Cerca de 20 minutos antes da posse do Joe Biden, às 12 horas do horário local, da quarta-feira, 20 de janeiro, quatro homens munidos de alto-falantes e cartazes se posicionaram em frente ao bloqueio na face leste do Capitólio, na principal avenida que leva ao Congresso americano.

Ali, eles falavam sobre suas crenças ao megafone, pregando contra o casamento gay, o aborto, a legalização das drogas e outras pautas associadas ao partido democrata do agora presidente Joe Biden. O volume de sua religiosidade gerou uma reação oposta de igual intensidade. Manifestantes contrários começaram, então, a bater panelas. Sim, o tilintar das panelas também é uma prática usada em protestos em Washington DC.

Embora a tragicomédia da vida real tenha proporções diminutas, é uma pequena amostra dos muitos e grandiosos "desencontros" dos americanos, que divergem mais do que nunca em questões raciais, de gênero, sociais, econômicas e até eleitorais.

"Contem os votos à mão e acabem com essa charada", dizia o cartaz segurado por um americano na face norte do Capitólio, mantendo a cabeça erguida em meio às vaias e críticas que recebia pelo sinal.

Para o rapaz, a narrativa de uma eleição fraudulenta, propagada pelo agora ex-presidente Donald Trump, não é só plausível, como verídica. E o polêmico republicano, alvo de um segundo processo de impeachment, não fez questão de apaziguar os ânimos.

Na saída da Casa Branca, pouco depois das 8 horas da manhã do horário de Washington, Trump falou a seus apoiadores de uma base militar. Além de voltar a chamar o novo coronavírus de "vírus chinês", Trump afirmou que vai continuar lutando pelo interesse de seus apoiadores e prometeu. "Nós voltaremos, de uma forma ou outra."

As últimas palavras do mandatário como chefe de estado da nação mais rica do país foram recebidas com fortes aplausos pela pequena multidão, que depois se dispersou pelas ruas da capital, mas certamente não se extinguiu. Ciente dos desafios que vêm com essa rachadura social, Biden fez questão de tocar na ferida logo em seu discurso de posse.

"Juntos, nós devemos escrever uma história americana de esperança, não de medo. De unidade, não de divisão", falou o presidente, que prometeu ainda governar para todos os cidadãos do país e não apenas pelos seus aliados.

Para colocar em prática o seu discurso, Biden dividiu o palco com os ex-presidentes Bill Clinton (1993 - 2001), George W Bush (2001-2009) e Barack Obama (2009-2017). De mãos dadas, democratas e republicanos reforçaram a ideia de união, apesar das diferenças partidárias e políticas, porque, ainda que o jogo democrático saudável acomode uma pluralidade de vozes dissonantes, uma fissura dessa magnitude pode custar caro aos Estados Unidos.

"O preço de uma sociedade dividida ao meio é sempre alto, porque as pautas mais urgentes tendem a ser as mais sensíveis e raramente são aprovadas em casos de cisão", diz ao NeoFeed o professor de economia da UCLA, Simon. 

Para o docente, a rachadura é ainda mais preocupante em momentos de crise, como a que os americanos vivem agora. "Algumas decisões passam a ser ideológicas e movidas por emoções, o que não é bom para o país. Além disso, a opinião pública passa a ter um peso muito grande, por questões políticas", afirma Bord. 

Grupo de manifestantes em frente o Capitólio, durante a posse de Biden

De acordo com o US Debt Clock, a dívida nacional dos Estados Unidos se aproxima rapidamente dos US$ 27,8 trilhões, a taxa de desemprego encosta em 7% e os pequenos comerciantes, que geram 44% de toda a renda do país, segundo o US Small Business Administration, estão à beira de um colapso.

"A pandemia fechou temporariamente mais de 100 mil comércios e a expectativa é que cerca de 40% não retomem mais suas operações. Qual é o plano para resgatar esses empreendedores e reaquecer a economia?", indaga Bord.

Joe Biden negocia para o Congresso aprovar um pacote de resgate de US$ 1,9 trilhão, de onde sairiam os US$ 400 bilhões destinados a comunidades e pequenos negócios. O plano inclui ainda algumas ideias que já foram rejeitadas pelos republicanos, como o aumento do salário mínimo para US$ 15 por hora. 

Isso significa que o texto original, provavelmente tenha que ser negociado para conquistar os 60 votos no Senado, necessários para tirar a "ideia do papel". Com o controle do Senado e da Câmara dos Representantes nas mãos dos democratas, a expectativa é que o governo de Biden seja facilitado, apesar da divisão.

Mas o professor de ciências políticas da Universidade da Georgia, Scott Ainsworth, explica que não é bem assim. "Temos nos Estados Unidos o que chamamos de filibuster, que é o termo informal dado a qualquer tentativa de bloquear ou atrasar a ação do Senado sobre um projeto de lei ou outro assunto, debatendo-o longamente, apresentando numerosas moções de procedimento ou por qualquer outra ação retardadora ou obstrutiva", diz ao NeoFeed.

Esse "esquema", segundo Ainsworth, existe há mais de uma década e pede que os partidos trabalhem juntos, já que precisam de 60 votos para conseguir passar a maioria das propostas. "O controle do Senado vem com 50 cadeiras, mas você ainda precisa do outro partido para avançar as pautas", afirma o professor de ciências políticas da Universidade da Georgia. 

Para Ainsworth, a experiência de Biden tende a ser positiva nesse caso, sobretudo porque ele tem adotado um discurso "moderado" e conciliatório. O discurso de união e paz feito pelo presidente na cerimônia de posse, porém, parece não ter chegado ao ouvido de todos.

No fim da noite, manifestantes queimaram bandeiras americanas em protestos à posse do novo presidente e incendiaram ainda mais a necessidade do novo mandato em lidar com a separação de seu próprio povo, antes que seja tarde e caro demais.  

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