A situação financeira da Americanas piorou no quarto trimestre de 2022, conforme o NeoFeed revelou com exclusividade. Os números inéditos apontam que, em novembro, o Ebitda da rede varejista de R$ 2,4 bilhões estava R$ 760 milhões abaixo da meta estabelecida para o ano. E que o volume bruto total de mercadorias (GMV) entre 1º e 25 de dezembro das plataformas física e digital estava negativo em 34% ante o mesmo período do ano anterior.
O NeoFeed teve acesso a mais uma série de documentos e planilhas, além de uma troca de mensagens em dezembro de 2022 por WhatsApp entre Sergio Rial, o CEO que assumiu a companhia em janeiro de 2023, e Fabio Abrate, ex-diretor financeiro que foi substituído por André Covre na mudança de gestão da Americanas.
O fato novo é que, devido ao fraco desempenho de vendas no último trimestre do ano, principalmente no período de Natal, a gestão da Americanas sabia que os covenants (cláusulas restritivas existentes em contratos de dívida) de duas debêntures haviam sido quebrados já no ano passado.
Essas duas debêntures da Americanas no valor total de R$ 1 bilhão, com vencimento em maio e junho de 2023, carregavam as cláusulas que indicavam que a relação entre a alavancagem da rede varejista não poderia ultrapassar o índice de 3,5 vezes a relação entre a dívida líquida e o Ebitda.
O mercado em geral sabia, conforme o balanço do terceiro trimestre publicado pela companhia, que a alavancagem estava em 1,7 vez. O NeoFeed revelou que esse indicador chegou em 3,1 vezes em novembro.
Agora, os novos documentos que o NeoFeed teve acesso mostram que a estimativa em dezembro da gestão da Americanas é que a rede varejista viraria o calendário de 2022 para 2023 com uma alavancagem de 4,2x.
Esses números, porém, só se tornariam públicos com a publicação do balanço do quarto trimestre, algo que nunca aconteceu.
Com essa alavancagem de 4,2x, os covenants já entraram no novo ano estourados, o que implicava na obrigação da quitação antecipada da dívida com os credores, além do pagamento de prêmios para os detentores dos títulos.
Além desse “covenant quantitativo” (que levava em conta a alavancagem), havia o risco de que o “covenant qualitativo” (que trata do rating da companhia) fosse afetado e implicasse em um efeito cascata sobre as demais dívidas - o chamado cross default.
O risco de a Americanas ser atingida por essa combinação de fatores havia aumentado em outubro e novembro com o rebaixamento da nota de risco de todo o setor de varejo no País.
Conforme o Capital Reset revelou em fevereiro deste ano, a Americanas convocou assembleias extraordinárias com os debenturistas detentores desses títulos para tentar renegociar os termos e recomprar esses créditos cujos covenants poderiam estourar.
Ainda de acordo com o Reset, o então CEO Miguel Gutierrez convocou, em 23 de dezembro, duas assembleias para tratar da recompra desses títulos com debenturistas. Elas deveriam acontecer em 13 de janeiro, mas Rial cancelou essas assembleias na sexta-feira, 6 de janeiro, três dias antes da publicação do fato relevante que revelaria a inconsistência contábil no balanço da rede varejista.
Em um trecho da nota enviada ao NeoFeed, que você pode ler na íntegra no fim deste texto, a assessoria de Sergio Rial informa que “ao conhecer a situação crítica da companhia no dia 4 de janeiro, o executivo suspendeu qualquer negociação de debêntures, porque a empresa já se encontrava insolvente naquele momento, uma vez que foi revelada uma dívida de risco sacado, escondida na conta Fornecedores”.
Preocupação com a alavancagem
Uma troca de mensagens por WhatsApp entre Rial e Abrate, então diretor-financeiro da Americanas, em 25 de dezembro de 2022, mostra que o CEO que assumiria a companhia dali a alguns dias estava interessado em ficar por dentro do passo a passo da área financeira da companhia.
Embora Rial ainda não fosse o CEO da Americanas, ele vinha participando de forma constante do dia a dia da rede varejista. Em 2 de dezembro, como o NeoFeed mostrou, Rial participou de uma reunião interna de planejamento para 2023 com Anna Saicali, Marcio Cruz, Timótheo Barros, André Corve e João Guerra.
Em 94 palavras, muitas delas com a abreviação característica do aplicativo de mensagens, Rial escreveu para Abrate: “Vi que vc iniciou um processo de recompra de debêntures e vamos alinhar o ‘script’ do call entre você, Fabiana [Oliver, diretora de RI] e André [Covre, CFO que assumiu com Rial em janeiro de 23]. Teria gostado q vc tivesse me ligado pois implica em uma ação financeira relevante do 1º tri. Longe de ser ‘command & control’ vai me conhecer, mas sim quero saber 100% de tudo e ter chance de opinar c vc. Vamos ter muito trabalho nos próximos 18 meses, e gostaria de estabelecer desde o início como espero trabalhar contigo: excesso de comunicação entre nós (zero problema) e velocidade, o último vc é um AZ [sic].”
Abrate respondeu ao seu futuro CEO: “Opa. Bom dia. Claro. Estamos alinhados: excesso de comunicação e velocidade. Em relação às três debêntures, somam 1.2 bi, sendo 1.0 bi (83%) já vencendo no 1S23 (curtíssimo prazo). Elas ainda carregam o covenant da dívida líquida/Ebitda de 3,5x. Com esse movimento, estaríamos eliminando o covenant e teríamos maior flexibilidade em relação ao 4T22 e também no ano de 2023. Falamos na terça em mais detalhes. Abs”.
Um dia depois de a Americanas publicar o fato relevante informando sobre o buraco no balanço em razão do risco sacado, a banca Basílio Advogados apresentou em 12 de janeiro de 2023 uma tutela cautelar em caráter antecedente preparatória de processo recuperacional, a qual o NeoFeed teve acesso, com o pedido de proteção contra o risco de “apropriação de valores bilionários em contas correntes e investimento”.
A peça informa que “os necessários ajustes contábeis a serem oportunamente feitos pela Americanas para correção das inconsistências detectadas poderão implicar no descumprimento dos “covenants financeiros” previstos em vários dos contratos celebrados com seus credores financeiros, inclusive estrangeiros, permitindo que declarem o vencimento antecipado e imediato de, aproximadamente, R$ 40 bilhões em dívida”.
Mais à frente, na conclusão e requerimentos, pede que “sejam sobrestados os efeitos de toda e qualquer cláusula que imponha o vencimento antecipado das dívidas das Requerentes, em razão do ‘fato relevante’ divulgado em 11.1.2023 e seus desdobramentos.
Em nenhum momento a deterioração da situação financeira da Americanas no quarto trimestre, que já era de conhecimento da gestão da empresa em dezembro, foi apresentada como parte do risco de quebra dos covenants. De acordo com a peça, esse risco só passou a existir após a publicação do fato relevante em 11 de janeiro expondo a fraude com o risco sacado da companhia.
No início de dezembro, cientes de que a companhia estava com a relação entre a dívida líquida e o Ebitda em 3,1x, a gestão da companhia precisaria virar um jogo ruim no segundo semestre onde o ritmo de vendas vinha abaixo do esperado.
Para evitar que o índice ultrapassasse 3,5x e o limite do covenant fosse mantido, a Americanas teria de vender 26% a mais do que a companhia tinha como meta de orçamento de R$ 3,5 bilhões para dezembro. Isso significava que seria necessário vender mais de R$ 4,4 bilhões e com margem Ebitda preservada.
No mês de novembro, que serve de temperatura para o fechamento do ano, a rede varejista registrou R$ 3,4 bilhões em vendas, ou seja, 16% abaixo da meta do orçamento para o período, que era de R$ 4,1 bilhões.
A Americanas encerrou o ano de 2022 com um valor de mercado de R$ 8,8 bilhões, uma redução de 86% sobre o market cap de R$ 62,8 bilhões de fevereiro de 2021, quando a fusão entre a Americanas e a B2W foi anunciada ao mercado.
Além de precisar lidar com os seus próprios problemas internos, a Americanas encontrou um ambiente macroeconômico desafiador para redes varejistas, com a queda nas vendas pelo canal digital e a alta da taxa básica de juros, duas combinações que afetam diretamente todo o setor e impactam no valor da ação. Atualmente, o market cap da companhia é de R$ 728,5 milhões.
Em nota enviada ao NeoFeed, "Sergio Rial reitera que somente teve acesso ao dado real de alavancagem da Americanas a partir da revelação feita sobre as inconsistências contábeis, em 4 de janeiro”.
“Em documento de novembro de 2022, apresentado ao Comitê Financeiro e a Sergio Rial, ainda em período de ambientação na empresa, a então diretoria informava que a Americanas teria, em 1.1.2023, R$ 9 bilhões em caixa e um EBITDA de R$ 3 bilhões positivo. Informava também que a dívida líquida da Americanas cairia de R$ 5,298 bilhões, no terceiro trimestre, para R$ 4,794 bilhões no quatro trimestre. Com isso, a alavancagem seria reduzida para um patamar de 1,6 X, bastante inferior ao limite de 3,5 X que poderia gerar quebra de covenant financeiro.
“Em dezembro de 2022, Sergio Rial trocou mensagens com o ex-diretor financeiro da Americanas, Fabio Abrate, para continuar acompanhando a evolução do índice de alavancagem, tema de extrema importância para o entendimento da situação da empresa que em poucos dias iria liderar. Mas em momento algum lhe foi transmitida a real situação de alavancagem da empresa, decorrente das operações de risco sacado, que geravam quebra de covenants financeiro. Esse fato pode ser comprovado por troca de e-mails realizada em 27/12/22, no qual Fábio Abrate e Miguel Gutierrez discutem sobre como não revelar a Rial as informações do 4o trimestre.
“Ao conhecer a situação crítica da companhia no dia 4 de janeiro, o executivo suspendeu qualquer negociação de debêntures, porque a empresa já se encontrava insolvente naquele momento, uma vez que foi revelada uma dívida de risco sacado, escondida na conta Fornecedores, de cerca R$ 20 bilhões, com vencimento de curtíssimo prazo."
Procurada, a Americanas não se pronunciou até a publicação desta reportagem.