Ao completar 25 anos, sem dinheiro e nenhuma perspectiva para fazer o que tanto amava – editar livros, falar de livros, ler livros –, a americana Anna Wiener trocou Nova York por San Francisco, onde ficava o centro da corrida do ouro do século XXI, o Vale do Silício.

Segundo a autora de "Vale da estranheza: fascínio e desilusão na meca da tecnologia" (Companhia das Letras), que está sendo lançado no Brasil, desde o início, viu-se em um mundo dominado por homens e repleto de extravagâncias e empreendedores inexperientes que buscavam a todo custo poder, glória e, claro, progresso tecnológico capaz de mudar o mundo e o comportamento das pessoas – mais uma vez.

De um jeito um tanto fragmentado, ela explica como se impôs o modelo de startup de tecnologia nas duas primeiras décadas deste século em que investidores de risco não tinham cautela em destinar grandes somas de dólares em projetos muitas vezes duvidosos que usavam tecnologia da informação para até mesmo interromper negócios tradicionais e serviços públicos e, assim, gerar dividendos bilionários.

Era preciso ganhar bastante para compensar os tiros errados que davam também. Ganhava quem tinha poder de persuasão, principalmente. Descrever isso de forma contundente torna o livro de Anna Wiener de grande impacto no leitor. Sua acidez aparece em descrições do cotidiano, em que tudo parecia funcionar como doutrinamento robótico.

“Defender a causa: a máxima estava nos nossos anúncios de emprego e nas nossas comunicações internas. A ideia era pôr a empresa em primeiro lugar, a maior forma de elogio. O auge era receber um agradecimento do CEO em pessoa — ou, melhor ainda, no chat da empresa — por Defender a Causa. Isso acontecia, de tempos em tempos, se um de nós fizesse algo especialmente útil que extrapolasse a descrição de nossas funções. Se ele estivesse de bom humor. Se tivéssemos sorte”.

Tal comportamento parecia tão natural que a maioria achava que tudo devia funcionar assim, enquanto se criava uma cultura de rotina asfixiante, mantida por jovens sem referências de trabalho.

“A camaradagem veio fácil. O escritório era amplo a ponto de mantermos distância uns dos outros, se assim quiséssemos, mas ficávamos perto. Todos sabiam quem estava de ressaca. Todos sabiam se alguém sofria de síndrome do intestino irritável induzida por estresse. Nos guiávamos pelo que, de brincadeira, chamávamos métrica bunda-na-cadeira: nossa presença era a prova. Fazer corpo mole não era opção. Se alguém faltava, havia algo errado. As pesquisas mostravam pouca correlação entre produtividade e muitas horas de trabalho, mas o setor tecnológico prosperava seguindo a ideia de que era excepcional: os dados não se aplicavam a nós”.

Misoginia introjetada

Para ficar mais à vontade e não conter a sinceridade, Anna Wiener não cita nomes. Nem mesmo de redes sociais. Limita-se a fazer referência “àquela (rede social) que todo mundo odeia”.

Ela fala em diversas passagens de um mundo opressor dominado por homens muitas vezes machistas e sexistas: “Ser a única mulher na equipe não técnica, dando assistência técnica a desenvolvedores de softwares, era como uma terapia de imersão para uma misoginia introjetada. Gostava de homens — tinha um irmão. Tinha namorado. Mas havia homens por todos os lados: os clientes, meus colegas de equipe, meu patrão, o patrão dele”.

Os papéis pareciam definidos e sem questionamentos, segundo ela: “Eu vivia consertando as coisas para eles, tentando não ferir a vaidade deles, torcendo por eles. Confirmando, evitando, confidenciando, colaborando. Defendendo o avanço de suas carreiras; pedindo pizza para eles. Meu emprego tinha feito com que eu, uma autodenominada feminista, me colocasse em uma situação de deferência incessante, profissionalizada, ao ego masculino. De tempos em tempos, as mulheres do escritório iam a uma adega próxima com lareiras fajutas e pratos de frios suados, e tentavam afogar essas mágoas na bebida”.

Entre os melhores

Se existem tantos livros sobre o Vale do Silício, berço da revolução digital nos Estados Unidos, por que destacar o de Anna Wiener? Primeiro, pela reputação que a obra atingiu ao ser lançada no começo de 2020: foi o melhor livro da Amazon de janeiro daquele ano, um dos 22 livros da Vogue para ler no inverno, fez parte da lista dos 10 livros do Washington Post para ler em janeiro, ficou entre os 12 melhores títulos para ler da Elle em 2020, foi um dos 12 lançamentos do The New York Times para ler em janeiro, entrou nas 15 melhores obras de inverno da Esquire, tornou-se um dos 10 mais Livros de não-ficção antecipados de 2020 e esteve entre os 50 mais esperados de 2020 da Entertainment Weekly.

Annie Wiener descreve o cotidiano de forma ácida como se que tudo parecesse funcionar num doutrinamento robótico

O The New York Times o chamou de extraordinário e destacou sua narrativa como afiada e seca, construída por frases precisas e perfeitas para deixar uma atmosfera constante de pavor emergir. Para começar, Anna Wiener escreveu um livro de memórias. Não exatamente uma autobiografia porque ela dá um testemunho do que viveu na área de tecnologia, mas não foca em si e sim no que viu e vivenciou.

Descreve o que presenciou por anos como um mundo de extravagância surreal, sucesso duvidoso e empreendedores de cara nova empenhados em dominação, glória e, é claro, o progresso pessoal a qualquer custo.

Como a maioria dos jovens que para lá se mudou, ela adentrou sem experiência nesse microcosmo mergulhado em trilhões de dólares de apostas dos investidores, onde todos estão em busca de enriquecimento rápido e astronômico. O que se lê por dentro é algo que ela conseguia perceber como poucos: uma mudança cultural, à medida que a indústria de tecnologia se transformava rapidamente em um locus de riqueza e poder suficiente para rivalizar com Wall Street.

O livro conta como jovens iam passar férias nos Alpes esquiando ou viviam entrincherados em bares clandestinos no escritório, em meio a pressão por resultados, frustrações, camaradagem infantil e lealdade corporativa.

Anna Weiner percebeu também como o novo Vale do Silício, que nascia nos andares de cima das corporações que ganhavam bastante dinheiro, fazia isso às custas do futuro idílico que dizia estar construindo. Ela se mostra testemunha atenta das engrenagens da cultura de startups, que pode ser associada a grupos de garimpeiros em mundos inóspitos, habitados por empreendedores ou desbravadores que tentam altos e imprudentes voos.

O que a autora descreve é um período de “ambição descontrolada, vigilância desregulada, fortuna selvagem e aceleração política e potência”. E consegue mapear a mudança da indústria de tecnologia de salvadora do mundo autonomeada para uma responsabilidade que ameaça a democracia, “ao lado de uma narrativa pessoal de aspiração, ambivalência e desilusão”, segundo seu editor.

Conclui-se que o Vale do Silício, além de exigir talento e determinação, é para os fortes, os aventureiros e desbravadores, como foi o velho oeste americano do século XIX. A comparação tem sentido porque, embora o primeiro exija habilidades de comunicação e inteligência emocional, além de conhecimentos técnicos, em ambos tudo foi ou é implacável, incisivo e predador.

Não faltaram críticas ao livro e à autora. Como a de que ela tentou entrar no negócio de tecnologia sem absolutamente nenhuma experiência válida, enquanto admitiu várias vezes estar fora de sua profundidade e não entender o que estava fazendo.

Para quem estuda os efeitos da tecnologia no comportamento das pessoas e das empresas, ao explicitar a tensão entre o antigo e o moderno, "Vale da estranheza" apresenta uma experiência particular sobre a cultura imprudente da economia digital dos anos 2010, cujas consequências apenas começamos a entender, como destacou seu editor. De qualquer modo, essa aventura real ou surreal é, pelo menos, uma leitura hipnótica e assustadora.

Serviço:

Título: "Vale da Estranheza: Fascínio e desilusão na meca da tecnologia"
Autora: Anna Wiener
Editora: Companhia das Letras
312 páginas
Versão impressa: R$ 89,90