Roberto Fulcherberguer, CEO da Via, empresa que controla as redes Casas Bahia, Ponto e Extra.com.br, explica de maneira direta os motivos que levaram a companhia a retirar a palavra “Varejo” de seu nome, no fim de abril. “Não é só uma troca de nome, é uma troca de modelo de negócio”, diz Fulcherberguer ao NeoFeed.
Trata-se de uma mudança que vem acontecendo nos últimos dois anos, desde que o executivo assumiu a empresa com a missão de liderar um complexo e enorme turnaround. “Foi, de fato, a virada para uma companhia que não tem absolutamente nada a ver com aquela que assumimos há dois anos”, diz Fulcherberguer. E os próximos passos da empresa atestam essa visão.
A Via aguarda a autorização do Banco Central para tornar a sua fintech banQi uma Sociedade de Crédito Direto e, assim, passar a oferecer mais serviços financeiros; se prepara para entregar pedidos online em até 1 hora, em 65 cidades, até o fim do ano; vai entrar na logística de restaurantes e criar um serviço de delivery; e vai lançar uma plataforma de advertising.
São movimentos para ganhar mercado em uma disputa que alguns analistas já classificaram como a batalha de ecossistemas. “Magazine Luiza, B2W, Mercado Livre e Via estão fazendo o que se pode chamar de corrida ao ouro digital”, diz Eduardo Yamashita, COO da consultoria Gouvêa Ecosystem. “E cada uma dessas empresas vêm ressaltando suas fortalezas ao mercado. No caso da Via, os ativos financeiros chamam a atenção”, afirma Yamashita.
Nos resultados do primeiro trimestre deste ano, a empresa contava com uma carteira de crédito de R$ 4,6 bilhões, 30% a mais do que no mesmo período do ano passado. A banQi, cuja aquisição foi concluída ano passado, apresentou um TPV de R$ 520 milhões, duas vezes e meia a mais do que no último trimestre de 2020. Fulcherberguer não dá guidance, mas explica algumas ações que podem fazer a área financeira saltar.
“Todos os motores de crédito foram digitalizados, o que permitiu levar o crediário para o digital”, diz ele. Isso tem sido fundamental para a Via principalmente porque está fazendo com que a rede chegue em lugares onde não tinha presença. “Nos últimos oito meses, conseguimos levar o crediário digital para 500 cidades nas quais não temos presença física”, diz Fulcherberguer.
Ao digitalizar, também passou a rejuvenescer sua base de clientes. No primeiro trimestre do ano passado, apenas 11% tinham até 30 anos. Agora, eles representam 14%. Na faixa de 31 anos para 40 anos, o salto foi de 13% para 15% e na de 41 anos a 50 anos evoluiu de 19% para 20%. Já a parcela média do crediário, que era de R$ 194, em abril de 2020, agora é de R$ 238,00. “Temos 25 milhões de clientes com R$ 42 bilhões de crédito pré-aprovado.”
Para ter esse montante pré-aprovado e conhecimento dos clientes, Fulcherberguer diz que “foram necessários anos de aprendizado”. “E bilhões de reais perdidos para construir a inteligência que a companhia tem.” Isso tudo foi empregado no digital e ajudou a também aumentar a recorrência.
Atualmente, diz o executivo, 49% das pessoas que fazem um carnê com a empresa renovam antes de completar 24 meses. O cliente acaba comprando novamente porque são ativados pelo CRM da companhia, que conta com uma base de 95 milhões de clientes que foram centralizados em um data lake.
Essa base de clientes poderá ser acessada na oferta de crédito pessoal que a Via pretende entrar por meio da banQi. “Sabemos fazer concessão de crédito para a base da pirâmide brasileira”, diz Fulcherberguer. “Está nascendo a primeira fintech do Brasil que, de fato, dá crédito”, diz Fulcherberguer.
Depois do crédito pessoal, a meta é oferecer cartão de crédito, vender seguro e oferecer outros serviços financeiros. Hoje, a fintech conta com dois milhões de clientes próprios, mas a Via pretende facilitar a entrada dos clientes de seu crediário. “A ideia é fazer com que entrem com apenas três cliques”, diz Fulcherberguer.
A facilidade com a qual ele fala de usar a tecnologia para conectar e escalar os negócios contrasta com o início de sua gestão na Via. Logo que assumiu a empresa, depois que o GPA saiu do controle, ele mudou 100% do top management. E, três meses depois, 90% da diretoria. Além de um choque de cultura, a empresa teve de redesenhar seus sistemas.
“A gente não conseguia escalar o online. Não conseguíamos completar uma jornada inteira de uma venda sem fricção para o consumidor e sem problema na entrega”, afirma Fulcherberguer. Por conta disso, no terceiro trimestre de 2019, a empresa tirou o pé da venda digital e teve de reconstruir todas as APIs de conexão online com o sistema legado da Via.
Depois dessa reformulação, a companhia passou a acelerar as vendas digitais. Se, no primeiro trimestre de 2019, as vendas online representavam 23% do GMV total, no primeiro trimestre de 2020, elas passaram a representar 37% e, no mesmo período de 2021, alcançaram 56%, numa parcela de R$ 5,7 bilhões de um total de R$ 10,3 bilhões.
Mais do que uma mudança de sistemas, o que aconteceu também foi uma mudança de mentalidade por parte dos 20 mil vendedores – o que foi acelerado pela pandemia e o fechamento temporário das 1,1 mil lojas. Isso obrigou-os a usar o WhatsApp como ferramenta de vendas. “Eles tinham o digital como inimigo e hoje descobriram que o online agrega venda para eles.”
O resultado disso também foi sentido pelo mercado. A Via, que tinha parado de informar os dados de seu GMV online para a Ebit/Nielsen, em janeiro de 2019, voltou a contribuir com os números oficiais. Isso fez com que o número total do mercado de vendas online crescesse cerca de 10%, passando de R$ 87,4 bilhões para R$ 96 bilhões transacionados em 2020.
O novo desafio da companhia
Agora, o novo desafio da companhia passa por duas outras áreas estratégicas para o varejo. Numa delas, a companhia ainda está longe dos concorrentes. Trata-se do marketplace. No primeiro trimestre, enquanto Magalu contava com 56 mil sellers e Americanas com 96,3 mil, a Via estava com 26 mil sellers. Atualmente, Fulcherberguer diz que a companhia conta com 55 mil sellers. Deste total, 45 mil foram plugados desde fevereiro. “O nosso processo de onboarding era caótico. Mas, algo que demorava 40 dias para um seller entrar, agora demora três minutos”, diz Fulcherberguer.
O marketplace representou R$ 1 bilhão do GMV do primeiro trimestre, o equivalente a 10% do total. “Até o fim do ano, teremos entre 70 mil e 90 mil sellers”, diz o executivo. Para fazer esse negócio crescer, Fulcherberguer destacou o Chief Digital Officer (CDO), Helisson Lemos, que foi por 16 anos executivo do Mercado Livre, para tocar a operação.
Ele terá de resolver outra questão crucial: a logística. Afinal, isso é meio caminho andado para um vendedor decidir por um marketplace. No mercado, as grandes do setor estão investindo pesado nisso. Tanto em grandes centros de distribuição como em companhias voltadas para a última milha, como na melhoria de suas operações e contratação de funcionários.
Só o Mercado Livre anunciou investimentos de R$ 10 bilhões neste ano. O Magalu segue na mesma linha e fez mais de uma dezena de aquisições desde abril do ano passado. A Americanas também tem desembolsado um caminhão de dinheiro para esse segmento e anunciou que o setor será contemplado nos investimentos de R$ 5 bilhões para os próximos dois anos.
Com 28 centros de distribuição espalhados pelo Brasil, a Via tem investimentos de R$ 600 milhões para este ano e está inaugurando mais um CD em Extrema (MG). Com isso, vai ficar com 1,2 milhão de metros quadrados em CDs e mais 1,5 milhão de metros quadrados de suas 1,1 mil lojas, transformadas em centros logísticos. “Já entregamos em 65 cidades em 24 horas. Até o fim do ano, entregaremos na mesma hora da compra”, diz Fulcherberguer.
O próximo passo nesse braço logístico é fazer o fulfillment completo para os sellers do marketplace e até para terceiros. No caso dos sellers, a Via bolou uma estratégia para capturar a atenção dos pequenos varejistas. Muitos têm suas lojas virtuais em vários marketplaces, mas isso demanda capital porque é necessário ter estoque em cada um deles. “Posso ser o hub logístico dos sellers. Ele põe o estoque dele aqui e entrego até em outros marketplaces”, afirma Fulcherberguer.
Para operar a última milha, a companhia comprou a ASAP log, no início do ano passado. Além de trabalhar com os vendedores, a ASAP Log, hoje com um batalhão de 200 mil entregadores, está com um projeto piloto para operar no mercado de delivery, atuando juntamente a restaurantes. Depois disso, o próximo passo, mas ainda mais distante, é entrar oferecendo o serviço de delivery para o consumidor final.
A estratégia não deixa de lembrar a do Magazine Luiza, que comprou quatro empresas de delivery (AiQ Fome, Plus Delivery, ToNoLucro e GrandChef) nos últimos tempos e já disse que essa é uma vertical que a companhia pretende apostar. Outra área que a Via vai entrar e que já é explorada por seus concorrentes há mais tempo é a de advertising. Mercado Livre, Magalu e B2W já têm suas operações de publicidade para os sellers colocarem seus produtos em destaque.
Gigantes como a americana Amazon já faturam fortunas com esse negócio. Só no ano passado, a empresa de Jeff Bezos teve uma receita de US$ 15,3 bilhões com publicidade. A ideia da Via, que, segundo fontes de mercado, tem sites e aplicativos que recebem cerca de 330 milhões de visitas por mês, é criar mais uma fonte de receita aproveitando o seu ecossistema.
Mesmo diante da transformação que está sendo feita, o mercado financeiro ainda não “comprou” totalmente essa virada da Via. Os papéis da empresa, cotados em R$ 15,79 na quarta-feira, 30 de junho, são negociados a múltiplos de 21,34 o preço por lucro. Já os da Magazine Luiza, cotados a R$ 21,15, são negociados a múltiplos de 222,63. Enquanto a Via vale R$ 21,15 bilhões, o Magalu tem um valor de mercado de R$ 136,36 bilhões.
Indagado sobre isso, Fulcherberguer diz que, no passado, a empresa errou com os acionistas, prometeu e não cumpriu. Mas faz uma ressalva. “Quando entramos aqui, a ação estava em R$ 4,90”, afirma. A valorização, desde então, foi de quase 223%.
De acordo com analistas da corretora Genial, há espaço para mais crescimento. “Nós consideramos que a Via Varejo é a escolha a ser comprada no setor de e-commerce, tendo concretizado seu processo de reestruturação e com novos projetos para sustentar o crescimento futuro, nós calculamos um upside de 70% para o papel”, escreveram no dia 24 de junho os analistas Karen Atsuta, Eduardo Nishio e Rafael Rehder. O preço-alvo estipulado por eles é de R$ 25,00.
Já os analistas da XP mantêm a recomendação de neutro para os papéis da Via. “A Via destacou diversas iniciativas no seu release de resultados a serem entregues em 2021 que, ao nosso ver, estão na direção correta e devem gerar valor ao longo do tempo. No entanto, continuamos a esperar um cenário competitivo bastante desafiador nesse ano, inclusive com iniciativas de players internacionais como Amazon e Alibaba, o que deve trazer volatilidade para as ações do setor no curto prazo”, escreveram os analistas Daniela Eiger, Gustavo Senday e Thiago Suedt. O preço alvo para o fim do ano é de R$ 20,00.
Fulcherberguer diz que a empresa vai entregar mais nos próximos trimestres e que o mercado ainda não enxergou o real potencial que a companhia tem. “Vamos demonstrar isso daqui a pouquinho. Quem tiver visão vai entender que o foguete decolou e vai ganhar cada vez mais altura.”