Em um mundo exponencial não podemos pensar de forma linear. Um mês atrás alguém imaginaria o mundo de hoje, com a crise do Covid-19? Todos em casa, ruas desertas, aeroportos vazios, shoppings fechados. A pandemia se dissemina de forma exponencial e estamos aprendendo a conviver com a exponencialidade, da pior forma possível.

As mudanças que veremos no mundo pós-pandemia virão muito rápido. A dificuldade que temos é que as variáveis envolvidas são tantas que não conseguimos delinear como será o futuro.

O polo econômico se deslocará de “US-centric” para “China-centric”? Quais implicações disso? As redes globais de suprimento serão redesenhadas? Evoluiremos para uma nova versão do capitalismo? Que novos modelos organizacionais e modelos de negócios teremos? Como as empresas se estruturarão daqui para a frente?

Nenhuma pandemia provocou um efeito econômico global do tamanho desta. Não tivemos precedentes. Para a maioria das empresas, a sobrevivência no curto prazo é o único item da agenda. Outras estão tentando adivinhar através da cortina de incertezas, pensando como irão se posicionar uma vez que a crise tiver passado e as coisas voltarem ao normal.

A questão é: como será esse ‘normal’? Embora ninguém possa dizer quanto tempo a crise durará, o que vemos do outro lado não se parecerá ao normal dos últimos anos. Está se tornando claro que a nossa era será definida por um divisor de águas fundamental: o período anterior ao Covid-19 e o novo normal que surgirá na era pós-vírus: o “novo normal”. Vivenciaremos uma dramática reestruturação da ordem social e econômica na qual as empresas e a sociedade funcionavam no “antigo normal”, o mundo antes da pandemia.

Mas uma crise sempre traz mudanças positivas, por mais que seja uma crise. E alguns pontos dispersos começam a fazer sentido, se conseguirmos conectá-los:  surgiram novos hábitos que provavelmente permanecerão para sempre depois da crise, um novo jeito de trabalhar que deve se manter, e uma aceleração na percepção de valor da inovação.

A indústria investe milhões por ano em inovação e, muitas vezes, essa inovação não é valorizada de imediato. Agora, as pessoas estão entendendo mais como aquela inovação trouxe um benefício que não havia percebido. Das coisas simples, como usar o e-commerce para compras sem sair de casa, e não depender de uma grade rígida da TV, utilizando serviços de vídeo streaming, ao uso de impressoras 3D para imprimir rapidamente válvulas de conexão para respiradores em leitos de doentes infectados pelo vírus e a IA como arma eficiente na criação de novos medicamentos.

A dificuldade em absorvermos certas previsões futuristas, e delinearmos um mundo pós-pandemia, é que, embora a tecnologia evolua de forma exponencial, nosso pensamento intuitivo é linear. Assim, olhamos a evolução do século passado e projetamos mudanças para os próximos 100 anos baseados na linearidade do nosso modelo mental.

Olhamos a evolução do século passado e projetamos mudanças para os próximos 100 anos baseados na linearidade do nosso modelo mental

Mesmo o famoso jargão “pensar fora da caixa” nos mantém presos, pois usa como referência a própria caixa. Portanto, ao nos livrarmos do pensamento linear e pensarmos exponencialmente veremos que os próximos 100 anos não serão 100 anos de mudanças, mas 20 mil anos de mudanças à luz do atual ritmo de evolução da tecnologia. Inimaginável!

No nosso dia a dia, intuitivamente, preservamos as memórias recentes. E destas memórias projetamos o futuro. Por exemplo, o ano passado provavelmente nos trouxe mais evoluções que os dez anos anteriores, mas esquecemos destes detalhes. E projetamos os próximos anos como evoluções lineares do nosso último ano. A diferença entre o pensar linear e o exponencial é gritante. A crise do Covid-9 quebrou este paradigma. Nos obrigou a repensar tudo, de forma abrupta. A linearidade perdeu o sentido.

Outro dia, antes da pandemia, em um exercício simples com um grupo de CIOs apontei um desafio. “Como estará a TI dentro de uns cinco anos?”. A minha sugestão foi que, para visualizarem este futuro, até de forma conservadora, olhassem para uns dez anos atrás (idos de 2010) e vejam o que não existia (ou que era rudimentar) e que faz parte do dia a dia de hoje.

O iPhone era recente, o tablet foi lançado em 2010, as mídias sociais ainda tímidas, YouTube, IoT, IA, cloud computing, apps e bots, veículos autônomos, etc. E concorrentes com modelos de negócio inovadores, que souberam utilizar estas tecnologias de forma mais rápida e inovadora que as demais empresas, que já existiam há décadas? A tecnologia estava disponível a todo mundo, mas por que só algumas foram inovadoras? Hoje a pergunta terá respostas diferentes e a maioria dirá que “não tenho a mínima ideia, mas será diferente do que eu imaginava um mês atrás”.

Esse é o desafio das empresas e dos seus executivos: como imaginar o futuro e tomar decisões hoje? Difícil de responder e começa pela escassez de profissionais com percepção futurista. A própria dinâmica do mercado de TI é tão acelerada que o meio acadêmico não consegue acompanhar as mudanças e as demandas deste mercado. Continua formando profissionais para um mercado que já é passado. As tentativas de modernização acadêmica são através de cursos de especialização, mas mesmo estes perdem a corrida contra o conteúdo disponibilizado (muitas vezes gratuitamente) na web.

Esse é o desafio das empresas e dos seus executivos: como imaginar o futuro e tomar decisões hoje?

Em muitos setores, o fator tecnológico faz com que o conhecimento adquirido tenha prazo de validade curto. O que se sabe hoje perde valor ao longo do tempo, à medida que novas e inovadoras tecnologias disruptivas vão surgindo. O próprio conceito de carreira torna-se mais fluido. A pergunta “qual é a sua profissão?”, passa a não fazer mais sentido em função das demandas plurais no mercado.

O profissional hoje deve ser avaliado pela sua capacidade de mudança rápida, adaptação e versatilidade em relação a competências diversas e ao aprendizado contínuo. E não apenas por seu conhecimento nas tecnologias atuais. Aliás, já existem novas funções, que ninguém imaginava sequer que poderiam existir há apenas poucos anos atrás, como consultor de drones, curador pessoal de conteúdo, conselheiro de privacidade, terapeuta de desintoxicação tecnológica e profissionais de nano medicina.

Para uma discussão mais detalhada da questão do pensamento linear versus a evolução exponencial de tecnologia e seus impactos, recomendo a leitura de um texto de Ray Kurzweil, de 2001, “The Law of Accelerating Returns”.  Vale a pena investir tempo para reflexões mais aprofundadas sobre o assunto.

No aprofundamento dos impactos da exponencialidade nas organizações, recomendo a leitura do livro “Exponential Organizations” de Salim Ismail e Yuri van Geest, publicado em 2014 e que enfatizo que seja relido hoje. Cada capítulo desperta um insight instigante.

Um exemplo no livro que me chamou atenção é como uma inovação surge e provoca mudanças inesperadas em diversos setores da sociedade, cria novos negócios e até mesmo muda hábitos do nosso dia a dia. Diante deste contexto, as empresas tradicionais não conseguem entender as mudanças e se apegam aos seus modelos de negócio, tentando resistir usando as armas que conhecem, ignorando as novas armas que entraram no jogo.

O iPhone destruiu diversas indústrias, como as de GPS e câmeras fotográficas, e desmontou empresas bem-conceituadas e líderes de mercado como a Nokia

O lançamento do iPhone é um exemplo icônico. Destruiu diversas indústrias como as de GPS e câmeras fotográficas. Desmontou empresas bem-conceituadas e líderes de mercado como a Nokia, revolucionou a indústria de software com os apps e permitiu a criação de novos negócios.

O caso Nokia é emblemático de como uma organização não conseguiu ver o mundo de forma diferente, mas manteve seu pensamento linear. Dois meses após o lançamento do iPhone, a Nokia comprou por US$ 8 bilhões a Navteq, empresa de navegação por mapas, que gerava seus mapas baseada na coleta de dados por sensores. Com isso pretendia se fortalecer contra a ascensão da Apple e do Google Maps.

Infelizmente, quase no mesmo momento (2008) surgia em Israel uma empresa chamada Waze, que usava como sensores nós (as pessoas) e nossos smartphones. Não dependia de sensores físicos e podia crescer de forma exponencial sem ser intensiva em capital, como uma empresa baseada em sensores, como a Navteq.

A Nokia não tinha percebido a transformação que a indústria de smartphones estava provocando e em junho de 2012 seu valor de mercado caíra de US$ 140 bilhões para US$ 8,2 bilhões, o valor que ela tinha pago pela Navteq. Em 2013, o Google comprou o Waze por US$ 1,1 bilhão!.

A Nokia seguiu as velhas regras lineares e se manteve fiel aos princípios que uma barreira física, que funcionava no mundo físico como barreira a novos entrantes, também impediria o mundo digital de avançar. A Nokia gastou bilhões de dólares na compra de ativos físicos, enquanto o Waze simplesmente usava informação disponibilizada gratuitamente pelos usuários dos smartphones que tinham baixado o app em seus dispositivos. O Waze foi uma ruptura no modelo de negócios de mapeamento.

Uma outra mudança embutida na criação dos smartphones e da indústria de apps é a transformação do conceito da sociedade industrial de “possuir” ou “ter” para “usar”. O poder, até agora, esteve em quem tinha mais objetos físicos (fábricas, equipamentos, imóveis, automóveis, etc.). Mais e mais fábricas, por exemplo, demandavam mais e mais pessoas, e complexas estruturas organizacionais para gerenciá-las.

A sociedade industrial criou a organização hierárquica, que hoje nos é Natural e emblemática de qualquer empresa. Simples. Peça a um amigo para descrever a empresa onde ele trabalha e de imediato ele vai desenhar o organograma hierárquico dela. O mundo analógico é linear por natureza.

O mundo analógico é linear por natureza

Se para fabricar determinado produto preciso de x recursos, para dois produtos, 2x recursos. Se um caminhão misturador de concreto substitui 100 operários, acontece uma mudança de escala. Mas, neste nível tecnológico, para substituir 200 operários preciso de 2 caminhões, para 300 operários, 3 caminhões e assim sucessivamente. A linearidade permanece. Quando o pensamento é linear, as operações são lineares e as medidas de sucesso são lineares, a organização é linear.

Como são estas empresas lineares? Estrutura hierárquica, matricial e gerenciada de forma top-down (comando e controle), direcionada por resultados financeiros de curto prazo, planejamento estratégico baseado na extrapolação linear do passado, avessa à riscos, inflexível nos processos e mudanças organizacionais, grande número de funcionários (ter dezenas ou centenas de milhares de profissionais é símbolo de orgulho e é mostrado nas slides de apresentação da empresa), controla seus próprios ativos e investe pesadamente em manter o status quo e combater a ruptura, vista como ameaça letal.

Relembrando a frase do estrategista John Hagel: “nossas organizações estão configuradas para resistir às mudanças que vem de fora”. Não entendem e nem adotam inovações de ruptura em seus modelos de negócios. A crise do Covid-19 rompeu com esse pensamento. As mudanças aconteceram à fórceps.

A dificuldade da maioria das empresas em lidar com a crise reside no fato que a estrutura matricial impossibilita mudanças rápidas. Imagine um cenário típico em empresas onde gestão de produtos, marketing e vendas são verticais e funções de suporte como RH, finanças, jurídico e TI são horizontais.

Para marketing tentar algo inovador deve obter aval do jurídico, ter apoio da TI, conseguir verba de finanças e eventualmente depender do RH para contratar um recurso específico. Pelo quadro, fica fácil imaginar quão difícil é reagir rápido a uma mudança no cenário de negócios.

Com o agigantamento das organizações, cada setor passa a ter objetivos próprios. Assim, o jurídico avalia a questão legal sem considerar adequadamente se aquela demanda é essencial ao negócio, pois seus incentivos e avaliações de desempenho são diferentes dos da área marketing. TI, neste cenário, também fica em situação complicada. A qual vertical atende? A qual dá prioridade?

Uma das causas do “shadow IT” é exatamente isso. A prioridade estabelecida por TI não é adequada as áreas de negócio, que aproveitam a possibilidade do novo mundo tecnológico (apps, cloud, big data, IA, etc.) e criam suas próprias soluções, passando por cima do tradicional setor de TI.

A evolução exponencial da tecnologia e seus impactos não consegue ser absorvida em uma organização que pensa linearmente

A evolução exponencial da tecnologia e seus impactos não consegue ser absorvida em uma organização que pensa linearmente. É fato que muitas organizações, grandes e matriciais, respondem lentamente às mudanças no cenário tecnológico. O futuro será das empresas exponenciais, ou ExOs ou Exponential Organizations, que, ao contrário das atuais, mantém apenas um pequeno grupo de funcionários e usam intensamente tecnologias avançadas e recursos externos. Conseguem com isso mudanças rápidas.

É possível pensarmos em modelos de organização diferentes? Sim, e um exemplo interessante é o GitHub, hoje a maior plataforma de colaboração de softwares open source. Para recordarmos, o movimento open source disseminou-se com o Linux e diversos sites como o SourceForge. Entretanto, o movimento teve um momento de rápido crescimento, mas depois estabilizou-se.

Em 2008, apareceu uma companhia chamada GitHub. É uma plataforma de rede social para desenvolvedores na qual as pessoas e sua colaboração são o elo principal e não o código em si. Quando um desenvolvedor submete um código, ele é revisto e comentado por outros desenvolvedores, que também o pontuam.

Interessante que o GitHub não tem projetos próprios, mas usa muitos dos projetos hospedados nele para sua própria otimização. A dinâmica de gamificação é exaustivamente usada, com um sistema de reputação valorizando os desenvolvedores. Uma posição elevada no ranking do GitHub é considerada hoje de grande valor no currículo de um profissional.

No início de 2020, pouco mais de dez anos de sua criação, tem cerca de 40 milhões de desenvolvedores atuando colaborativamente em dezenas de milhões de projetos. Como ser valorizado pelo GitHub conta pontos e salário na carreira, os desenvolvedores atuam intensamente colaborando com os projetos que consideram mais prazerosos.

É um exemplo típico de uma organização exponencial: colaborativa, aberta, transparente, direcionada pela comunidade e com um staff mínimo para coordenar todas as suas atividades. Embora seja focado em desenvolvedores de software, seus princípios podem ser aplicados a diversas outras funções como advogados, médicos, designers, etc.

A transformação digital não é mais uma discussão sobre o futuro, mas presente no dia a dia, afetando empresas, sociedade e criando novos modelos de negócio

Em resumo, a transformação digital não é mais uma discussão sobre o futuro, mas presente no dia a dia, afetando empresas, sociedade e criando novos modelos de negócio. Recomendo enfaticamente aos executivos das empresas a olharem pelo menos cinco anos à frente e investir pelo menos uns 20% a 30% de seu tempo a se preparar para este desafio.

Devemos olhar o cenário dos próximos cincos anos, até 2025, com a consciência que a transformação é exponencial e não linear. Isso significa que, para entender a amplitude do que vem pela frente, no mínimo devemos olhar para dez ou quinze anos atrás, e ver o presente à luz das mudanças comparadas com este passado recente.

O nosso pensar de forma linear quando a evolução é exponencial nos leva a terrível armadilha de subestimar o impacto das transformações. No início dos anos 1980, a conceituada consultoria McKinsey aconselhou a AT&T a não entrar no mercado de telefonia a móvel, prevendo que, em torno do ano 2000, este mercado não chegaria a um milhão de aparelhos, devido ao seu alto custo. No ano 2000, havia 100 milhões de celulares. O erro de 99% fez com que a AT&T perdesse a grande onda da mobilidade.

Outros exemplos de previsões de futuro baseados no pensamento linear estão por toda a parte. Em 2009, o Gartner previu que em 2012 o sistema operacional móvel mais popular seria o Symbian, com market share de 39%, e o Android não chegaria nem a 15%. A realidade? Em fins de 2012, a Symbian saiu do mercado e Android já era o líder do setor.

O risco de mantermos nosso pensamento linear, quando a evolução é exponencial, ou seja, dobrando a cada poucos anos, é que cada erro de previsão é de 50%. Se errarmos em poucas previsões, simplesmente não teremos mais condições de nos mantermos no mercado.  Já estaremos ultrapassados e tornados obsoletos.

Um choque da magnitude que estamos vivendo criará uma transformação nas preferências e expectativas dos indivíduos como cidadãos, funcionários e consumidores. Tais transformações, sua intensidade e amplitude provocarão um impacto imenso no modo como vivemos, trabalhamos e usamos a tecnologia. Mas, só começaremos a reconhecer isso com mais clareza nos próximos meses. As instituições que se reinventarem para extrair o máximo proveito das melhores visões e previsões, à medida que as preferências mudam, serão as bem-sucedidas.

Todo esse contexto nos dá um pano de fundo para a citação de David Rose, autor do livro “Angel Investing: the Gust Guide to Making Money and Having Fun Investing in Startups”: “qualquer companhia desenhada para ter sucesso no século 20 está destinada a fracassar no século 21”. Podemos adicionar hoje que qualquer empresa desenhada para o mundo de antes da pandemia correrá sérios riscos de sobrevivência no mundo pós-Covid.

*Cezar Taurion é Partner e Head of Digital Transformation da Kick Corporate Ventures e presidente do i2a2 (Instituto de Inteligência Artificial Aplicada). É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral. Antes, foi professor do MBA em Gestão Estratégica da TI pela FGV-RJ e da cadeira de Empreendedorismo na Internet pelo MBI da NCE/UFRJ.