Digital não é mais o futuro dos negócios, é o presente. Apesar de pesquisas, como uma recente da McKinsey, “How COVID-19 has pushed companies over the technology tipping point—and transformed business forever”, mostrarem  de forma inequívoca que a pandemia acelerou de forma radical a utilização de tecnologias digitais nos processos internos e relacionamentos com clientes, muitos executivos seniores ainda não perceberam que o mundo digital já é o “core” dos seus negócios.

Partem do pressuposto que como não o era no passado, a pandemia acelerou sim, alguns processos, mas as coisas ainda continuarão muito parecidas no futuro. É o típico pensamento linear, em que o futuro é uma simples modernização do presente. Mas hoje o mundo está hiperconectado, os seus funcionários e clientes já são digitais e usam naturalmente a tecnologia digital desde que acordam até a hora em que vão dormir. Fizeram isso no auge da pandemia e continuarão a fazer isso, mesmo com vacinação em massa.

Outros executivos, mais conscientes, estão assustados, com a “síndrome das Big Techs”, temendo que amanhã cedo um concorrente que não está hoje na sua lista de competidores, seja uma startup ou uma trilionária Big Tech, mude os fundamentos do seu negócio de forma totalmente imprevisível, o deixando sem reação. Um exemplo? O lançamento da Amazon Pharmacy nos EUA!

Mas o que une ambos é o fato que os mapas do passado não servem mais para os caminhos que levarão a empresa à frente. A tecnologia digital está transformando drasticamente duas coisas fundamentais a qualquer empresa: a dinâmica dos mercados no qual operam e a velocidade que precisam para se reinventar e se manter competitivas.

Ficar inerte simplesmente vai significar que a ruptura digital virá por outra empresa, seja de outro setor ou startup. E aí a empresa pode perder relevância, ser relegada a um segundo plano. Ou pior, simplesmente ser expelida do mercado pela transformação das demandas do próprio mercado. A reação tem que ser rápida e muitas vezes sendo obrigada a bater de frente com os modelos de negócio estabelecidos. É o preço da sobrevivência.

No meu dia a dia profissional, converso com muitos C-levels e observo que um grande número deles já tem a consciência da necessidade da mudança e sabem que o digital é a base de sua estratégia de reação. Entretanto, muitos outros ainda não perceberam a urgência do pensar digital. A disrupção provocada pela transformação afetará de forma mais intensa e bem mais rápido a maioria das empresas, muitas das quais ainda relutantes em reconhecer este cenário.

Assim, em tempos de mudanças exponenciais, esperar dois ou três anos para reagir, pode significar um tropeço muito difícil de ser revertido. Não dá mais tempo de ficar no pensamento estratégico de longo prazo. “Alocaremos budget para transformação digital daqui a dois ou três anos”. Em dois a três anos provavelmente não será mais necessário tal budget! A pandemia mostrou que o futuro se torna presente no dia seguinte.

Mesmo entre os que já perceberam a necessidade da mudança, muitos reconhecem que suas estratégias digitais ainda são tímidas e quase todos reclamam que faltam talentos preparados para “pensar digital”. Também admitem que as duas grandes barreiras são a cultura arraigada e a organização burocrática, hierárquica e separadas em silos.

Como ultrapassar esses obstáculos? Cada empresa tem que achar seu próprio caminho, mas alguns erros cometidos aqui e ali servem de lição. Por exemplo, estratégias digitais isoladas em departamentos como TI ou tratar os canais digitais como entidades à parte, desconectadas das demais operações, gerando conflitos e até mesmo situações caóticas.

Estruturas organizacionais, processos e tecnologias separadas para os canais físicos e os digitais geram confusão e atritos pela disputa das energias e recursos econômicos. Conheço casos de empresas que ainda tratam o mesmo cliente como se fossem dois clientes diferentes, o do canal físico e o do canal digital. Isso é tudo que o cliente absolutamente não quer!

Claramente sinto que muitas empresas precisam de um “reset”. A estratégia digital deve ser holística e não departamental. O “reset” vai servir para dar um novo início, repensando como os modelos operacionais funcionam, sejam na captação à retenção de clientes, nos processos internos, nos modelos organizacionais e nas tecnologias adotadas. Significa sair de uma empresa de cultura analógica para uma digital. São animais diferentes.

A mudança cultural é um obstáculo que muitas vezes é o mais difícil de superar. Mudar o “mindset” executivo moldado por anos de sucesso em gerenciar uma empresa que orquestra uma cadeia linear, onde a empresa é o centro e os clientes e parceiros ficam em sua órbita, para um outro modelo, onde a empresa faz parte de um ecossistema e atua como plataforma, não é simples.

Mudar o “mindset” executivo moldado por anos de sucesso em gerenciar uma empresa que orquestra uma cadeia linear não é simples

Significa expor seu negócio de forma que não estão acostumados. Os líderes das empresas tradicionais pensam (e na missão de valor de suas empresas isso está escrito) em como suas empresas podem criar valor para seus clientes. Uma empresa que atua como plataforma, pensa que valor seus clientes e outras redes podem gerar para ela.

Os líderes das empresas tradicionais pensam que seu objetivo fim é vender mais produtos e serviços aos seus clientes, e consequentemente gerar maior valor para seus acionistas. As empresas em plataforma enxergam o valor na cocriação, compartilhamento e influência de seus clientes.

A maioria das empresas tradicionais diz explicitamente “o cliente em primeiro lugar”, mas na prática sua prioridade é satisfazer seus acionistas pela valorização de suas ações. A diferença fundamental é que os líderes das empresas tradicionais foram criados em um mundo de escassez de informações, enquanto vivemos hoje um mundo de abundância de informações.

Os líderes das empresas tradicionais pensam em um cenário de capacidade plena e, portanto, tem que vender mais do que produzem. As empresas que atuam como plataforma enxergam de forma diferente e veem o mundo cheio de potencialidades: por exemplo, tem mais gente querendo alugar seus imóveis e quartos que a capacidade da indústria hoteleira em construir novos hotéis.

As plataformas captaram esta diferença. Os exemplos do Airbnb e Uber mostram claramente como conseguiram mudar o paradigma de indústrias consolidadas, como a hoteleira e a de táxis. Substituíram o conceito da indústria de ter a propriedade, trocando-o por acesso.

Outro obstáculo é que muitas empresas ainda veem a sua TI apenas como suporte e apoio operacional. Assim, ser digital para muitas delas é criar um app, que muitas vezes apenas simula um desktop em suas funcionalidades. Mas ser digital é muito mais que disponibilizar um app. É essencial integrar as duas pontas de uma estratégia digital, a que chamo de experiência do cliente e a da excelência operacional.

Outro obstáculo é que muitas empresas ainda veem a sua TI apenas como suporte e apoio operacional

Experiência do cliente implica em olhar as melhores práticas de outros setores e ver como os clientes se sentem interagindo com essas empresas via tecnologias digitais. Não é olhar apenas para seus concorrentes. O setor todo pode estar indo no caminho errado. Aliás, as próprias fronteiras da concorrência estão se tornando fluídas, ambíguas e sem sentido. Uma empresa de um setor adjacente pode ser amanhã seu principal concorrente. É pensar como uma empresa de software, repensando seus produtos e serviços como experiência digitais. No mundo do software, não se respeita a tradição, apenas a inovação.

Pense em um contexto em que os produtos virão com uma “camada virtual”, como informações ou serviços. Talvez faça sentido aplicar aqui uma analogia com o conceito de “realidade aumentada” em que o produto passa a ser envolvido com uma camada digital que lhe dá outras funcionalidades, como ajudar o cliente com algoritmos de recomendação como fazem Netflix e Amazon.

A excelência operacional implica em construir uma empresa ágil, elástica, adaptável e responsiva, com processos eficientes e simples. Eliminar camadas e mais camadas de complexidade que foram adicionadas aos processos originais e que hoje tornam a empresa lenta nas reações. Passa, obrigatoriamente, por repensar o arcaico e obsoleto modelo organizacional hierárquico e centralizado.

As estruturas hierárquicas funcionaram muito bem em um período de mudanças mais lentas. Por outro lado, criaram fragilidades como ascendência profissional significar mais poder, controles rígidos e pouca flexibilidade para mudanças. Tendem naturalmente serem reativas às mudanças, pois qualquer mudança afeta a estrutura de poder tão arduamente conquistado.

O modelo hierárquico foi criado para ser estático. As pessoas trabalham dentro de um contexto “que as coisas foram feitas assim e deverão continuar sendo assim”. É uma estrutura de comando e controle, onde o comando está nos níveis gerenciais e a execução nos níveis mais baixos, que apenas cumprem tarefas, sem maiores autonomias.

Os níveis intermediários de gerência funcionam como “buffers” recebendo ordens e as enviando para baixo, filtrando os problemas que surgem embaixo, repassando apenas alguns para a alta administração. As regras são claras e desvios punidos. Inovação não é algo incentivado, a não ser em teoria ou em posters nas paredes. As estruturas criam silos, muitas vezes com objetivos conflitantes entre si, criando um cenário de “nós contra eles”, como gerência versus staff, marketing versus finanças, TI contra todos.

Um sintoma comum disso em TI por exemplo é olhar os setores da empresa com desconfiança, tratando-os como clientes ou entes distantes, e não como parceiros no mesmo negócio. Ainda é comum ouvirmos “usuário não sabe o que quer!”. Característica de uma relação conflituosa, causada pela estrutura obsoleta da organização.

O modelo tradicional ainda pensa no funcionário como sua propriedade e o emprego é assumido como ser duradouro. Os valores predominantes são financeiros e tudo é feito em nome da lucratividade do negócio. O gerenciamento é por objetivos. Este deve ser alcançado, não importa como. Vemos isso explicitamente nas áreas de vendas com pressões muitas vezes insustentáveis em cima dos funcionários para baterem ou ultrapassarem metas, que nem sempre são factíveis. Os indicadores usados refletem este espírito da meta a qualquer custo, como ciclos trimestrais e anuais, KPIs e balanced scorecards.

O modelo tradicional ainda pensa no funcionário como sua propriedade e o emprego é assumido como ser duradouro

Uma estrutura hierárquica emula uma máquina, sempre operando da mesma maneira. O resultado do engessamento, do método de comando-controle e do curto-prazismo pode ser observado no nível de satisfação dos funcionários, geralmente muito baixo. Uma empresa engessada não vai sobreviver em uma era de exponencialidades e agilidade.

Mas uma empresa tradicional não se torna digital de supetão. É uma jornada. Começa adotando a filosofia que será digital. É uma caminhada árdua, pois demanda mudar cultura, estruturas organizacionais, modelos de operação e negócios. As mudanças não acontecem por osmose, mas enfrentam muita resistência e ceticismo. Como primeiro passo, faça um diagnóstico sincero e veja onde sua empresa se enquadra em termos de maturidade digital, olhando a experiência digital proporcionada a seus clientes e também quão digital é a sua excelência operacional. Você pode se descobrir sendo um dinossauro digital ou um mestre digital.

Provavelmente você se situará entre esses dois extremos. Caso seja um mestre digital, parabéns, sua empresa deve estar entre as 5% mais digitais do mundo. Caso, por outro lado, seja um dinossauro, corra para recuperar o tempo perdido, para não ser extinto.

Na hipótese mais provável de não ser um mestre digital, comece imediatamente a jornada. Defina uma liderança para o processo de transformação digital. O CEO deve estar 100% comprometido com esta jornada. O CIO tem a sua grande oportunidade profissional de assumir posição de liderança neste processo, desde que tenha atitude para isso. O surgimento da posição de CDO (Chief Digital Officer) acontece quando o CIO não assume este papel.

Alguns pontos chave: criar uma cultura de digital-first, um modelo organizacional centrado no cliente e uma visão outside-in. Parece simples, mas é uma mudança cultural bastante significativa e impactante. Por exemplo, adotar modelos de negócio pay-as-you-go pode parecer uma verdadeira heresia, mas talvez seja o futuro do seu negócio. Avalie estas transformações da dinâmica do mercado de forma isenta e sem preconceitos.

Examine quão ameaçado está seu modelo de negócio, mas não olhe apenas para os seus concorrentes. Olhe para fora do setor. Entenda as diferenças do pensamento de um modelo em plataforma versus o pensamento tradicional. Plante as sementes da transformação, e direcione seus esforços e estratégia na direção da mudança. Não será uma transição fácil. Ninguém muda modelos de negócio sem atritos, sacrifícios e crises. É necessário mudar a maneira de pensar no que sua empresa faz, como ela faz, e quem ganha com isso.

Importante é começar a agir. Um mundo volátil onde a sua maior ameaça são concorrentes que ainda não são classificados como concorrentes não permite um segundo de hesitação. Constantemente se pergunte o que vem a seguir e seja proativo. Reagir ao que já aconteceu não será mais suficiente para a sobrevivência empresarial.

*Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.