um pouco diferente. Não considero como o estouro de uma bolha o que estamos presenciando nos últimos meses, mas sim uma correção de práticas que se mostraram pouco ortodoxas, aliada a um ajuste de expectativas em um cenário macroeconômico mais restritivo em termos de acesso a capitais.
Para entendermos um pouco mais a raiz do problema que estamos enfrentando, precisamos voltar ao biênio 2020/2021. Esses anos se destacaram por uma onda de liquidez no mercado, alimentada tanto pelas taxas médias de juros globais extremamente baixas, até negativas em alguns países, quanto pelos estímulos governamentais em resposta à pandemia de Covid-19.
Esse excesso de liquidez, combinado com as baixas taxas de juros para rendimentos de renda fixa, canalizou centenas de bilhões de dólares para ativos alternativos que ofereciam retornos mais atraentes. Como resultado, os mercados de venture capital e private equity foram inundados com um fluxo maciço de capital, resultando também em uma profusão de novos fundos de grande porte. Aqui é que o problema começa a se formar.
Alguns desses fundos captados tinham tamanhos claramente desproporcionais aos mercados ou regiões para os quais estavam endereçados. Quem está familiarizado com a dinâmica de fundos de investimento sabe que existe uma pressão para alocar o capital do fundo dentro de uma janela de tempo determinada.
Quem está familiarizado com a dinâmica de fundos de investimento sabe que existe uma pressão para alocar o capital do fundo dentro de uma janela de tempo determinada
Isso cria um potencial conflito de interesses, pois o gestor, sob pressão para alocar uma montanha de capital de um fundo grande demais para a quantidade de ativos disponíveis no mercado-alvo, tende a relaxar na negociação por um valuation razoável e passa a ter como incentivo principal a maior alocação de capital possível por empresa.
Isso resulta em um ciclo vicioso onde os empreendedores são encorajados a ter um alto índice de queima de caixa (burn-rate), justificando-se pela manutenção de um ritmo de crescimento acelerado (a famosa filosofia de “crescer a qualquer custo”). Isso, por sua vez, justifica alocar mais capital para sustentar este ciclo.
Este ciclo vicioso criou uma geração de empreendedores que, estimulados pela necessidade frenética dos fundos de alocar capital, ajustaram seus planos de negócios para acomodar investimentos massivos, a fim de sustentar burn-rates exagerados e, no fundo, irracionais.
Como resultado, muitos investidores começaram a culpar os empreendedores pelos valuations inflados que surgiram, embora fosse um tanto injusto, pois eles estavam reagindo a incentivos equivocados provenientes dos próprios investidores.
E a irracionalidade não parou nos valuations inflados e burn-rates sem sentido. Para corrigir o crescente desequilíbrio entre o risco e valor das empresas, os investidores de venture capital recorreram exaustivamente a instrumentos de retorno/liquidez preferenciais. Essas ferramentas asseguram ao investidor uma prioridade no recebimento dos recursos em situações de eventos de liquidez, como a venda da empresa.
Frequentemente, as cláusulas de liquidez preferencial continham fatores de multiplicação que, essencialmente, “garantiriam” um retorno de múltiplas vezes o capital investido na empresa.
O instrumento de liquidez preferencial em si não é necessariamente prejudicial, mas seu uso excessivo e recorrente pode se tornar uma armadilha, especialmente para os empreendedores, que correm o risco de ceder quase todo o seu upside se o cenário de liquidez não for o ideal.
O instrumento de liquidez preferencial em si não é necessariamente prejudicial, mas seu uso excessivo e recorrente pode se tornar uma armadilha
Muitos investidores usaram este instrumento de maneira irresponsável, realizando rodadas sucessivas de investimento, com valuations cada vez mais exagerados e injustificáveis, prevendo, por sua vez, alocações de capital cada vez maiores.
E, em cada rodada, eram incluídos dispositivos de liquidez preferencial compostos que prometiam retornos extremamente atraentes para os investidores. Curiosamente, isso me faz pensar em outro tipo de estrutura de investimento bastante conhecida: a infame pirâmide.
Pirâmides e camelos convivem no mesmo ambiente
As pirâmides são estruturas de investimento insustentáveis baseadas na premissa de retornos atraentes sobre investimentos “irreais”. Em geral, os investidores que participam no início do esquema obtêm algum retorno a curto prazo, enquanto os investidores menos diligentes que entram mais tarde acabam sofrendo grandes perdas, muitas vezes transformando em pó todo o capital investido.
A prática abusiva de usar instrumentos de liquidez preferencial nos últimos anos é assustadoramente semelhante ao modelo de pirâmide. Muitos investimentos de venture capital que seguiram este caminho basearam-se na suposição de que o mercado próspero e líquido perduraria por tempo suficiente para permitir uma saída com múltiplos extremamente elevados, como em um IPO.
A prática abusiva de usar instrumentos de liquidez preferencial nos últimos anos é assustadoramente semelhante ao modelo de pirâmide
A expectativa era que, neste momento, algum investidor tardio (e pouco diligente na análise) forneceria liquidez para os investidores iniciais. A dificuldade surgiu quando o mercado se deteriorou, os múltiplos despencaram e muitos ativos listados, tanto no Brasil quanto nos EUA, passaram a valer uma fração do preço de listagem original e provavelmente não recuperarão sequer o capital principal investido.
Outras empresas que não chegaram a ser listadas estão sendo obrigadas a se reinventar, fazendo cortes drásticos de custos operacionais e de pessoal, e realizando downrounds significativos para sobreviver. No fim das contas, todos são prejudicados.
Ademais, para as empresas que estão sendo forçadas a realizar demissões em massa para sobreviver, há ainda o dano colateral causado por processos de reestruturação, que deixam cicatrizes profundas no que talvez seja o ativo mais valioso de uma startup: a sua cultura.
Depois de ponderar sobre a semelhança entre as pirâmides financeiras e a irracionalidade do mercado, compreendo agora por que alguns investidores começaram a usar o termo “camelos” para se referir às empresas mais bem preparadas para resistir ao período de escassez que se iniciou no final de 2021. Camelos e pirâmides são frequentemente encontrados no mesmo ambiente...
Quando mais ouço investidores falando sobre unicórnios e camelos, mais me agrada a expressão “cabra da montanha”. Acredito que esse animal simboliza melhor a imagem do empreendedor genuíno, resiliente e capaz de superar as montanhas que são os desafios cotidianos de se empreender, escalando com segurança o seu negócio.
Quando mais ouço investidores falando sobre unicórnios e camelos, mais me agrada a expressão “cabra da montanha”. Acredito que esse animal simboliza melhor a imagem do empreendedor genuíno e resiliente
Além disso, considero “cabra da montanha” um termo mais “inclusivo” que não avalia o empreendedor apenas com base no valuation atual ou futuro de sua empresa.
Muitas startups de grande qualidade, lideradas por empreendedores igualmente incríveis e que trarão retornos excepcionais aos seus acionistas, nunca se tornarão “unicórnios” se adotarmos a definição clássica. Isso, no entanto, não significa que deveriam ser relegadas a uma “prateleira inferior”, como muitos investidores tendem a fazer.
A convergência e o novo ciclo
O mercado agora mostra indícios de que está ensaiando uma recuperação, já que há sinalizações de políticas monetárias mais dovish, com reduções significativas nas taxas de juros previstas para os próximos meses, tanto no Brasil como no exterior. Entraremos então em um novo ciclo de investimentos, captações e fusões e aquisições com múltiplos mais sólidos.
Só nos resta esperar que os erros do passado não se repitam. Estou otimista com o que tenho visto até agora. Parece que muitos investidores estão fazendo suas lições de casa e ajustando algumas premissas.
Estou otimista com o que tenho visto até agora. Parece que muitos investidores estão fazendo suas lições de casa e ajustando algumas premissas
A exigência vai aumentar: a “regra dos 40” - métrica que combina taxa de crescimento de receita e margem de lucro utilizada por investidores para avaliar a atratividade de empresas, principalmente baseadas em modelos de negócios do tipo SaaS – agora vai virar uma “regra dos 60”. E desta vez a empresa terá que entregar uma margem de lucro significativa para escapar da armadilha do “crescimento a qualquer custo”.
Além disso, continuamos com o processo de digitalização e otimização do mundo, onde temos uma convergência única de três fatores que contribuem decisivamente para isso:
- capacidade computacional, onde mesmo os aparelhos mais básicos possuem poder de processamento suficiente para executar as mais diversas aplicações, desde bancos de dados avançados até realidade virtual e inteligência artificial;
- conectividade global, onde mais de 90% da população mundial está regularmente conectada à internet e tem a capacidade de acessar uma infinidade de aplicações em praticamente qualquer lugar do planeta;
- redes de alta velocidade e baixa latência. O avanço do 5G, que conseguiu unir a velocidade já existente nas redes 4G com a baixa latência, permitirá que tecnologias e serviços que vêm sendo desenvolvidos há algum tempo, como IoT e redes de carros autônomos, possam atuar em toda a sua capacidade.
Se pensarmos a respeito, a convergência desses três fatores é relativamente recente, com pouco mais de meia década de existência, e explica em grande parte o motivo de estarmos vivendo um boom de empreendedorismo global e o surgimento de novas tecnologias em velocidade exponencial (como previsto por Ray Kurzweil em seu famoso livro “The Singularity is Near” publicado no início dos anos 2000).
Como exemplo, as moedas digitais e outros produtos fundamentados na tecnologia blockchain são espécimes notáveis que se aproveitaram dessa convergência. Embora tenha alcançado reconhecimento com o Bitcoin e outros criptoativos, a blockchain está apenas começando a explorar o impacto que terá em como conduzimos negócios e até mesmo em nosso dia a dia.
O grande benefício da descentralização e segurança possibilita que a blockchain, por exemplo, cause uma disrupção na maneira como votamos, literalmente em um cenário extremo, permitindo que o indivíduo possa selecionar e votar diretamente nos temas que considera relevante sem a necessidade de um intermediário, como atualmente os políticos desempenham.
Hoje, estamos imersos em nova onda emergente, a da Inteligência Artificial. Na realidade, a IA não é uma novidade, e algoritmos de aprendizado de máquina e redes neurais vêm sendo investigados desde o século passado. O ponto é que, com essa convergência, finalmente o acesso, a capacidade computacional e a disponibilidade da IA estão sendo utilizados em seu pleno potencial, incentivando o surgimento de novas startups que buscam explorar um leque extenso de novas aplicações que estão aparecendo.
E, diferentemente de muitos analistas de tecnologia, vejo um cenário muito mais benigno para a Humanidade no uso de aplicações de IA, que facilitarão em muito o processo de otimização de praticamente tudo o que usamos no nosso cotidiano. Empregos serão destruídos neste processo? Certamente, mas foi assim em todas as revoluções industriais e não seria diferente agora.
Entretanto, os governos e a iniciativa privada sempre participaram ajudando na transição e, no fim, os benefícios da IA superarão em muito as dificuldades que a disrupção do uso desta tecnologia nos causará.
Tecnologias estruturantes - como eu categorizo blockchain e IA - possuem um potencial transformador profundo na vida de todos os habitantes do planeta. Por exemplo, o uso de IA juntamente com o desenvolvimento crescente da automação robótica, tem a capacidade de levar o custo de produção de bens a quase zero, tornando muitos deles acessíveis para uma camada da população que sequer imaginava que isso seria possível.
Os impactos – tanto positivos quanto negativos – resultantes das aplicações em larga escala de tecnologias estruturantes, teremos de enfrentar nas décadas que se avizinham. Contudo, com uma visão otimista, pela primeira vez sinto que estamos nos aproximando de um futuro em que o conhecimento, o bem-estar coletivo apoiado por tecnologia e a evolução da espécie humana se tornarão o pilar central do progresso global. Será que viveremos algo próximo da utopia de Star Trek? Só o tempo dirá!
Fernando Silva é head de venture capital e sócio da Crescera Capital