Mexer em um time estabelecido já é complicado para qualquer técnico. Imagine, então, ter de mudar o modo de trabalhar de um time que está ganhando. Essa é a tarefa que o executivo Renato Garcia Carvalho tem pela frente.

Há três meses, ele deixou a presidência da divisão de healthcare da Philips para assumir o comando da farmacêutica suíça Novartis no Brasil, uma operação com duas fábricas, 2,5 mil funcionários e um faturamento que deve alcançar R$ 4 bilhões neste ano.

Carvalho chegou com duas missões muito claras: ajudar nas transformações cultural e digital pelas quais a companhia passa mundialmente e liderar as discussões ao redor dos medicamentos de terapias gênica e celular com o poder público brasileiro.

Internamente, ele tem carta branca do CEO mundial, Vas Narasimhan. “A indústria farmacêutica é bastante hierárquica, muito formal. O Vas chegou com uma proposta de sermos menos formais, mais ágeis, de darmos mais autonomia para as pessoas, sermos mais curiosos com o que acontece fora”, diz Carvalho ao NeoFeed.

Externamente, ele terá de iniciar diálogos com a Anvisa e o Ministério da Saúde para colocar os medicamentos inovadores na pauta. “Acreditamos que esses medicamentos inovadores possam estar no SUS dentro de um ano.”

Em sua primeira entrevista a um veículo de comunicação desde que assumiu o cargo de CEO da Novartis, Carvalho falou da polêmica ao redor do Zolgensma, remédio para atrofia muscular espinhal que custa US$ 2,1 milhões; os desafios do sistema público de saúde; investimentos em startups e como a tecnologia tem acelerado a competição. Acompanhe:

Como foi a decisão de sair da Philips para a Novartis?
Eu estava bem na Philips, é uma superempresa. Mas, quando houve o contato com a Novartis, o que me atraiu foi continuar no setor de saúde, porém, em outra etapa da cadeia. Aqui, a proximidade com o paciente é maior, o impacto é maior. É uma companhia que trabalha com inovação e com produtos da saúde mais acessíveis para a população mais pobre. Além desse propósito, teve também o desafio. A indústria da saúde está em um momento em que se desenvolve muito rápido. Ela sempre se pautou em desenvolver uma molécula e depois usava daquele retorno por muito tempo. Com a transformação digital e as novas tecnologias, esse processo tem sido mais rápido.

Quanto tempo levava e quanto tempo leva hoje?
As regras de patentes não mudaram. O ponto é que hoje os concorrentes conseguem chegar em moléculas parecidas ou melhores mais rapidamente. No passado, isso demorava dez anos, hoje em dois anos, três anos.

Como resolver essa equação? Os investimentos são muito altos...
Nossa estratégia é pautada por moléculas genéricas e innovative medicines. O que se vê hoje são grandes companhias fazendo aquisições de pequenas startups, focadas em terapias gênicas ou celular, numa frequência maior do que acontecia antes. A transformação tem acontecido em todas as indústrias. Mas a diferença, na indústria farmacêutica para as demais indústrias, é que é muito importante ter escala e investir quantias maiores. Para você ter uma ideia, a Novartis investe US$ 10 bilhões por ano em inovação, pesquisa e desenvolvimento no mundo.

"A Novartis investe US$ 10 bilhões por ano em inovação, pesquisa e desenvolvimento"

Tem investido em startups?
Fizemos uma aquisição de bilhões de dólares, a AveXis, e quando a Novartis traz uma startup dessa tem dois movimentos. Primeiro tenta manter ela, na medida do possível, isolada para que ela continue ágil e permaneça inovando. Em segundo lugar, você traz a plataforma de uma multinacional com mais de dois séculos de experiência em pesquisa e desenvolvimento e alavanca aquilo. Isso é bom para o paciente, aceleramos processo de inovação, traz escala e reduz o custo.

Você disse que a Novartis atua em genéricos e innovative medicines. Quais são as diferenças entre essas divisões?
Nos genéricos, trabalhamos com a marca Sandoz e impactamos 6 milhões de pessoas por ano aqui no Brasil. A Novartis tem a estratégia de manter a área de genéricos porque temos como propósito trazer acesso para a população no Brasil. Por outro lado, terapias gênicas e celulares representam uma mudança radical na medicina.

O que isso representa?
Cada vez mais, a medicina é personalizada. O ser humano reage de formas diferentes a diversas terapias. A medicina personalizada é uma tendência. Acho que a gente vai, ao longo do tempo, ser mais preciso como um todo na medicina. Mas precisamos tomar alguns cuidados. A medicina personalizada hoje traz um custo muito alto para a indústria.

Como vocês fazem essa equação?
Nós, como companhia, tomamos a decisão de não focar 100% da nossa estratégia nisso. Podemos estar discutindo hoje, como estamos, uma terapia gênica e celular que impacta 200 pessoas no Brasil. Mas tem duas maneiras de olhar isso. Podem até questionar. ‘Nossa, estão fazendo uma pesquisa só para 200 pessoas? Tem sentido fazer isso?’ A gente entende que tudo tem um começo e queremos ajudar a estender a vida dessas pessoas. Sem isso, as pessoas têm uma expectativa de vida muito baixa. Ao mesmo tempo, no ano passado, a Novartis investiu US$ 100 milhões para ajudar a erradicar a malária na África. Esse equilíbrio entre ir para a inovação e garantir que doenças que não têm tratamento passem a ter é tão importante quanto trabalhar na saúde básica de muita gente que morre e não deveria porque é uma doença com cura.

"No ano passado, a Novartis investiu US$ 100 milhões para ajudar a erradicar a malária na África"

Que tipos de doenças que estão sendo estudadas?
Por exemplo, atrofia muscular espinhal. É uma doença que a pessoa nasce com isso. A consequência é que a pessoa perde a força e o poder dos seus músculos. No extremo, não consegue nem respirar e morre.

Aliás, há uma polêmica envolvendo a Novartis por conta do preço do Zolgensma, remédio para essa doença. Ele custa US$ 2,1 milhões uma dose...
O custo está associado ao quanto você investiu ao longo do tempo. Tem que tomar cuidado. Sempre que a Novartis entra numa discussão de ter uma inovação a gente tem por princípio ter um custo para o sistema de saúde que se justifique. O problema é que, quando vem um custo como esse, as notícias vêm ao redor da foto que se tira. Nesse caso, para os Estados Unidos, foi 50% mais barato tratar com o nosso medicamento do que com os tratamentos atuais. E isso foi aprovado. A pessoa que recebe o nosso medicamento toma uma única dose e não precisa tomar mais. Caso fizesse o tratamento convencional, custaria mais para o sistema de saúde em um período de dez anos. Agora, é polêmico pelo valor que se investiu e pelo preço. Mas, no fim do dia, o Zolgensma tem sido aceito porque se prova que há uma economia para o sistema de saúde ao longo do tempo.

O sistema de saúde brasileiro vai receber esse medicamento?
Vamos entrar com essas discussões com o Ministério da Saúde. O sistema de saúde já tem um problema de orçamento. A gente vai trazer a discussão fazendo uma análise e mostrando o custo para o sistema de saúde. Vamos nos comprometer a ter uma precificação que trará uma economia para o sistema de saúde. Outra coisa é a capacidade de liquidez de o governo brasileiro fazer um pagamento desse. Não dá para ser de uma vez. Vamos estudar formas de financiamentos de médio e longo prazos para que salve a vida das pessoas, traga economia para o sistema de saúde e que seja exequível ao longo do tempo. Vamos ter discussões com todos os órgãos do governo e acreditamos que podemos ter medicamentos como esses dentro de um ano.

Que outros medicamentos se encaixam nesse contexto?
Nos Estados Unidos, temos um medicamento que proporciona 86% de cura em crianças chamado Car-T, para câncer de sangue, e custa US$ 500 mil nos EUA. Tudo isso está em torno de um caminho da medicina chamada terapia gênica celular. E, como toda a inovação, o começo é caro e tende a diminuir. E, mesmo sendo caro, já tem uma economia para os sistemas de saúde hoje.

Como é a operação da Novartis no Brasil e como ela é dividida?
As terapias gênicas celulares ainda não existem no Brasil, é o futuro que está por vir. A Sandoz, nossa marca de genéricos, representa cerca de 30% do nosso faturamento no País. O que não é genérico é dividido entre oncologia e farma, que são outras áreas terapêuticas como oftalmologia, cardiologia, entre outras. O grupo Novartis deve terminar 2019 com uma venda bruta de mais de R$ 4 bilhões no Brasil.

Quais investimentos serão feitos?
Temos duas fábricas no Brasil. Uma aqui no Butantã, em São Paulo, e outra em Cambé, perto de Londrina, no Paraná, que dá mais suporte para a Sandoz. À medida que a economia brasileira passe a ter uma perspectiva mais positiva, faremos novos investimentos. Mas, nas terapias mais avançadas, que é uma estratégia de médio e longo prazos, a ideia é a de que o Brasil se torne um hub para a América Latina. É algo para daqui cinco anos. Mas já investimos bastante no Brasil. Até 2022, estamos investindo R$ 1 bilhão em pesquisas clínicas de novos medicamentos aqui no País.

Fábrica da Novartis em Cambé, no Paraná, que produz os remédios da marca de genéricos Sandoz

O mundo e as indústrias estão se transformando. Como isso tem afetado a Novartis?
Há uma transformação cultural na companhia. Temos um CEO, o Vas Narasimhan, que é um expoente na indústria, um cara fora da curva. Ele encontrou uma companhia com sucesso, consolidada, com mais de 200 anos e disse que para termos mais 200 anos precisamos nos transformar. A indústria farmacêutica é bastante hierárquica, muito formal. Ele chegou com uma proposta de sermos menos formais, mais ágeis, dar mais autonomia para as pessoas, sermos mais curiosos com o que acontece fora.

Como fazer isso em uma empresa que tem 105 mil funcionários no mundo?
Fazer isso é difícil. Sabe por quê? Quando você precisa mudar porque alguém vai te engolir, é mais fácil. Ou você muda ou morre. Aqui está tudo bem, a empresa é líder, as pessoas se dão bem, o retorno sobre o investimento é alto, e vem alguém e diz que precisa mudar. Ele tem um jeito único de inspirar. Antes de aceitar o convite para vir para a Novartis, tive uma conversa com ele e falamos sobre a necessidade de gente nova para fazer a transformação, para unir as pessoas.

O discurso é bacana. Na prática, o que mudou?
Não vai chegar um momento que a gente vai dizer, quinta-feira, 2022, mudamos essa cultura as 3:37h da manhã. É uma jornada feita de comunicação e de uma parte importante de símbolos. Para começar, a sala de reunião hoje usada pelas pessoas para conversar era a sala do presidente. Como você, no nono andar de um prédio, com elevador exclusivo, restaurante exclusivo, pode ter contato com as pessoas e liderar uma transformação cultural? Não tem mais vagas determinadas para diretores, não tem mais o dress code de terno e gravata, pode fazer home office. Temos trazido ambientes mais liberais, mais diversidade e dado mais autonomia para as pessoas. Antes tinha comitê para tudo, agora são grupos pequenos, decisões mais rápidas, menos salas para as pessoas. Vamos tirar todas e todos trabalharão juntos. Estamos implementando metodologia ágil.

"Não tem mais vagas determinadas para diretores, não tem mais o dress code de terno e gravata, pode fazer home office"

Ao mesmo tempo que é legal, deve ter muita gente que não quer se adaptar a isso. Como resolver essa questão?
Temos pessoas menos afeitas a esse modelo porque viveram um outro modelo a vida inteira. Nosso papel, como liderança, é dar suporte para essas pessoas entenderem esse novo modelo e facilitar o máximo possível qual é a direção. Agora, no limite, essa companhia tem um novo modelo, uma nova cultura e uma nova direção. É natural que algumas pessoas saiam. Mas temos tido sorte e muito trabalho de acomodação das gerações anteriores. Tem pouca gente saindo, não estamos perdendo líderes com experiência.

É uma transformação mais fácil para a base do que para a liderança, não?
Acho que essa resistência é maior no middle management.

Recentemente, algumas das maiores empresas americanas assinaram uma carta afirmando que o propósito vem acima do lucro. Como você enxerga isso?
A ideia do Vas e do board é a de que o sucesso da Novartis não pode ser medido só pelo valor das ações na bolsa. Temos um propósito maior como companhia que é o retorno para a sociedade. Para fazer isso, precisamos criar massa, criar escala e trazer retorno para a sociedade. Não podemos discutir um medicamento de milhões de reais e fechar os olhos para o que está acontecendo ao nosso redor. E não estamos fechando os olhos. Temos um programa na África para acabar com a malária e vendemos o medicamento por US$ 1. E é obvio que o custo é muito maior do que isso. Estamos fazendo muita coisa e que muita gente não sabe. Queremos lançar algo no Brasil, em outubro, para doença de Chagas.

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