À medida que ganhou fama meteórica na mídia, a rede de clínicas médicas dr.consulta gerou no mercado uma indagação sobre o seu modelo de negócios. Seria uma empresa disruptiva, uma healthtech, ou uma rede tradicional formada de tijolo e concreto?
A companhia sempre se posicionou como uma healthtech. Mas, em março do ano passado, quando a covid deu às caras com mais ímpeto no Brasil, o discurso da empresa, focada em atendimento médico primário e secundário, aqueles menos complexos, foi colocado à prova.
Na época, foi um baque. A demanda caiu 65% e a companhia teve de se “reinventar”, reduzindo suas operações de 55 clínicas para 37. “Fechamos unidades que já estavam ruins e demos mais ênfase para outras”, diz Renato Velloso, CEO da dr.consulta, ao NeoFeed.
Clínicas como a instalada no bairro paulistano da Vila Olímpia, por exemplo, sumiram do mapa. “Abrimos lá para pegar todas as pessoas que trabalhavam naquele comércio gigante. Com a covid, tudo fechou, a demanda ali derreteu”, diz Veloso.
Mas, por incrível que pareça, a situação dramática fez surgir uma nova dr.consulta no quesito eficiência. “Hoje, com menos pontos, consigo estar mais disponível para as pessoas e estamos faturando 15% a mais do que em janeiro do ano passado, antes da covid”, diz Velloso.
E a companhia, cuja fortaleza ainda são os atendimentos presencias e exames a preços populares que variam entre R$ 110 e R$ 120, começou a responder com agilidade a pergunta que o mercado se fazia, convertendo boa parte de seus atendimentos em 60 especialidades para o mundo digital.
Do serviço inicial de teleorientação sobre a covid-19 no início da pandemia, a rede ampliou a teleconsulta com hora marcada para 27 especialidades. Desde então, foram realizadas 200 mil teleconsultas e, atualmente, conta com uma média diária de 2 mil atendimentos.
A rede agora está lançando o serviço de 24 por 7, o teleatendimento em qualquer dia e hora da semana. E vai estender o serviço remoto para os retornos médicos. “Aí, todos estarão aptos a fazer dessa forma. Na maioria dos casos, não tem a necessidade de o paciente voltar presencialmente.”
O serviço de teleatendimento chegou a representar 15% do faturamento da empresa, um número guardado a sete chaves por Velloso, mas pesquisas internas mostram que 93% dos pacientes que adotaram esse formato continuarão. “Se eu vou no cardiologista a cada seis meses, o médico não precisa me ver pessoalmente toda hora”, diz Velloso.
Na contramão, buscando dar mais conveniência, algo que os principais players do setor de saúde fizeram nessa pandemia, a empresa também colocou em prática o serviço em casa. Oferece a coleta de exames e, em breve, vai passar a aplicar todo tipo de vacina na residência de seus pacientes.
A ideia, diz Velloso, é estar onde o paciente estiver. E, por conta disso, a própria dr.consulta passou a levar o serviço a outros canais. Está presente em marketplaces e ambientes digitais de empresas como a rede de farmácias Raia Drogasil, no superapp da Ame Digital, na empresa de benefícios Alelo e no portal da empresa de beleza Natura.
A companhia também virou investidora de uma startup de benefícios médicos chamada Yalo. A partir de mensalidades, que vão de R$ 24,90 a R$ 53,20, os membros têm descontos em consultas, em remédios e até em academias de ginástica.
A entrada no B2B
A rede, de certa forma, vem se transformando da mesma forma que os varejistas tradicionais. E tentando impulsionar outras verticais como o B2B, que hoje representa apenas 5% de seu faturamento. No início do ano passado, por exemplo, a dr.consulta fechou um acordo com a SulAmérica para a criação de um plano de saúde.
Batizado de Direto Sampa, ele custa, em média R$ 300,00, e a rede deste plano é 100% da dr.consulta quando se trata de atendimentos primário e secundário. Se o paciente precisa de um hospital para algo de maior complexidade, aí ele tem direito ao Oswaldo Cruz. No total, diz Velloso, são 3 mil beneficiários.
“A inovação nesse negócio é que a SulAmérica nos paga por vida contratada, não é fee for service. Dou todos os recursos sem limite", diz Velloso. Além da parceria com a operadora, a rede conta também com acordos com planos da Faceb, Metrus e Vivest, a última que administra as autogestões da Funcesp e Sabespeprev.
Em cinco anos, a meta é fazer como que o B2B represente entre 25% e 30% do faturamento da rede. “Temos muito potencial. O nosso concorrente é o SUS, temos um enorme mar azul”, diz Veloso.
O consultor Eduardo Tomiya, sócio-fundador da TM20 branding, ressalta a força da marca nessa disputa. “Eles resolveram uma dor nesse mercado popular, oferecendo serviços mais acessíveis”, afirma. “Eles têm um alto nível de conhecimento de marca.”
Mas não estão sozinhos. Outras redes surgiram pata disputar esse mesmo mercado. É o caso da Clínica SIM, criada em Fortaleza, e que tem entre seus investidores do CEO da Cogna, Rodrigo Galindo; e também da Cia da Consulta, que atua em São Paulo e conta com investidores como Elie Horn, da Cyrela.
De acordo com a pesquisa Healthtechs, eleborada em 2020 pelo hub de inovação Distrito, a dr.consulta é a marca com maior visibilidade entre as healthtechs do mercado e sua presença no estudo já gerou algumas discussões, aponta Gustavo Gierun, cofundador do Distrito.
“Tem uma grande discussão conceitual do que significa ser uma healthtech”, diz Gierun. “Na nossa visão, por ter disruptado um mercado tão regulado como o de saúde, eles se enquadram nessa categoria”, afirma. Há quem discorde dessa tese.
Jeff Plentz, que lidera o fundo de venture capital techtools, focado em empresas de saúde, afirma que, sim, a dr.consulta disruptou o mercado de atendimento primário e secundário, mas que não a considera uma healthtech. “Não dá para dizer isso. Eles não têm um modelo exponencial de tecnologia”, diz Plentz. “E isso dificulta em transformar o acesso em margem”, diz ele.
Pode parecer uma discussão efêmera, mas essa questão de se enquadrar em uma healthtech é crucial para as empresas de saúde, ainda mais em um momento em que a tecnologia vem ganhando cada vez mais protagonismo e o mercado de venture capital e os investimentos saltam exponencialmente.
De acordo com outro estudo da Distrito, o HealthTech Report, lançado em março, o Brasil fechou 2020 com 747 healthtechs. Nos três primeiros meses de 2021 foram investidos US$ 90 milhões em healthtechs nacionais, quase alcançando o montante de todo o ano passado, quando foram anotados US$ 106,4 milhões em aportes.
São desde novatas como a Alice, plano de atenção primária, que recebeu US$ 33 milhões em fevereiro e, quem diria, tem entre seus fundadores o cofundador da dr.consulta, Guilherme Azevedo; até empresas de saúde mental como Zenklub, que contou com uma injeção de US$ 45 milhões.
O fenômeno healthtech se deve a dois motivos. O primeiro, evidentemente, é a covid-19, que acelerou tecnologias que demorariam anos para entrar em vigência. O segundo é que se trata de um setor muito regulado, difícil de inovar e, quando se consegue criar algo diferente, o negócio tem potencial de crescer absurdamente.
“No setor financeiro, pelo menos aqui no Brasil, o Banco Central tem incentivado a inovação. Por isso temos visto muitos investimentos”, diz Gierun, do Distrito. “Isso ainda não aconteceu no mercado de saúde, mas vai acontecer esse amadurecimento no Brasil”, diz ele.
No mundo, os aportes em healthtechs crescem a uma velocidade ímpar. Se em 2019 foram investidos US$ 57,8 bilhões nessas startups de saúde, em 2020 o total chegou a US$ 84,3 bilhões. Há, de fato, muita liquidez no mercado e as boas histórias estão captando. “É o melhor momento para trazer investimentos”, diz um executivo do mercado de venture capital.
Desde 2011, quando foi criada pelo empreendedor Thomaz Srougi, a dr.consulta captou US$ 110 milhões, segundo Velloso. Mas a última grande captação foi em 2016. Desde então, entraram mais dois sócios convidados, em 2019, José Galló, presidente do conselho de administração da Renner, e o publicitário Nizan Guanaes.
Entre os investidores da dr.consulta estão nomes de peso como LGT, do príncipe de Liechteinstein; Madrone Capital Partners, da família Walton, que comanda o Walmart; Kaszek, o maior fundo da América Latina; o LTS, de Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira; Marc Benioff, da Salesforce; o Omidyar, do fundador do eBay Pierre Omidyar; o próprio Velloso, além, do fundador Thomaz Srougi.
Indagado sobre a dificuldade de captar novos aportes, dado o tempo dos últimos, Velloso afirma que esse não é um problema. “Todo dia gente interessada bate na nossa porta”, afirma. A questão, diz ele, é que a rede só vai buscar novos investimentos quando estiver preparada para entrar em outros estados. “Ainda estamos ajustando alguns ponteiros.”
Fora de São Paulo, a dr.consulta tem clínicas em Santos, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. Mas apenas uma em cada cidade. “Temos muita coisa para aprender. Estamos sentados no cockpit de uma empresa de saúde, com todas as complexidades de uma empresa de saúde, que atende gente, e tem todas as dificuldades de uma empresa de varejo. Quando abrimos a porta, tem que entrar pacientes para pagar a conta”, diz Velloso.
Um conselheiro de um grande hospital de São Paulo, que conhece a operação da dr.consulta, disse ao NeoFeed que Velloso, no cargo desde 2019, “tem arrumado a casa”. “Ele tem muito pé no chão e a operação está mais redonda”, diz ele. “Mas as margens não são muito altas.”
Velloso não abre esses números. Mas dá mostras do que tem feito para extrair os melhores resultados. “Conseguimos praticar preços baixos porque usamos muita tecnologia, temos todos os sistemas proprietários, temos mindset de tech”, afirma.
O executivo, que também fundou a Odontoprev, diz que a dr.consulta desenvolveu o próprio prontuário eletrônico onde são alimentados e guardados todos os dados dos pacientes. Esse prontuário tem mais de 300 protocolos clínicos e os médicos vão preenchendo os campos.
Um algoritmo de inteligência artificial vai conduzindo a consulta juntamente com o médico. E isso, diz ele, proporciona mais eficiência. “Há três anos, pedíamos uma média de quatro exames por consulta para chegar em um diagnóstico”, diz Veloso. “Hoje, pedimos 2,5 exames por consulta.”