O isolamento horizontal começou a ser adotado no País há cerca de um mês. Desde então, o modelo tem sido alvo de muitas críticas, inclusive do presidente Jair Bolsonaro. Para os detratores, a medida é uma dose excessiva, que não trará resultados efetivos na preservação das vidas e pode causar danos ainda maiores à economia.

Esse, no entanto, não é o diagnóstico do dr. Alexandre Ruschi. Aos 64 anos, 40 deles dedicados à medicina, o presidente da Central Nacional Unimed (CNU), maior operadora de planos de saúde do Sistema Unimed, entende que a receita em questão criou condições para que o Brasil supere a pandemia com menos impacto no sistema de saúde na comparação com outros países.

“Cada região do País vai enfrentar a pandemia em momentos diferentes. E isso só foi possível por conta do isolamento social”, diz Ruschi. Ele ressalta que a decisão foi acertada, mesmo que tenha sido adotada precocemente em alguns Estados. “E apesar de ser uma postura duramente criticada por algumas alas ideológicas, era a única saída possível.”

À frente da CNU, dona de uma carteira de 1,7 milhão de clientes e responsável pela gestão de parte do Sistema Unimed, presente em 4,6 mil cidades do País, Ruschi reconhece a gravidade e os riscos do coronavírus.

Ele acredita, porém, que a quarentena, seguida à risca e aliada a uma gestão bem articulada, vai permitir que as autoridades possam realocar a mão de obra e os equipamentos de acordo com as regiões e demandas mais urgentes em cada etapa da crise. E em linha com as necessidades da rede pública e do setor privado.

Em contrapartida, Ruschi faz ressalvas à conduta de Bolsonaro na crise. “Ninguém está dizendo que as autoridades e o presidente não possam errar”, afirma. “Mas é preciso errar com mais racionalidade. Não adianta abominar a ciência.”

Em entrevista ao NeoFeed, ele fala ainda sobre as regiões mais afetadas até o momento, os impactos da crise na cadeia do setor e a liberação de R$ 15,5 bilhões provenientes dos ativos garantidores das operadoras de planos de saúde, por parte da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Confira:

Os sistemas de saúde do mundo estavam preparados para enfrentar uma pandemia?
Nós tivemos tanta evolução na medicina, nos diagnósticos, nas pesquisas, na identificação de novas doenças e de como controlá-las, mas nenhum de nós podia imaginar que íamos enfrentar um desafio como esse. Nenhum sistema de saúde estava preparado. E estamos vendo a tradução disso nos resultados mundo afora. Um ou outro país coordenou muito bem, por exemplo, a Alemanha e alguns países do sudeste asiático, mas são populações muito pequenas.

E como o senhor avalia as perspectivas do Brasil diante do Covid-19?
Com os dados que estamos consolidando, acredito que iremos ter, lamentavelmente, muitas mortes. Mas penso que o Brasil vai passar pela crise de forma menos grave se comparado a outros países.

Por quê?
Cada região do País – e isso já está acontecendo - vai enfrentar a pandemia em momentos diferentes. E isso só foi possível por conta do isolamento social. Foi uma decisão acertada, mesmo que tenha sido tomada muito precocemente em alguns Estados. E apesar de ser uma postura duramente criticada por algumas alas ideológicas, o isolamento social era a única alternativa que o Brasil tinha. Ninguém está ignorando os impactos econômicos e sociais, mas era a saída possível. Porque a outra opção, os testes em massa, não estava disponível. Temos mais de 200 milhões de habitantes. Nossas estatísticas estão, seguramente, subdimensionadas, mas o isolamento social deve ajudar a atenuar a crise. E não podemos baixar a adesão a esse modelo.

O senhor considera que já chegamos ao pior momento da pandemia? Não há nenhum risco de um colapso no sistema de saúde?
Eu, sinceramente, não acredito nessa possibilidade. Vamos passar por situações de estresse em algumas regiões, mas, ao mesmo tempo, teremos outras com pouquíssimos casos. As próprias classes sociais foram sendo acometidas em momentos diferentes, o que permitiu um certo alívio nas redes privadas. Agora, a rede pública começa a saturar e vai acessar a rede privada, porque o leito é do cidadão, é daquele que precisa. Nós precisamos de organização e planejamento. Com uma gestão bem articulada, será possível realocar a mão de obra e os equipamentos. São Paulo, por exemplo, deve chegar na fase mais crítica na frente de todo mundo. E quando entrar na curva descendente, pode oferecer recursos para outros Estados que estejam ainda na fase de aceleração. Se estivéssemos todos no mesmo momento, o sistema de saúde, público e privado, com certeza não suportaria.

"Se estivéssemos todos no mesmo momento, o sistema de saúde, público e privado, com certeza não suportaria"

Com base nos dados da CNU, quais são as regiões mais preocupantes hoje?
Não temos ainda nenhuma crise em termos de ocupação, mas Manaus, São Luiz e Fortaleza são os lugares onde vemos mais criticidade no acesso à rede. Em São Luiz, 67% dos leitos disponíveis para acesso aos nossos beneficiários estão ocupados. Em Brasília, em torno de 69%. Então, ainda é perfeitamente assimilável. Isso, na rede privada. Ao mesmo tempo, os Estados vêm mobilizando estruturas de atendimento à saúde pública, o que nos dá a confiança de que vamos superar essa pandemia. Agora, nós acompanhamos constantemente cada região para que, caso seja necessário, façamos intervenções.

O senhor falou em articulação, como tem visto a coordenação entre a rede pública e o setor privado?
O governo demorou muito para obrigar que todos prestassem informações instantaneamente. Não fazia sentido não conhecer o que estava acontecendo, quer seja em um hospital público, filantrópico ou privado. Essa é a base para que possamos garantir que o leito será acessado por quem estiver precisando, independentemente se for da saúde pública ou privada.

A troca no comando do Ministério da Saúde pode trazer prejuízos no combate à crise?
O ministro Luiz Henrique Mandetta fez um trabalho exemplar. Não sou eu quem diz isso, são as pesquisas. Mas é claro que ele e o presidente Jair Bolsonaro não se entenderam. O que precisamos agora é de um interlocutor que consiga manter esse relacionamento, mas que possa seguir dando uma orientação coerente. Eu não conheço pessoalmente o ministro Nelson Teich, mas tive boas referências. E, até o momento, ele vem se mostrando aderente às recomendações da sociedade médica e científica.

O presidente Bolsonaro segue, constantemente, na contramão do que os especialistas no Brasil e no mundo recomendam. Como médico, como o senhor avalia essa postura?
Eu não posso, de forma alguma, ir contra o que orientou a minha formação. Essa postura cria um ambiente adverso no enfrentamento da pandemia. Não há mais espaço no mundo democrático para atitudes que não sejam baseadas no diálogo e em boas referências. E não há referência melhor que a sociedade científica. Esse momento exige que se tenha cabeça no lugar. Ninguém está dizendo que as autoridades e o próprio presidente não possam errar. Mas é preciso errar com mais racionalidade. Não adianta abominar a ciência. Há um exagero na politização, de todos os lados. Não bastasse o sofrimento extremo que a crise traz, ainda temos que enfrentar esses debates ideológicos. E no que diz respeito à economia, todos países vão sofrer. E o Brasil já vinha acumulando uma série de problemas na economia.

Nesse contexto, como a crise reforça os desafios das operadoras de planos de saúde?
As operadoras já vinham em um momento difícil há alguns anos, com a queda no número de beneficiários, por conta do desemprego. E agora, as famílias e empresas de todos os portes vão ser afetadas, o que vai transbordar nos planos de saúde. Ainda não conseguimos ter um diagnóstico preciso. Os níveis de inadimplência vêm subindo e ainda não sabemos em quais patamares vão estacionar ou se vão estacionar.

Por outro lado, alguns hospitais, especialmente aqueles localizados em regiões ainda pouco afetadas pelo Covid-19, alegam que as operadoras estão se beneficiando ao não autorizarem os procedimentos eletivos, o que estaria colocando esses hospitais em dificuldades financeiras...
Se eles estão perdendo receita, as operadoras também estão sofrendo, porque seus clientes já estão com dificuldades ou terão problemas para pagar seus planos de saúde. Todo mundo está sofrendo os mesmos impactos. Eu posso responder pela CNU. Em momento algum nós proibimos qualquer tipo de procedimento. Temos conversado, desde o início, com os hospitais e a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), e acolhido o que eles têm pedido. O que precisamos é chegar com baixa inadimplência no período de maior impacto da crise.

"Há um exagero na politização, de todos os lados. Não bastasse o sofrimento extremo que a crise traz, ainda temos que enfrentar esses debates ideológicos"

Como o senhor avalia as medidas para reduzir os impactos econômicos e, por consequência, os riscos de inadimplência?
As medidas são importantíssimas, mas o governo poderia ter sido mais ágil nesse pacote. O fato é que o País não conhecia nem os seus informais. E está tomando um susto porque já tem 40 milhões de pessoas acessando esses benefícios.

E quanto ao auxílio às operadoras. A liberação de R$ 15,5 bilhões dos ativos garantidores é suficiente para o setor atravessar essa crise?
Esses ativos são uma reserva constituída nos últimos 13 anos por meio de depósitos dos nossos beneficiários. Portanto, pertence a eles. Mas, até agora, as operadoras não foram informadas das regras de acesso a esse montante. O fato é que esses ativos são a forma de dar liquidez para que a cadeia dê suporte aos seus beneficiários. É muito melhor ter um sistema de saúde privado com condições de atender 47 milhões de pessoas e permitir que o SUS tome conta dos outros 160 milhões.

Mesmo sem esses recursos, a CNU tem como superar esse momento?
Só o Sistema Unimed tem 53 anos de operação. Isso quer dizer que vivemos 40 anos sem esses recursos. E nós temos uma peculiaridade. Nossa base tem 110 mil beneficiários acima de 60 anos, mas uma idade média baixa, no todo, de 30 anos. Ou seja, nosso grupo de risco não é tão relevante como em outras operadoras.

E qual é a situação hoje entre os beneficiários? Quantos casos foram confirmados?
Nós temos 608 beneficiários que já foram internados, com 26% deles confirmados com Covid-19, a maioria em São Paulo. Temos 36% que ainda aguardam resultados, 31% que foram descartados e 7% que não fizeram testes. Desses 608, 258 permanecem internados, 331 receberam alta e, lamentavelmente, tivemos 19 óbitos, uma letalidade em torno de 3%.

E como a CNU tem feito para apoiar seus beneficiários?
Nós criamos uma célula especial de atendimento a Covid-19, por meio do nosso 0800 e de outros canais. Já atendemos cerca de 4 mil pessoas, sendo que aproximadamente 1,2 mil passaram a ser monitoradas, com 79% dos casos suspeitos descartados. Desse total, 23% tinham percepção de sintoma forte e passaram a ter acompanhamento, por meio do monitoramento em casa ou dos nossos médicos especialistas.

Essas iniciativas envolvem algum recurso de telemedicina?
Nós já vínhamos trabalhando com essa proposta no campo de monitoramento e da orientação. E agora que as consultas nesse formato foram regulamentadas pela lei 13.989, estamos preparando a integração dessa plataforma, que já vinha sendo adotada na base de funcionários e dependentes, em todo o sistema da Unimed. Mas ainda não temos uma data oficial para esse lançamento.

Como a tecnologia pode ser importante para reduzir as lacunas do sistema de saúde do País?
Precisamos dotar as autoridades estaduais e municipais de tecnologia para que eles tenham maior autonomia e controle sobre o que está acontecendo. E é fundamental ter um conjunto de dados integrado que permita que o setor público e o setor privado troquem informações, e que se crie um prontuário eletrônico único de cada cidadão, que possa ser acessado no SUS e na rede privada.

"Não podemos mais viver num país onde você tem uma avenida Paulista com mais tomógrafos computadorizados que toda a Europa"

Além dessa questão tecnológica, qual aprendizado o sistema de saúde brasileiro pode tirar dessa crise?
A grande lição é o foco na atenção primária. Não é possível mais conviver com as altas taxas de diabetes, de hipertensão descontrolada e de doenças crônicas mal coordenadas. O setor desperdiça dinheiro por conta de um modelo de saúde focado na atenção terciária, que privilegia procedimentos de alta complexidade. Não podemos mais viver num país onde você tem uma avenida Paulista com mais tomógrafos computadorizados que toda a Europa. Esse dinheiro está fazendo falta agora. Os Estados Unidos, que investem 19% do PIB em saúde e são o país que nós sempre perseguimos, é quem mais está sofrendo agora, por conta desse modelo equivocado. Enquanto isso, o SUS, mesmo com problemas de estrutura, tem dado uma boa resposta e mostrado que é capaz de suportar essas e outras epidemias, desde que seja bem financiado, gerido e que esteja à frente da fila das prioridades.

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